Demétrio Magnoli
Num documentário dos anos
1920, pode-se ver Le Corbusier esfregando um lápis preto grosso sobre uma vasta
área do mapa do centro de Paris, "com o entusiasmo do Bombardeiro Harris
planejando a aniquilação de uma cidade alemã na Segunda Guerra Mundial",
escreveu Theodore Dalrymple num saboroso artigo no City Journal. O célebre
arquiteto esquematizava a fantasia totalitária do Plano Voisin, uma coleção
geométrica de 18 torres de escritórios cruciformes de 60 andares, completadas
por conjuntos habitacionais delimitando superquadras. Você pode gostar do
Palácio Capanema (eu gosto), da Catedral de Brasília (adoro), do Itamaraty (é
lindo), da sede do PCF (não gosto) e até do Memorial da América Latina
(detesto) ou do MAC de Niterói (acho ridículo), mas não tem o direito
intelectual de separar a obra de Oscar Niemeyer de suas raízes doutrinárias.
Niemeyer inscreve-se na matriz de Le Corbusier, o fundador de uma arquitetura
da destruição que, consagrada à estética do poder, odeia a história, o espaço
público e as pessoas comuns.
Sede do PCF |
Certamente Niemeyer não é um
simples epígono de Le Corbusier, com suas "grandes caixas sobre
varetas" (Frank Lloyd Wright), uma "marca registrada vulgar da forma
moderna" (Lewis Mumford). O brasileiro foi um inventor: seu traço curvou
sinuosamente o concreto, tropicalizando a arquitetura moderna. Contudo suas
estratégias compositivas e seu repertório fechado de formas não derivam de
supostas inspirações renascentistas ou barrocas, mas dos princípios
neoclássicos, que são os de Le Corbusier. Para além disso, Niemeyer
compartilhou com seu mestre a crença fundamental na "missão
civilizatória" do Estado - isto é, no privilégio estatal de mobilizar
ilimitadamente a terra urbana para esculpir a cidade (e a sociedade) segundo os
ideais da elite dirigente. Os dois arquitetos solicitam o patrocínio de tiranos
- ou melhor, de tiranos com uma Visão.
Na imprensa brasileira, a morte
de Niemeyer foi acompanhada por dois tipos predominantes de avaliações. De um
lado, afirmou-se que sua obra é genial, pois reflete seu "pensamento
humanista" - uma opinião abominável, mas coerente. De outro, afirmou-se
que sua obra, genial, deve ser separada de suas deploráveis convicções
políticas - um diagnóstico incoerente e inconsequente. A arquitetura de
Niemeyer, como a de Le Corbusier, não é apenas uma derivação de suas
inclinações ideológicas, mas também uma plataforma para sua desejada aliança entre
os arquitetos e o poder político. Le Corbusier serviu tanto a Stalin quanto ao
regime colaboracionista de Vichy. "A França precisa de um Pai",
clamou o arquiteto pouco antes da publicação de A Cidade Radiosa, em cujo
frontispício se lia: "Este livro é dedicado à Autoridade". Eis a
chave para decifrar as suas obras - e as de Niemeyer.
A Piazza della Signoria, que
não tem nenhuma árvore, é uma maravilha do espírito humano. Não é preciso
reproduzir a crítica romântica, que condena o "concreto" e exige o
"verde", nem é necessário aderir aos princípios da arquitetura
orgânica para repudiar o monumentalismo brutal dos sacerdotes do Templo
Moderno. "O plano deve governar. A rua deve desaparecer", escreveu Le
Corbusier em 1924, indicando o rumo que seria adotado por Niemeyer. O impulso
destrutivo está contido em cada uma das intervenções arquitetônicas de ambos,
inclusive nas mais belas.
Uma edificação de Niemeyer
jamais se relaciona significativa ou funcionalmente ao entorno construído, que
ele despreza, pois não emergiu de seu traço. Os espaços residuais entre volumes
projetados pelo arquiteto nunca adquirem identidade e servem somente para a
contemplação de seus monumentos à Autoridade. Quanto maior é a escala do
projeto, mais evidente se torna a "modernidade anacrônica" de
Niemeyer. "O papel ordenador do espaço aberto, com suas ruas, praças,
pontos de encontro e mercados", dilui-se, em Brasília, "num espaço
sem limites e sem outra função que a de emoldurar edifícios isolados e
esculturais" (J. C. Durand & E. Salvatori).
A estética de Niemeyer é uma
declaração política. Em Brasília, como registrou James Holston, o contraste
tipológico entre os edifícios públicos, "objetos excepcionais, figurais,
de cunho monumental", e os edifícios residenciais, "objetos seriais,
repetidos, que são cotidianos", representa a utopia regressiva almejada
pelo arquiteto. Tinha razão Alberto Moravia quando escreveu para um jornal
italiano que a capital recém-inaugurada fazia as pessoas se sentirem "como
os minúsculos habitantes de Lilliput" e procurarem "no céu vazio a
forma ameaçadora de um novo Gulliver".
"Nunca escondi minha
posição de comunista. Os governantes compreensivos, que me convocam como
arquiteto, sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu
deles penso a mesma coisa", escreveu Niemeyer, num exercício de cínico
ilusionismo. Você sabe qual é a espessura média de concreto por metro quadrado
no Memorial da América Latina? Nenhum "governante compreensivo" se
equivoca ao convocar o "arquiteto comunista" cujos projetos oferecem
as melhores oportunidades no jogo do superfaturamento de obras públicas.
Memorial da América Latina |
Vivemos em tempos de
ressurgimento de um verde-amarelismo satisfeito, balofo e triunfalista.
Felipão, Lula, Eike Batista, José Sarney cristalizaram-se como patrimônios da
nacionalidade. Na hora da morte de Niemeyer, uma gosma indiferenciada de
bajulação asfixiou o debate público e as páginas dos jornais se fecharam à
diversificada crítica à arquitetura totalitária formulada por urbanistas,
arquitetos, sociólogos, antropólogos e filósofos. A discussão, tão necessária,
sobre a cidade e a história, o Estado e a sociedade, a forma moderna e a vida
urbana foi interditado pelo coro ruidoso das sentenças ornamentais do senso
comum. "Brasil, ame-o ou deixe-o": quanto demorará para alguma
estatal restaurar o slogan de Emílio Médici?
Título e Texto: Demétrio Magnoli, Sociólogo e Doutor em
Geografia Humana pela USP, O Estado de S.Paulo, 20-12-2012
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