Catarina Rocha
Às mãos de António Travassos
chegam doentes de todo o mundo, à procura de um tratamento para os seus casos
considerados sem solução. Cego dos dois olhos, Martinho Santos Martins foi um
deles. Hoje sorri de felicidade.
António Travassos no bloco operatório |
Cinco horas e dezoito minutos foi o
tempo que três médicos do Centro Cirúrgico de Coimbra levaram a fazer uma
cirurgia inédita, a primeira em todo o mundo, que ao doente valeu a luz do dia.
A troca de uma parte do olho foi feita como uma simples mudança peças de uma
engrenagem que já não funciona… mas de um olho para o outro. Dois dias após a
intervenção, o doente a quem tinha sido diagnosticada uma cegueira irreversível
já conseguia contar os cinco dedos de uma mão à distância de um metro.
“Se a cegueira é curável, só
há uma solução: é fazer tudo aquilo que podemos para curar o doente. Essa é a
nossa missão”, diz António Travassos, cirurgião oftalmologista fundador do
Centro Cirúrgico de Coimbra, que não pousou o bisturi quando, em Dezembro de
2014, Martinho Santos Martins ali entrou com uma cegueira bilateral. “Estava
completamente deprimido quando chegou, e hoje só consegue sorrir. Mesmo com os
olhos ainda tapados, o senhor só sorria.”
O doente de Bragança, com 69
anos, foi submetido, no final de Julho deste ano, a uma translocação (ou
deslocação) do segmento anterior do olho, uma cirurgia nunca realizada com
sucesso até hoje. António Travassos, o cirurgião principal, conseguiu o
“enxerto perfeito”. Ou seja, recortou um círculo perfeito para poder
transplantar toda a córnea (a parte da frente do olho que cobre a íris e a
pupila) e ainda uma coroa circular de esclera (a região branca do olho) do olho
esquerdo para o olho direito.
O resultado surpreendeu até o
médico, que nunca deu certezas de cura ao doente. Depois da cirurgia, Martinho
Santos Martins, que ao entrar no bloco operatório não controlava as lágrimas,
percorria então os corredores do Centro Cirúrgico de Coimbra de forma autónoma,
e com a visão recuperada no olho direito de 1/10 (do ponto de vista legal, a
cegueira existe quando o melhor olho tem uma acuidade inferior a esse valor).
Apesar de todas as
dificuldades ao longo do tempo, a esperança nunca abandonou o doente que desde
cedo conviveu com a cegueira. O olho direito, se não o atraiçoam as memórias da
infância, nunca tinha tido visão. A zona da córnea encontrava-se esbranquiçada
(leucocórnea), o que impedia Martinho Santos Martins de ver desse olho. Mais
tarde na vida, uma trombose no olho esquerdo roubou-lhe a única janela para o
mundo.
Foi operado em França, onde
esteve emigrado, e tentou ainda tratamentos em Espanha, mas nada trouxe a visão
a Martinho Santos Martins. A cegueira era irreversível para os médicos que o
observavam – com a excepção de António Travassos, a quem recorreu, já quase sem
esperança, no final de 2014.
“Com o exame de visometria,
concluímos que o olho direito do doente, embora estando cego, tinha uma
acuidade de visão de 2/10, porque as estruturas da parte posterior estavam funcionais”,
diz António Travassos. Este foi o motivo que levou o médico a avançar confiante
para a cirurgia, mas sempre com a ameaça de ter de extrair o olho.
Houve uma primeira cirurgia em
Coimbra, que consistiu em trocar a córnea do olho esquerdo – o olho que estava
também cego pela trombose mas que tinha a córnea saudável – para o olho
direito, com a córnea esbranquiçada desde a infância. E para o olho esquerdo
transplantou-se a córnea de um dador. “Conseguimos resultados, do ponto de
vista anatómico, para o olho esquerdo, e do ponto de vista funcional para o
olho direito [que conseguiu agora recuperar a visão]”, diz António Travassos.
“Nada fazia prever o que aconteceu depois”, diz ainda o médico.
Após esta primeira cirurgia, o
inesperado por todos surgiu: o doente teve uma rejeição da sua própria córnea
no olho direito. “Ninguém esperava que o melting da córnea acontecesse após a
cirurgia. O doente tinha recuperado a visão e voltou a perdê-la.” O melting da
córnea é uma reacção auto-imune rara, que consiste na inflamação da córnea,
como se derretesse até à sua perfuração.
“Em vez de retirarmos o olho,
resolvemos esperar que tudo estabilizasse, para encontrar uma solução.” E foi
isto que a equipa de médicos fez. Após algum tempo, surgiu então a hipótese de
uma nova cirurgia devolver a visão a Martinho Santos Martins.
A técnica nunca tinha sido
realizada em parte nenhuma do mundo, mas António Travassos, famoso por resolver
situações aparentemente sem solução, avançou para a sala de operações. “Nunca
pude dar esperanças ao doente. Mesmo antes de entrar em cirurgia tive de lhe
dizer que havia a hipótese de ter de se eviscerar o olho. Entrou no bloco sem
controlar as lágrimas.”
A segunda cirurgia, na qual
participaram ainda os oftalmologistas José Galveia e Sofia Travassos, filha de
António Travassos, teve os seguintes passos: transportou-se toda a córnea (que
o doente já tinha recebido de um dador) e a coroa circular de esclera do olho
esquerdo para o olho direito, aquele que tinha tido a reacção auto-imune. Por
isso se designa translocação. Quanto à córnea que foi rejeitada, voltou para o
olho esquerdo, aquele que se mantém cego.
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