sábado, 28 de maio de 2016

Carta de um Querubim d’Abril

Querido Professor Marcelo,

Estou a escrever-lhe esta carta porque já não suporto esconder o sofrimento que sinto ao ver os meus pais, que toda a vida se levantaram e deitaram à mesma hora e contribuíram assim para um futuro, que é o meu presente, mais justo em que todos pagam mais pagando todos muito menos, a sofrer tanto por causa da carga social, chama-se assim, que agora as pessoas transformadas em números sem escolhas foram obrigadas a suportar.

Eu gosto muito de ver quando o professor pega naqueles molhos de livros todos e sorri como se estivesse a respirar pétalas de cravos para cima de toda a gente através da televisão. Penso que devia ser sempre entrevistado por jornalistas pacíficos e honestos como a Judite de Sousa, a Fátima Campos Ferreira e a Ana Lourenço, que nunca quiseram estragar a paz tão bonita começada pela revolução dos nossos pais, tios, primos, avós e todas as outras famílias que fizeram Abril e lá ficaram, distribuindo ainda hoje as garantias que enchem a nossa despensa do sagrado pão, a garagem com os carros para usarmos as estradas dos engenheiros Ferreira do Amaral e José Sócrates, e a gaveta do aparador onde a minha mãe tantos perfumes e vernizes tem e de que eu, quando decidir qual vai ser a minha identidade de género, poderei vir também a usufruir.

Estas conquistas que os seus afectos, mais a visão longínqua do Doutor António Costa, que de tão garboso e inteligente podia vir nos meus manuais de História porque eu acho que ele é a personificação dos nossos Descobrimentos, de Goa à Mesquita da Mouraria, isto é uma grande felicidade que devia mostrar à Europa o quanto o nosso país tem de bom além do sol, das praias, da liberdade com que toda a população chama nomes uns aos outros, fala alto na rua, cospe para o chão, e decide sem medo da PIDE quando é que um gato, um embrião ou um poste de iluminação transgender são pessoas ou quando podem e devem ser abortados, eutanasiados, ou submetidos a mudanças de sexo que fazem menos mal, dizem os cientistas que estão todos de acordo, do que um chocolate e batatas fritas com sal grosso.

Um dos meus pais pediu para eu lhe dizer também que o admira muito por causa da sua visão de um Mundo em que cantar, rir e andar na rua tranquilo mostra aos fachos do sector privado e da Igreja e do PPD e do Arouca e do Jorge dos Frangos onde uma vez o puseram fora porque diziam que ele não sabia beber, a essa gente toda que o nosso país não é a Venezuela nem a Somália e se estão mal que vão para a América do Trump onde os aleijadinhos morrem de fome cada vez que lhes rebenta o acne porque a saúde não era pública até ter vindo o Obama. E que ainda falta fazer muito para combater o aquecimento global, culpa de todos e de todas, por isso o senhor professor que não se esqueça de passar um dia na Junta de Freguesia de São Pedro da Cova que há lá uns projectos à espera de aprovação antes que os alemães votem mal, porque a democracia deles não é tão pura como a nossa e faz muita falta a ciclovia para anões pernetas iluminada a árvores de Natal com troncos em madrepérola e escultores sonoros contratados para lá andarem todo o ano a motivar os utentes.

Senhor professor, estou tão feliz. No tempo dos meus avós as crianças eram escravas da ignorância e tinham que ajudar com trabalho porque andava toda a gente descalça para o Salazar ter gasolina. Depois quando eu nasci ainda vi muitas coisas que não compreendi e que me cortaram o coração, miúdos a terem de fazer as próprias camas, sem uma linha de apoio que trouxesse logo um agente da autoridade para explicar aos pais, mesmo que não viesse armado, que aquilo era um acto de repressão emocional com sequelas para a vida toda e que por isso é que ainda há juventudes partidárias que não são livres, isto é, não são de esquerda.

A carta já vai muito longa e eu sei que o senhor professor não dorme para guardar-nos do Mal e amén, por isso queria só contar-lhe um segredo: quando eu sair da infância aos 54 anos e antes de me tornar sénior aos 56, naquele ano decisivo em que vou optar (não sei bem ainda pelo quê mas até lá não quero pensar nisso, tenho muito tempo para optar quando tiver que tomar opções, agora quero ser feliz sem me ralar com as coisas do passado como as notas, o trabalho, os namoros, as contas da casa, e obrigações primitivas que havia no tempo do Passos) e como espero que nessa altura já tudo seja feito por robots, o dinheiro chegue por mail sempre que for preciso e já não haja diferenças entre pais, filhos e todas as criaturas da Natureza, então eu quero optar por ser como o senhor professor, conseguir um dia chegar ao fim da minha vida útil e continuar a fazer como todos fazem no nosso Abril eterno, a escrever e falar e sorrir sem qualquer significado de maior e assim assegurar os valores que Otelo e os outros capitães semearam nesta seara onde as raças e crenças e dietas e sindicatos convivem em alegria. 
Obrigado e um beijinho e assino
Título e Texto: NIF 385000254, Fânzeres, 39 anos, O Espalha Brasas, 28-5-2016

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