sábado, 5 de fevereiro de 2011

Manuel Maria Carrilho, militante socialista, está doidinho?

Debater para agir
A crise que o País vive deve-se em boa parte às opções do Governo nos últimos dois anos e meio. Reconhecê-lo é, por mais desconfortável que seja, um acto de responsabilidade política elementar

Manuel Maria Carrilho. Foto: ASF/A Bola

Não é com ideias velhas que se vencem as crises, mas com ideias novas, com realismo e com capacidade de ruptura.

E para gerar ideias novas, um líder tem de ter a humildade de aprender com os erros, a coragem de promover o debate e a disponibilidade para ouvir outros pontos de vista, mesmo que esses pontos de vista não lhe agradem.

Isto é tanto mais verdade quanto mais graves, complexas e persistentes forem as crises.

É minha convicção que os partidos políticos e os seus líderes podem e devem dar um contributo importante para o debate e para a geração de novas ideias.

Não será contudo fácil para muitos cidadãos partilharem esta minha convicção, tão evidente é a progressiva desqualificação dos partidos e dos seus líderes.

Com efeito, as democracias mudaram muito, nem sempre para melhor, tanto na forma como nos factores que hoje condicionam o comportamento dos líderes e as expectativas dos cidadãos. Mas há um ponto que continua incontornável: sem partidos não há democracia. E este "não há" é um facto objectivo e facilmente constatável - alguém é capaz de dar um só exemplo de democracia sem partidos?

Note-se que os partidos são apenas uma entre várias condições necessárias. Também há partidos nas ditaduras, mas falta tudo o mais: liberdade de opinião e de expressão, debate e pluralismo, igualdade dos cidadãos perante a lei, amplitude do espaço público, participação dos cidadãos, etc. São estes aspectos que constituem a "condição necessária" da democracia e dão, pela sua autenticidade, uma medida da sua intensidade e da sua vitalidade.

Há, no entanto, várias maneiras de ver os partidos: o modo clubista, que os vê à imagem das claques de futebol, vibrando cegamente, em todas as circunstâncias, contra todos os adversários. A concepção pretoriana, que os concebe como um organismo de natureza mais ou menos militar, que se destina sobretudo a proteger e perpetuar no poder o chefe e os seus acólitos. E a visão cidadã, que os estimula e respeita como associações de pessoas livres que partilham, de um modo naturalmente controverso, valores idênticos e projectos convergentes para o país.

Estas três dimensões existem, em maior ou menor grau, em todos os partidos. O que os diferencia, para lá da ideologia, é o peso de cada um dos factores. É o que se compreende facilmente se repararmos no facto de as ditaduras se darem bem com os dois primeiros factores, o clubista e o pretoriano, mas mal (muito mal mesmo como se tem visto nestes últimos dias no Egipto) com o terceiro, que aponta para a liberdade dos cidadãos com todas as suas consequências.

Este é o verdadeiro factor distintivo da democracia, e o cursor da sua verdade. Por isso, nas democracias, e para lá de todas as naturais críticas que os partidos suscitem, o que importa é que eles sejam associações de cidadãos livres, ligados à sociedade e sensíveis às suas aspirações, unidos para debater de forma aberta e regular as suas expectativas, problemas e soluções.

É por isso que, para um partido democrático, é tão importante ter militantes como estimular a sua participação em debates abertos. O que é muito diferente de organizar de vez em quando (de resto, o menos possível) umas reuniões que não passam de simulacro de debates de ideias, com muita preparação, televisão e manipulação.

Estas situações identificam-se facilmente, sobretudo porque nelas tudo começa sempre pelo fim, pelas conclusões. A principal preocupação é encenar o seu encerramento em final apoteótico, alimentando o resto com meia dúzia de soundbytes. Por exemplo, imaginemos por momentos que se definia desde já que o grande objectivo do próximo Congresso do PS seria o de "defender Portugal" ou o de "celebrar a resistência ao FMI". A partir daí não haveria evidentemente qualquer debate, mas uma orquestração para preparar o espectáculo, instrumentalizando tudo com olhos postos no seu grande final...

Outra grande preocupação nestes momentos é a de inventar um qualquer bode expiatório, porque isso torna mais excitante um espectáculo em geral penoso, torna mais credível o plebiscito e, sobretudo, torna mais fácil para a liderança instalada a leitura do teleponto no discurso de vitória.

Sempre participei na política com um espírito de cidadão e de militante tão livre como exigente. Em 2004, fui muito claro nas minhas opções quando o Partido Socialista teve o seu último grande debate ideológico. E deixei então dito e escrito o que pensava e penso sobre as opções em jogo (em artigos publicados no jornal Público, a 06/08/2004 e a 07/09/2004, que talvez valha a pena reler agora). Aceitei com a maior naturalidade os resultados, do partido e depois do País, e colaborei empenhada e desinteressadamente em tudo o que me foi pedido. Mas nunca prescindi de pensar pela minha cabeça e de dizer o que pensava, tanto no grupo parlamentar a que então pertencia como no espaço público onde sempre me exprimi.

Em 2007, em Setembro, publiquei uma série de três artigos sobre "as encruzilhadas do reformismo" e as dificuldades que devíamos enfrentar. Em 2008 falei e escrevi (bastante) sobre a necessidade de se mudar de paradigma para se responder à crise, sublinhando que ela tinha bloqueado as vias que o Governo até então seguia. Reclamei outro modelo de desenvolvimento, assente numa autêntica qualificação, não no seu embuste, com facilitismo e atrocidades sem paralelo na educação, devastações múltiplas no território e um indescritível caos na administração

Em 2009, chamei a atenção para o erro de ignorar o significado das urnas e apostar num governo minoritário, bem como para os impasses a que esse erro conduziria. Em 2010 publiquei todas estas reflexões no livro E agora? (Editora Sextante), a que dei como subtítulo "Por uma nova república", porque nele apresentava ainda um vasto conjunto de propostas políticas, com o objectivo de responder à descredibilização e à desvitalização da nossa democracia.

O facto de as minhas previsões terem sido "certeiras" não me orgulha nem me satisfaz, bem pelo contrário. Porque os problemas eram evidentes para quem os quisesse ver, e porque os erros vão sair muito caros ao País.

Insinuar agora que o que eu penso e digo se deve a qualquer ressentimento ou episódio recente, como há dias fizeram Almeida Santos e o "comité" de recandidatura de José Sócrates à chefia do PS, é, na verdade, indigno. E só refiro esse episódio porque é curioso recordar que, se o meu afastamento da UNESCO teve por motivo próximo a publicação do meu livro E agora? e a entrevista que então dei ao Expresso, o motivo de fundo foi o de eu ter argumentado até ao limite, nas eleições para a liderança daquela organização, contra o apoio do nosso país à candidatura de uma figura de proa da ditadura egípcia, cujos méritos, então muito elogiados por José Sócrates, todos temos nestes últimos dias observado em directo...

Por outro lado, argumentar com o imperativo da "unidade do partido" para enfrentar a crise também não adianta, porque se há coisa de que o líder do Partido Socialista beneficiou durante todos estes anos foi de um unanimismo quase total. E isso não evitou a sucessão de erros que agora se quer disfarçar.

A crise que o País vive deve-se em boa parte às opções do Governo nos últimos dois anos e meio. Reconhecê-lo é, por mais desconfortável que seja, um acto de responsabilidade política elementar. Essas opções não foram nunca realmente discutidas no âmbito do Partido Socialista, que tem sido dirigido numa lógica de facto consumado, por um pequeno grupo de profissionais do poder, cuja eficácia - ainda que "danosa" - não se deve desvalorizar, a julgar não só pelo modo como subjugaram o partido mas também pela maneira como fizeram do País seu refém.

A crise é por isso, antes do mais, de ideias e do seu debate. Dos modos de deliberar, de participar e de decidir. Andar agora a "desafiar os críticos a avançar" para a liderança do partido é não compreender que cobiçar o poder e desejar o debate são coisas distintas. É recusar aos militantes o direito a pensarem por si próprios e a exprimirem-se livremente, a não ser que aceitem disputar o poder. O "desafio" traduz uma visão da liberdade e do pluralismo que é inaceitavelmente condicional - "só podes ser livre dentro da minha gaiola" -, própria de quem vê no debate livre e aberto de ideias uma ameaça, e não uma porta para as soluções de que o País precisa.

Sem ideias e sem debate iremos sentir até ao fim os efeitos desastrosos desse cocktail fatal de que já falava Maquiavel - a mistura da obsessão do poder com os efeitos da ignorância. E depois de um tal fim, a ressaca será à sua medida. Os militantes livres do Partido Socialista deviam começar a pensar nisto. 
Título e Texto: Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 03-02-2011

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