sexta-feira, 7 de junho de 2013

Manifestações na Turquia: O problema da democracia

Os manifestantes na Praça Taksim, em Istambul, contestam a componente islâmica da sociedade turca que subiu ao poder com o Governo de Erdogan, encarado como uma ameaça ao laicismo e aos direitos civis. Mas isso é o resultado natural do fim do autoritarismo kemalista, escreve o escritor holandês Ian Buruma.
 

Um manifestante segura um retrato do fundador da República da Turquia Mustafa Kemal Atatürk durante as manifestações em Istambul, a 6 de junho de 2013. Foto: AFP
Uma forma de analisar as manifestações antigovernamentais nas cidades turcas é vê-las como um protesto maciço contra o Islão político. O que começou como uma manifestação contra os planos apoiados pelo Estado para destruir um pequeno parque no centro de Istambul e dar lugar a um novo centro comercial de gosto duvidoso, evoluiu rapidamente para um conflito de valores. À superfície, a luta parece confrontar dois conceitos diferentes da Turquia moderna: seculares contra religiosos, democratas contra autoritários. Já foram feitas comparações com o movimento Occupy Wall Street. Até há quem fale em “primavera turca”.

Obviamente, muitos cidadãos turcos, especialmente nas grandes cidades, estão fartos do estilo crescentemente autoritário do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, da sua mão de ferro sobre a Comunicação Social, das restrições ao consumo de álcool, do gosto pela construção de grandiosas mesquitas, das prisões de dissidentes políticos e, agora, da resposta violenta às manifestações. As pessoas temem que as leis seculares sejam substituídas pela lei da charia e que os frutos do Estado secular de Kemal Ataturk sejam destruídos pelo islamismo.

Há também a questão dos alevitas, uma minoria religiosa [a maior da Turquia] aparentada com o sufismo e o xiismo. Eles foram protegidos pelo Estado secular kemalista e nutrem uma profunda desconfiança em relação a Erdogan, que os irritou particularmente com a intenção de dar à nova ponte sobre o Bósforo o nome de um sultão do século XVI que massacrou os membros da sua fação religiosa.

Portanto, a religião parece ser o fulcro do problema turco. O Islão político é considerado inerentemente antidemocrático pelos seus opositores.

Religião, política e classes
Mas nada é assim tão simplista. O Estado secular kemalista não foi menos autoritário do que o regime populista islâmico de Erdogan; talvez fosse mesmo mais. E é também significativo que os primeiros protestos na Praça Taksim de Istambul não tivessem a ver com uma mesquita, mas com um centro comercial. O receio da instauração da lei da charia está ao mesmo nível da raiva contra a voracidade dos empresários do ramo imobiliário e construtores civis apoiados pelo Governo de Erdogan.

Há um forte pendor esquerdista nesta primavera turca. Assim, em vez de encarar os problemas do Islão político moderno, que são absolutamente a não menosprezar, seria mais proveitoso analisar os conflitos na Turquia de uma outra perspetiva, hoje claramente tida como fora de moda: a luta de classes. Os manifestantes, sejam eles liberais ou de esquerda, são sobretudo da elite urbana, ocidentalizada, sofisticada e secular. Erdogan, por seu lado, continua a ser muito popular na Turquia rural e do interior, entre as pessoas com níveis mais baixos de educação, mais pobres, mais conservadoras e mais religiosas.

Apesar das tendências pessoais autoritárias de Erdogan, que são óbvias, seria enganoso ver nos atuais protestos apenas um conflito entre democracia e autocracia. Afinal, o êxito do partido populista da Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan, bem como a crescente presença de práticas e símbolos religiosos na vida pública são o resultado de mais democracia na Turquia. Costumes como o uso do véu pelas mulheres em locais públicos, banidos pelo Estado secular, foram recuperados porque os turcos dos meios rurais ganharam influência. Jovens religiosas tiveram acesso às universidades urbanas. Os votos conservadores dos turcos provincianos passaram a contar.

A aliança entre empresários e populistas religiosos é uma originalidade da Turquia. Muitos dos novos empreendedores, tal como as mulheres de véu, vêm de aldeias da Anatólia. Estes novos-ricos provincianos nutrem um grande ressentimento em relação à antiga elite de Istambul, tal como os empresários do Texas ou Kansas odeiam as elites liberais de Nova Iorque e Washington.

Mais democracia, menos tolerância
Mas constatar que a Turquia atual é mais democrática não quer dizer que seja mais liberal. Esse é também um dos problemas revelados pela primavera Árabe. Dar a todos voz no Governo é essencial para qualquer democracia. Mas essas vozes, especialmente em tempos revolucionários, raramente são liberais. O que vemos em países como o Egito, na Turquia e até mesmo na Síria, é aquilo que o grande filósofo liberal britânico Isaiah Berlin descreveu como a incompatibilidade de bens iguais. É um erro acreditar que as coisas boas andam sempre a par. Às vezes, entrechocam-se.

E é o que acontece nas penosas transições políticas do Médio Oriente. A democracia é positiva, tal como o são o liberalismo e a tolerância. O ideal, evidentemente, é coincidirem. Presentemente, na maior parte do Médio Oriente, isso não acontece. Mais democracia pode mesmo significar menos liberalismo e tolerância.

É fácil simpatizar com os rebeldes contra a ditadura de Bashar Al-Assad, na Síria, por exemplo. Mas as classes altas de Damasco, os homens e mulheres seculares que gostam de música e filmes ocidentais, alguns deles membros de minorias religiosas, cristãos e alauitas, vão passar mal quando Bashar desaparecer. O baathismo é opressivo e ditatorial, muitas vezes até brutal; mas protege minorias e as elites seculares.

Será isso razão para apoiar ditadores, apenas porque mantêm o islamismo sob controlo? De facto, não é. Até porque a violência do Islão político é, em larga medida, um produto desses regimes opressivos. Quanto mais tempo permanecerem no poder, mais violentas serão as rebeliões islamitas.

Também não é motivo para apoiar Erdogan e os seus construtores de centros comerciais contra os manifestantes, na Turquia. Os contestatários têm o direito de se opor à indiferença arrogante do Governo face à opinião pública e à sufocação oficial da imprensa. Mas ver o conflito como uma luta justa contra a afirmação religiosa seria igualmente um equívoco. A maior visibilidade do Islão é o resultado inevitável de mais democracia. Como impedir que isso mate o liberalismo é a questão mais importante no Médio Oriente. Erdogan não é um liberal. Mas a Turquia continua a ser uma democracia. Espera-se que os protestos contra o primeiro-ministro tornem o país mais liberal.
Título e Texto: Ian Buruma, Presseurope, 07-06-2013

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