Os manifestantes na Praça
Taksim, em Istambul, contestam a componente islâmica da sociedade turca que
subiu ao poder com o Governo de Erdogan, encarado como uma ameaça ao laicismo e
aos direitos civis. Mas isso é o resultado natural do fim do autoritarismo
kemalista, escreve o escritor holandês Ian Buruma.
Um manifestante segura um
retrato do fundador da República da Turquia Mustafa Kemal Atatürk durante as
manifestações em Istambul, a 6 de junho de 2013. Foto: AFP
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Obviamente, muitos cidadãos
turcos, especialmente nas grandes cidades, estão fartos do estilo
crescentemente autoritário do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, da sua mão de ferro sobre a Comunicação Social, das
restrições ao consumo de álcool, do gosto pela construção de grandiosas mesquitas,
das prisões de dissidentes políticos e, agora, da resposta violenta às
manifestações. As pessoas temem que as leis seculares sejam substituídas pela
lei da charia e que os frutos do Estado secular de Kemal Ataturk sejam
destruídos pelo islamismo.
Há também a questão dos
alevitas, uma minoria religiosa [a maior da Turquia] aparentada com o sufismo e
o xiismo. Eles foram protegidos pelo Estado secular kemalista e nutrem uma
profunda desconfiança em relação a Erdogan, que os irritou particularmente com
a intenção de dar à nova ponte sobre o Bósforo o nome de um sultão do século
XVI que massacrou os membros da sua fação religiosa.
Portanto, a religião parece
ser o fulcro do problema turco. O Islão político é considerado inerentemente
antidemocrático pelos seus opositores.
Religião, política e
classes
Mas nada é assim tão
simplista. O Estado secular kemalista não foi menos autoritário do que o regime
populista islâmico de Erdogan; talvez fosse mesmo mais. E é também
significativo que os primeiros protestos na Praça Taksim de Istambul não
tivessem a ver com uma mesquita, mas com um centro comercial. O receio da
instauração da lei da charia está ao mesmo nível da raiva contra a voracidade
dos empresários do ramo imobiliário e construtores civis apoiados pelo Governo
de Erdogan.
Há um forte pendor esquerdista nesta primavera turca. Assim, em vez de encarar os problemas do Islão político moderno, que são absolutamente a não menosprezar, seria mais proveitoso analisar os conflitos na Turquia de uma outra perspetiva, hoje claramente tida como fora de moda: a luta de classes. Os manifestantes, sejam eles liberais ou de esquerda, são sobretudo da elite urbana, ocidentalizada, sofisticada e secular. Erdogan, por seu lado, continua a ser muito popular na Turquia rural e do interior, entre as pessoas com níveis mais baixos de educação, mais pobres, mais conservadoras e mais religiosas.
Apesar das tendências pessoais
autoritárias de Erdogan, que são óbvias, seria enganoso ver nos atuais
protestos apenas um conflito entre democracia e autocracia. Afinal, o êxito do
partido populista da Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan, bem como a
crescente presença de práticas e símbolos religiosos na vida pública são o
resultado de mais democracia na Turquia. Costumes como o uso do véu pelas
mulheres em locais públicos, banidos pelo Estado secular, foram recuperados
porque os turcos dos meios rurais ganharam influência. Jovens religiosas
tiveram acesso às universidades urbanas. Os votos conservadores dos turcos
provincianos passaram a contar.
A aliança entre empresários e
populistas religiosos é uma originalidade da Turquia. Muitos dos novos
empreendedores, tal como as mulheres de véu, vêm de aldeias da Anatólia. Estes
novos-ricos provincianos nutrem um grande ressentimento em relação à antiga
elite de Istambul, tal como os empresários do Texas ou Kansas odeiam as elites
liberais de Nova Iorque e Washington.
Mais democracia, menos
tolerância
Mas constatar que a Turquia
atual é mais democrática não quer dizer que seja mais liberal. Esse é também um
dos problemas revelados pela primavera Árabe. Dar a todos voz no Governo é
essencial para qualquer democracia. Mas essas vozes, especialmente em tempos
revolucionários, raramente são liberais. O que vemos em países como o Egito, na
Turquia e até mesmo na Síria, é aquilo que o grande filósofo liberal britânico
Isaiah Berlin descreveu como a incompatibilidade de bens iguais. É um erro
acreditar que as coisas boas andam sempre a par. Às vezes, entrechocam-se.
E é o que acontece nas penosas
transições políticas do Médio Oriente. A democracia é positiva, tal como o são
o liberalismo e a tolerância. O ideal, evidentemente, é coincidirem.
Presentemente, na maior parte do Médio Oriente, isso não acontece. Mais
democracia pode mesmo significar menos liberalismo e tolerância.
É fácil simpatizar com os
rebeldes contra a ditadura de Bashar Al-Assad, na Síria, por exemplo. Mas as
classes altas de Damasco, os homens e mulheres seculares que gostam de música e
filmes ocidentais, alguns deles membros de minorias religiosas, cristãos e
alauitas, vão passar mal quando Bashar desaparecer. O baathismo é opressivo e
ditatorial, muitas vezes até brutal; mas protege minorias e as elites
seculares.
Será isso razão para apoiar
ditadores, apenas porque mantêm o islamismo sob controlo? De facto, não é. Até
porque a violência do Islão político é, em larga medida, um produto desses
regimes opressivos. Quanto mais tempo permanecerem no poder, mais violentas
serão as rebeliões islamitas.
Também não é motivo para
apoiar Erdogan e os seus construtores de centros comerciais contra os
manifestantes, na Turquia. Os contestatários têm o direito de se opor à
indiferença arrogante do Governo face à opinião pública e à sufocação oficial
da imprensa. Mas ver o conflito como uma luta justa contra a afirmação religiosa
seria igualmente um equívoco. A maior visibilidade do Islão é o resultado
inevitável de mais democracia. Como impedir que isso mate o liberalismo é a
questão mais importante no Médio Oriente. Erdogan não é um liberal. Mas a
Turquia continua a ser uma democracia. Espera-se que os protestos contra o
primeiro-ministro tornem o país mais liberal.
Título e Texto: Ian Buruma, Presseurope,
07-06-2013
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