Aparecido Raimundo de Souza
Um
ZÉ INCONFORMADO, todo santo dia, antes
de sair para o trabalho, se tranca no minúsculo cubículo que serve como quarto
no mocambo onde mora. Nesses breves minutos, o rosto rubicundo, piscando os
olhos estrábicos e pequenos, de cor imprecisa, sem dinheiro nenhum para os
óculos caros demais, a pele maltratada pelo tempo quanto o telhado de amianto
sob sua cabeça, se mira demoradamente na metade de um espelho incrustado numa
velha porta do que um dia fez parte de um guarda-roupa.
“Espelho,
espelho meu,
me diga, agora,
se ainda existe
alguém mais trouxa
ou mais besta do que eu?”
Dois
Indiferente, o pequeno objeto permanece
surdo, estático, parado, frio e insólito. Na verdade, se limita apenas a
enfeitar a sua ruína com os malogros e contusões encontrados ao longo de sua
existência, objetivando refletir uma imagem distorcida, como a de um bocó,
diante de um Monet.
— Vamos, fale comigo. Preciso de uma
resposta. Necessito saber... — Balbucia a decisão enérgica. – Não me deixe a
ver navios!
Três
O espelho, todavia, não ajuda.
Contumaz, insiste na mudez sepulcral. Uma voz meiga, indo e vindo, no embalo de
uma recém-nascida de pouco mais de dez dias, vem lá da cozinha e invade a
solidão da peça. É Maria Clara, mulher do Zé:
— Meu bem, vai chega tarde. Sua malmita
tá pronta em cima do fugão.
Sem desviar o rosto do caco de espelho,
o infeliz esboça um “já vou” sem entusiasmo, preguiçoso, perdido, rendido
incondicionalmente à sua inutilidade total, como se a revolta que sente na alma
lhe prendesse os pés e as vontades nos desvãos das tábuas desgastadas do
assoalho.
— Preparei tamém o café. — Continua a
mulher em sinal de alarme. — Não vá esquece. Coloquei na garrafa de
refrigeranti. No caso de senti sono à noite.
Quatro
Zé Inconformado, não quer continuar
sofrendo. A vontade é se meter no buraco que serve de privada e sumir como um
cagalhão na fossa comunitária onde desembocam todos os esgotos oriundos das
outras palafitas que fazem parte do cortiço. Maria Clara, todavia, atenta às
obrigações, o faz voltar à realidade nua e crua; como crua e desnuda se
apresenta sua vida, seu futuro desumanamente igual, sem um mínimo de esperança
para alegrar um novo porvir. A rotina o enerva, sobremaneira. Trabalhar a noite
inteira e dormir durante o dia. No fim da tarde, por volta das seis, pular da
cama e se preparar para encarar o batente e começar tudo outra vez, numa
repetição que não perde a sua morbidez.
Cinco
Não aguenta mais o balde de água fria,
pendurado à guisa de chuveiro; se fartou, há muito, da gororoba invariável; se
abarrotou de engolir o café ralo com pão dormido; se encheu de vestir o
uniforme de cor laranja desbotado, a logomarca da empresa ilegível no bolso
furado. Odeia pegar a bicicleta velha, caindo aos pedaços, e seguir para o
local onde labuta como vigia. O salário, nem se fala. Mirrado, escasso,
depauperado, mal cobre o valor da cesta básica. Pior na história: a mulher
recém-chegada do SUS dera luz a uma menina com rostinho de princesa. O
nascimento da filha, porém, não lhe anima, nem encoraja a seguir em frente e
lutar.
—Zé, meu amor, olhe as hora. Vai chega
atrasado, home. Não isqueça que o percurso é longo...
Seis
Zé Inconformado parece um paspalho.
Apalermado, não está interessado no andamento dos ponteiros. Quer esquecer que
o tempo urge. Pouco lhe importa se chegará depois do horário previsto. Mirando
ainda o espelho, num derradeiro lampejo, como um possesso, se lembra de uma
notícia que leu, dias atrás, num jornal que deixaram na portaria. Falava de uma
enfermeira de setenta e oito anos que mandara tatuar uma mensagem no peito,
pedindo para todas as suas colegas que não procedessem às manobras de
ressuscitação em pacientes que apresentassem caso de parada cardíaca. Segundo a
matéria, a mulher agia dessa forma porque concluíra que a vida não valia a pena
ser vivida. Tudo no mundo se tornara cruel devido ao aumento assustador das
pessoas ingratas que se degradavam entre si.
— Zé, pelo amor de Deus...
— Já escutei. Tô saindo!...
—Vô até à Comunidadi busca umas ropinha
que dona Adelina conseguiu juntá das doação pra nossa Marjorie. Fecha as oito
em pontu. Se não consegui chega percu a veis...
Sete
O rapaz parece isolado na sua dor
pungente. Se sente como um avião em parafuso, numa descida vertiginosa, em
direção ao solo. Sabe que dentro de segundos haverá um impacto indescritível e
então será o fim. Isso o deixa abandonado à sorte de uma existência vazia e
fatigada. A uma vida desassossegada, ignota, explodindo pavor por todos os
poros. Para que continuar pelejando? A tal enfermeira, melhor que ninguém,
naturalmente deveria ter todas as razões do universo para fazer um pedido
extravagante, mas, no fundo, de cunho eivado de profunda seriedade e
discernimento.
“Espelho,
espelho meu
me diga, agora,
se ainda existe
alguém mais trouxa
ou mais besta do que eu?”
Oito
O refletor se mantém intransigente, na
sua incumbência infame de reproduzir a miséria de seu amo. Zé Inconformado se
vira, abre o postigo que separa as repartições. A fenda cede num estalar de
vencido. Na cozinha, passa a mão na marmita com arroz e ovo cozido. Junto, vai
um vasilhame pet com café preto, tudo acondicionado numa espécie de sacola de
pano de cozinha remendado em várias partes. Lá fora, prepara a bicicleta e se
põe em marcha. A favela fica às margens de uma rodovia onde milhares e milhares
de caminhões e ônibus trafegam numa violência inimaginável.
Nove
Zé Inconformado segue, desviando de um
amontoado de tranqueiras jogadas, sacos de lixos espalhados em montes os mais
variados tamanhos. Pedala, devagar, em
face do terreno irregular, em direção ao seu destino. Exatamente três
quilômetros até o portão principal que acessa a guarita. Maria Clara, pouco à
frente, com a neném ao colo, faz igual trajeto, contudo, logo adiante, coisa de
trezentos metros, dobra atravessando uma ponte. Zé tenta alcançá-la, na
esperança de dizer adeus à companheira e a filhinha. Só tornará a rever as duas
na manhã do dia seguinte, ainda assim, se der sorte e não tiver que “dobrar”,
cobrindo algum companheiro faltoso.
Dez
O carro de passeio, desgovernado,
naquele instante, cruza a via. Passa da direita para a esquerda, depois volta,
numa velocidade vertiginosa. Roda alguns metros, em ziguezague. Abalroa dois
outros veículos que seguem quase paralelos. Uma moto trafega pelo corredor. De
súbito, o sujeito que a pilota, tenta escapar de ser colhido pela traseira. À
custa de muito sacrifício e perícia, atrelado a um ato de sobrevivência
espantosa, tensa e afobada, preso, porém, num ângulo impossível, gira como
pode, tirando de qualquer jeito para o acostamento.
Onze
O acidente, contudo, traz, consigo
destinatário certo. No vestíbulo do que seria um meio fio inexistente, pega, em
cheio, a bicicleta de Zé Inconformado. O desditoso se vê, entrementes, atirado
ao longe. Voa, a uma aceleração incrível, lambendo a imundície exposta em rumo
de colisão com uma parede de concreto armado. A pancada que o detém é tão forte
e agressiva, que sua cabeça se transforma numa bola disforme, com pedaços de
massa encefálica espalhadas feito um tumor por todos os lados.
Doze
Agonizando, perde o controle sobre
tudo, mergulha num abismo de escuridão, cai num estado de morte antes que o
socorro (num explodir de luzes vermelhas e sirenes de sons alardeantes) possa
lhe prestar ajuda. Parte desta para melhor, o pobre Zé, ironicamente
inconformado, sem a resposta que buscava com aflição e veemência, indagando do
pedaço de espelho que não coadjuvava outro papel, senão sobrepor a sua imagem
estúpida e aprisionada dentro da própria solidão.
“Espelho,
espelho meu
me diga, agora, se a... se ainda e...
existe...?”
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PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO
“LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e
texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 13-3-2017
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