José Manuel
- Nos últimos meses, Ernest,
andava me sentindo opresso, com muito mau humor, derivando para uma depressão,
e conhecedor da espiral decrescente em que entramos dentro desse sintoma, que
você conhece tão bem, estava lutando para não entrar…
- O que houve?
- As notícias aqui no Brasil
são péssimas em todos os sentidos, vivemos uma convulsão social camuflada,
inclusive pela imprensa, um país estraçalhado politicamente por escândalos
diários, eu próprio sendo uma vítima dessa complicação política, até então não
tinha me dado conta de que todo esse processo entrava pela minha casa adentro,
pelos meus aparelhos de recepção, sorrateiramente, invadindo a minha
privacidade.
- Não estou entendendo, e o
que o Brasil lá na América do Sul tem a ver comigo, porque aqui na Europa é que
estamos saindo de uma guerra infernal que acabou em 1918, tivemos um
armistício, não sabemos até quando vai durar e o que são esses aparelhos de
recepção a que você se refere?
- Espere, e preste atenção
porque é confuso, muito confuso para você entender assim de repente.
- Sim, continue, estou tentando
entender.
- Ao me dar conta do problema
por acaso, primeiro cortei todas as notícias veiculadas pela televisão, e
passei a assistir somente a programas sobre carros ou animais. Senti uma
melhora em meu estado. Depois, enquanto no carro, aboli todas as notícias
políticas ou criminais vindas pelo rádio. Troquei as notícias por CDs, e
realmente foi melhorando cada vez mais o meu humor. Claro que tenho que me
manter atualizado e me permito somente ver as manchetes do dia.
- Continuo entendendo cada vez
menos, e o que são televisão, CDs e o que você escuta dentro do carro? Notícias
criminais?
- Sim, criminais, mas prefiro
pular essa parte, pois você não entenderia tão rápido, televisão já existe
precariamente nessa época em 1926, mas provavelmente irá conhecer melhor em
1940, quando estiver escrevendo Por Quem os Sinos Dobram,
mas não conhecerá os CDs que são disquinhos de música.
- Está bem, realmente
confunde, mas, continue.
- Aí descobri um terceiro
vilão que me acompanhava à cozinha, ao banheiro, à cama antes de dormir. O meu
celular. Esses aparelhos são como polvos, lulas gigantes que vão nos engolindo,
nos abraçando, você se deixa ir suavemente pela curiosidade das notícias,
mensagens dos amigos e quando se dá conta, está numa dependência difícil de
retroceder.
- Volto a perguntar, o que é
celular e que dependência seria essa a que você se refere? Não estou entendendo
nada, e quem te acompanha a todos esses lugares, cozinha, banheiro, etc.?
- Celular é um aparelhinho que
cabe na palma da nossa mão, é um telefone, podemos ver tudo através dele,
enviar mensagens, não existe mais o cabograma, podemos ver filmes, conversar
com os nossos "350 amigos", é esse o problema e a dependência a que
me referi. Também gosto de escrever, mas já andava perdendo até esse hábito
literário.
- Eu também escrevi muitos
livros, tenho apenas dez amigos fiéis, e nunca perdi a vontade de escrever, nem
durante as guerras em que participei como correspondente.
- Bem, em 1926 não existia
nada do que relatei, nem parecido, para complicar a vida, esqueça os amigos,
você é uma exceção, ganhou um Pulitzer e um Nobel de literatura e
toda uma vasta vida literária com aquelas farras todas aí na Europa.
- Você não estaria delirando?
Que época é essa, pois aqui também temos carros, por exemplo, os Panhard,
os Mercedes, os Ford T a gasolina, fiacres, mas não escutamos nada
dentro deles, nem temos nada para ver em aparelhinhos. E os telefones, que eu
saiba, são enormes e pendurados nas paredes dos bares! Isso só pode ser um
devaneio seu.
- Calma, esses aparelhinhos
você não irá conhecer, e os meus escritos não vão chegar nem perto do que você
realizou ao longo da vida.
- Você conhece tudo sobre mim?
- Até os gatos de Hemingway,
lá na sua casa em Key West.
- Sim, os meus gatos de seis
dedos, você os viu?
- Não, minha esposa me contou,
porque esteve lá.
- O que mais sabe?
- Tudo, em todas as suas fases
da vida, até coisas desagradáveis e você jamais saberá nada sobre mim. É a
única coisa melhor que você que possuo.
- Se você continuar contando, talvez
o conheça melhor, mas, por favor, sem delírios.
- Pois é, foi num momento como
sempre, deitado e olhando o tal celular, que resolvi desligá-lo e peguei o
primeiro livro na mesa de cabeceira. Seria o meu terceiro desvio de uma
realidade assustadora que me pressionava. Por acaso foi você, Ernest, e
o livro, "O Sol Também se Levanta".
- Você não havia lido este
livro?
- Ezra Pound certa vez
também lhe disse que não havia lido Dostoievski e os outros russos.
- Tem razão, fiquei
furioso com ele.
- Já tinha lido
outros livros seus, como "Por Quem os Sinos Dobram" e
também "O Velho e o Mar", mas este, por acaso e apesar de o
ter há muito tempo, ainda não o havia sequer folheado.
- Ainda bem que já me conhecia
de outros e, claro, não ficou surpreso com a minha narrativa neste livro.
- Você, Ernest, foi
a minha redenção e a libertação do poço que se abria à minha frente.
- Mas como
eu, Hemingway, posso ter colaborado para que você se libertasse
assim? Afinal, com tantas coisas que nem conheço, aparelhos em que as notícias
entram pela sua casa, disquinhos de música, telefone que cabe na palma da mão,
ainda é infeliz e entrando em depressão?
- Eu estava me sentindo mais
ou menos como você naquele hospital quando foi atingido pelos estilhaços de uma
bomba em 1918. Eu também fiquei hospitalizado por algum tempo, também fiquei
ruim, mas não me apaixonei, como você na Cruz Vermelha em Milão, só continuei
usando muito o tal aparelhinho, veja, até lá no hospital.
- Onde você está agora?
- Estou no Brasil em 2017, na
mesma América do Sul que o Robert Cohn queria trazer
você, lembra?
- Mas eu estou em 1926 neste
livro e em Paris, como é possível? Só pode ser algum engano.
- É possível sim, Ernest, você
está onde eu estive muitos anos, só que em 1926. Você, neste livro, faz parte
da Génération Perdue, a geração
perdida, os extraditados, como diz a Gertrude Stein, com os seus amigos,
Harold Loeb, John dos Passos, Ezra Pound, Lady
Duff Twysden, Pat Guthrie, T.S Eliot, F. Scott Fitzgerald,
Ford Madox Ford, James Joyce dentre muitos outros, e me
fez viajar novamente.
- Como assim, eu o fiz viajar?
Como você conhece os meus amigos?
- Conheço-os dos livros seus
que li e dos seus personagens em que se transformaram os seus amigos. Gostaria
de tê-los conhecido pessoalmente.
- Vamos lá, continue, estou
intrigado e quero entendê-lo melhor.
- Desde o início, nas
primeiras páginas, quando começa a andar por Paris, com Harold Loeb,
pelos bares, acompanhado daquele que você transformou em Robert Cohn o
judeu, fui puxado para dentro da sua estória e comecei a andar pela Paris de
1926, apesar de já conhecer a cidade, pois eu andei durante muitos anos pela
mesma Paris, só que a dos anos 70, 80, 90. Foram mais de trinta anos andando
por aí, tenho muita saudade, por isso mergulhei fundo dentro da
sua estória.
- Realmente, você tem razão,
Paris é fascinante nos anos vinte, e nós temos uma turma da pesada, nos
embriagamos quase que diariamente, somos companheiros de farras homéricas
vivendo muito os dias e as noites. Somos os "Roaring Twenties", vivemos
a vida como deve ser vivida.
- Você, me livrou de um
modernismo armadilha e me devolveu à literatura, com as farras e loucuras
protagonizadas aí em Paris, porque você é mais ou menos o meu espelho,
compreende agora?
- Começo a perceber o quanto
você estava precisando disso e o quanto eu posso ter contribuído para os
seus sonhos.
- Viajei muito com vocês,
voltando aos bulevares, como o Saint-Germain, andando
por Saint-Jacques, entrando e saindo de restaurantes e bares
em Denfert-Rochereau, sorvendo as suas Histórias, passeando
por Montmartre, comendo no Quartier Latin, juntos
no Le Pré Aux Clercs, passeando nas margens e pontes do
Sena, bebericando em Montparnasse, no Marais ou nos "presque
toujours", Le Deux Magots, no Flore,
na Brasserie Lipp's e no indefectível La Closerie des Lilás, onde
você come aquelas ostras extraordinárias. Vocês realmente vivem muito os
dias e principalmente as noites de Paris.
- Acho que você gostou de ter
andado conosco pelas Brasseries, pelos cafés que frequentamos neste livro.
- Pena que você não conheceu o
restaurante "León de Bruxelles" que tem umas "moules"
maravilhosas servidas com batatas fritas, mas só foi aberto em Paris em 1989,
na Praça da République, apesar de já existir na Bélgica no Chez León desde
1867.
- Pois é, talvez agora você
consiga entender o porquê das minhas saídas e voltas à Europa e da depressão
que isso me causou, com aquele triste final.
- É, foi realmente uma pena
ter sido daquela maneira. Sabe, também tive as minhas loucuras em Paris. Tive
uma namorada em Paris e andei com ela por grande parte da França fazendo um
monte de farras. Depois, tive outra linda garota, quando sustentei o seu olhar
em um restaurante. Também era enfermeira como a Agnes, no Hôpital Saint-Jacques. Uma outra
vinha de trem da Alemanha se encontrar comigo aí em Paris. Essa era a minha
"moveable feast" como escreveu você antes de partir.
- Você, pelo visto, não perde
muito para os meus personagens. Por acaso também era um extraditado?
- Não, sempre estive a trabalho
e uma só vez em férias na casa da minha namorada francesa de Brie, em Paris.
- Você se lembra de ter lido
sobre a Brett, a mulher por quem eu era apaixonado e me seguia o
tempo todo mas não me queria, preferindo os meus amigos? Até com o judeu
do Robert Cohn ela saiu, para meu desespero
silencioso.
- Lady Duff Twysden que
você transformou em Brett Ashley? Claro que lembro, afinal é
uma das principais personagens da estória e o seu calcanhar de aquiles, porque
você a ama do princípio ao fim do livro. Eu também tive uma do tipo Brett,
foi a Jacquie que conheci na rua e ela nunca me largava,
estando sempre à minha espera quando chegava, mas não fui apaixonado como você.
Era muito companheira e fizemos apenas boas farras parisienses, pois isso
só acontece aí em Paris.
- Também poderia escrever um
livro sobre tudo isso. Que tal?
- Não, já basta que você tenha
me levado ao encontro de um passado em que fui muito feliz apesar de épocas
diferentes, mas na mesma cidade e também porque recordei com saudade, como
corria apaixonado pelos corredores do metrô atrás daquela que hoje é a minha
esposa. Tenho muitas estórias com a cidade.
- Que bom, e você vai
continuar me visitando em outras obras?
- Sem dúvida, agora que você
me devolveu à literatura, o prazer e a liberdade de estar com um bom livro, ao
invés de preso, cativo de modernismos e péssimas notícias, estarei sempre
visitando-o. Só fiquei triste mesmo, quando vocês resolveram ir para Pamplona,
passando por Hendaye, Bayonne e Roncesvalles, lugares que
não consegui chegar para fazer o caminho de Santiago, depois de estar muito
preparado, mas sendo atraiçoado pela politicalha neste país.
- Que pena que não conseguiu
vir a estes lugares, mas um dia você vem aqui a Pamplona, vai se hospedar
no hotel Montoya e se lembrar muito de nós.
- Claro, só não vou às
touradas que você tanto gosta e é aficionado, mas continuo viajando
com vocês, pois gosto muito dessa região e adorei a pescaria de trutas que você
e o Bill fizeram nos rios daquelas montanhas.
- Há mais o que fazer em toda
esta bela região, como beber muito vinho, de dia e a noite toda.
- Sabe, somos muito parecidos,
como disse antes, você é o meu espelho porque também sempre me apaixonei
intensamente, tenho quase certeza que você esteve comigo aí em Paris e agora
não tenho mais dúvida de quem colocou o seu livro à minha mão na cabeceira,
dentre tantos que lá estão.
- Quem sabe? E nós
conversaremos novamente quando?
- Provavelmente mais cedo do
que pensa. Da próxima vez vou a 1929 em sua outra obra "Adeus
às Armas", conhecer o tenente Frederic Henry,
aliás você, que como condutor de ambulâncias conheceu seu grande amor, a
enfermeira inglesa Agnes Von Kurowski ou como você a
definiu no livro, Catherine Barkley.
- Está bem, fico aguardando e
foi um prazer reencontrar você.
- Antes de ir diga-me, Jake,
depois que seus amigos retornaram a Paris, quando a fiesta de San Fermino
terminou você foi a San Sebástian, achando que lá encontraria a Brett?
- Eu não escrevi isso no
livro, porque fiquei arrasado por ela ter ido para Madri com aquele jovem
toureiro, o tal do Romero, mas você acertou na mosca. Me
conhece mais do que eu pensava.
- Agora me responda, você foi
correndo ao encontro dela em Madri depois que ela pediu socorro por telegrama,
e foram jantar no Botín, certo?
- Sim e daí?
- Como conseguiram beber
aquelas cinco garrafas de vinho Rioja Alta, naquele jantar sem ficarem
embriagados?
- Isso é o amor, meu caro, e
assim consegui convencê-la de uma vez por todas a ficar comigo, depois daquele
passeio de carro, após o jantar.
- Paris foi e será sempre uma
festa, Ernest, em qualquer década em que tenhamos estado por aí,
obrigado mais uma vez e até 1929.
Título, Imagens e Texto: José Manuel - que viagem maravilhosa.
De vez em quando o passado pode estar mais presente que nunca, sem que nos
apercebamos. 10-4-2017
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Fantástico! Você deveria escrever um livro de verdade, meu titiozão! Parabéns! Leitura deliciosa!
ResponderExcluirERNEST HEMINGWAY, sua frase predileta era:
ResponderExcluir- il faut d'abord durer.
O última apaga a luz...
Por isso suicidou...
É, mas ao ler Adeus à s Armas, dá para entender o porquê do suicídio e da forma que foi.
ResponderExcluirJá no primeiro livro que é pesadíssimo pela passagem da guerra na Itália e as perdas simultâneas do filho e mulher, ao final não ia dar em outra coisa
José Manuel
Bem JM, eu não acredito em FATALIDADES.
ExcluirACREDITO PIAMENTE EM ERROS HUMANOS.
Por mais razões que algum psicólogo e afins me mostrarem, o SUICÍDIO É O MAIOR ERRO HUMANO.
A morte é uma promissória paga, o tempo nos faz fugirmos do resgate.
Os atos desesperados, frente às agruras da vida, não nos tornam mártires ou exemplos, ficam para as estatísticas.
Dia 09/10 de 2014 O meu amigo Jocafer, jogou fora suas vida, virou nota da Fentac, e nada mais, do que estatística.
Muitos falam que não devemos sobrepor a razão acima do emocional e deixar as emoções dominarem sua mente.
Eu discordo, enquanto houver um sopro de vida, quero ser completamente racional.
O desesperado mata por amor, o irracional por prazer, o emocional por egoísmo pessoal, e o racional apenas para defender a vida.
Adoro EH.
No livro "O sol também se levanta" baseado num trecho bíblico:
“Uma geração vai-se, e outra vem, mas a terra permanece para sempre”(Eclesiaste 1:4).
É uma declaração de vida.
Vou declarar que há TEMPO DE VIVER e que não HÁ TEMPO DE MORRER, virá, mas nego-me a apressá-lo.
fui...
Zé
ResponderExcluirSeu amigo Vander, com muita propriedade, nos dá uma lição de vida.
A vida, dentro de uma liberdade plena, não têm coisa melhor para se curtir.
Abraços
Avellar