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“Circe e Seus Porcos” por Briton Rivière (1840-1920) |
Rui Ramos
Passos Coelho representa na política
portuguesa aqueles que não se querem adaptar ao domínio do governo pelos
ex-ministros de José Sócrates. Vai um PSD pós-Passos desistir dessa causa?
Por consenso, o país oficial
decidiu que as autárquicas eram a ocasião para Passos Coelho se retirar. O
próprio admitiu que talvez não continue. O que quer dizer que o PSD pode estar
à beira de uma descoberta dramática. Muitas boas almas parecem convencidas de
que outro líder terá vida mais fácil. Imaginem: alguém que nunca teve de cortar
pensões! Infelizmente, é uma ilusão.
Passos foi primeiro-ministro
quatro anos e meio, mais tempo do que qualquer outro líder do PSD, com excepção
de Cavaco Silva; ganhou duas eleições legislativas, como só Sá Carneiro e
Cavaco Silva ganharam. Se nem mesmo assim o pouparam a uma contínua verrina
interna, como será com um líder sem estes pergaminhos? Até porque o contexto
não vai melhorar. Um novo presidente do PSD terá de enfrentar imediatamente
este problema estratégico: prosseguir a política de Passos, e ver-se acusado de
ser o “Passos número 2”; ou mudar, e ver-se suspeito de ser um peão de António
Costa.
O problema do PSD não é Passos
Coelho, mas este: o PS, desde o fim do governo de Cavaco Silva, transformou-se
no partido do Estado e das clientelas do Estado, que são, neste como em
anteriores regimes, a base do poder político em Portugal. Domina quem, a partir
do Estado, tem meios para multiplicar e alimentar bocas. Nos últimos vinte
anos, o PSD nunca teve esses meios. Apanhou sempre o lado mau do ciclo da
governação, quando, após uma temporada de despesismo socialista, foi preciso
congelar e cortar — em 2002 e em 2011. O PS pôde governar sozinho, em maioria
ou em minoria, em ambiente geralmente de optimismo e consenso; o PSD teve de
governar em coligação, no meio de toda a espécie de crispações.
Previsivelmente, o PS emergiu como o “partido natural do governo”, o guardião
do “sistema”, o abrigo dos interesses. A aliança de Ricardo Salgado com José
Sócrates é a prova mais clara de como os poderes fáticos da sociedade
portuguesa reconheceram os socialistas como interlocutores privilegiados.
A questão é saber se a
sociedade portuguesa tem força para desejar outra coisa que não privilégios e
benesses do Estado. Durante o ajustamento de 2011-2014, julgou-se que sim. Já
se percebeu, entretanto, que não. Basta recordar a última campanha autárquica,
e os subsídios, as casas, os benefícios fiscais prometidos em troca de votos.
Passos Coelho nunca teve
ilusões a esse respeito. Por isso, pareceu que esperava nova emergência
financeira, o que autorizou muita gente a declará-lo refém do passado. Não era
isso. Simplesmente, não via em Portugal outro meio de rotação no poder. É a
lição de 2001 e de 2011. Vai o PSD esperar, continuar a propor outro modo de vida,
e sujeitar-se assim ao cerco oligárquico que sofreu Passos? Ou vai, pelo
contrário, entrar no mercado de “entendimentos” que o PS já abriu com o PCP e o
BE? A segunda opção tem um preço: a redução do PSD, que tem sido a alternativa
ao PS, a um simples lóbi da governação socialista. É a mais antiga aspiração do
PS: poder tratar o PSD e o CDS como os equivalentes da direita do PCP e do BE.
Teríamos um regime com um partido grande e quatro partidos pequenos, com quem o
partido grande rodaria na governação, umas vezes mais à esquerda, outras mais à
direita.
Por convicção, percurso ou
feitio, Passos representa na política portuguesa aqueles que não se querem
adaptar ao continuado domínio do governo pelos ex-ministros de António Guterres
e de José Sócrates. Por isso, Passos foi tão atacado como Sá Carneiro, que
também nunca se conformou com os arranjos oligárquicos do seu tempo. Mas o
resto do PSD? Ter-se-á já convencido de que não vale a pena resistir? A caverna
de Costa é tão tentadora como a de Circe. Irão mais uma vez os companheiros de
Ulisses transformar-se em porcos?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
3-10-2017
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