Vitor Cunha
Aqui, que ninguém nos ouve,
tenho a dizer que isto de ver facadas no PSD é um daqueles entretenimentos que
cultivo com a morbidez característica dos há-muito desiludidos. Há muito, muito
tempo, que o PSD não é bem um partido, é mais uma amálgama de inevitáveis
adversários aos detentores oficiais do regime e que, por inerência da
constitucional função de assegurar uma aura de pluralismo a este país onde
Judas deixou as botas retidas num condomínio que impediu alojamento local, lá
vai chegando ao poder para distribuir algum bem-estar pelos mais lestos a
perceberem o funcionamento da coisa. A República 25 de Abril, aquela em que
nasci, caracteriza-se por ser um daqueles regimes africanos com particular
apetência para o teatro. É um regime de tal forma dotado de talento
representativo que consegue convencer meia-ONU e os cinzentos distraídos de
Bruxelas que até é uma democracia. Somos mesmo muito bons nisso: convencemos as
pessoas de que podem escolher alguma coisa, elas vão lá voluntariamente (cada
vez menos, é certo), e toda a gente fica convencida que escolheu mesmo alguma
coisa. “Para a próxima és tu”, deverá dizer-se algures em corredores cheios de
aspirantes à arte de representar sem cara de pau.
O regime é do PS. O dinheiro é
do PS. O PS dá. Toda a gente sabe disso. O PSD existe porque um regime precisa
de oposição para aparentar alguma seriedade.
De vez em quando, uns patuscos
do PSD lembram-se da ideia do Bloco Central. Para quem não sabe, o Bloco
Central é aquele arranjo que, quando possível, permite que toda a gente faça
pela vidinha ao mesmo tempo em vez de ter que andar à espera das sobras de quem
andou a fazer pela vidinha antes. Seria de supor que o Bloco Central geraria a
situação mais favorável para a população: as coisas mantinham-se estáticas, não
era preciso mudar os programas do Ministério da Educação de quatro em quatro
anos, quem já tinha escolhido o BMW só tinha que o ir trocando pelo modelo
superior e toda a gente poderia começar a viver uma vida tranquila sem ter que
optar por um ou outro clube de forma tão tribalista. Porém, as coisas não são
assim porque os recursos são limitados. De forma a que se possa esmifrar o mais
possível no mais curto espaço de tempo, torna-se necessário que sejam poucos a
simultaneamente fazer o mesmo. Por outro lado, é preciso culpar alguém quando
as coisas correm mal — daí que seja conveniente para todas as partes ir
aceitando o jogo da alternância.
Para se constituir um Bloco
Central é necessária a colaboração do CDS. Para que aconteça, o CDS tem que
fingir ser um partido de extrema-direita, extremamente conservador, beato, um
cliché contrastante com o do típico comunista ateu da Dialética. Isso permite
que a comunicação social identifique o PSD como estando à esquerda do CDS, a
condição necessária para o PS poder “dar-se” com esse partido da oposição por
definição. É que isto das coligações, em Portugal, só funciona com adjacentes.
Ora, atualmente, o CDS sabe que não vem nada ao caso essa coisa do Bloco
Central, vai daí, toca a posicionar-se ao lado do PS, impedindo a possibilidade
dos patuscos se sentarem na cadeira do lado. É relativamente fácil de
conseguir: já foi tratando a Direita (e “Direita” significa “aquele que está
para lá do PS num dado momento”) por “fascista”, agora é mais ou menos da mesma
maneira, adaptando apenas o léxico à contemporaneidade (“liberal”, “radical”,
“extremista”, “racista”, “xenófobo”, “pessoa que não frequenta buracos de
Formentera”,…)
Vai daí, não há ninguém para
substituir Passos Coelho no PSD. O PS precisa que o PSD mantenha a etiqueta de
extrema-direita que lhe colou, com a ajuda (ou sentido de oportunidade) do CDS.
Não há ninguém para ocupar esse lugar ingrato. É por isso que, caso o PS venha
a perder a maioria absoluta que lhe está destinada nas próximas legislativas,
ganhando apenas as eleições (Costa é bastante aselha no que concerne a ganhar
eleições — é mau ator), não será necessária nova Geringonça: o CDS, depois
desta legislatura como partido adjacente, estará disposto a providenciar o
apoio parlamentar necessário.
Quem tem fama precisa do
proveito.
Para substituir Passos seria
necessário alguém que abraçasse a etiqueta (ridícula, por sinal) de
extrema-direita. Mais ninguém no PSD está disposto a isso — só se for parvo. E,
para Bloco Central, tal nunca seria necessário: a cadeira do partido adjacente
está ocupada por Assunção Cristas. Não é Passos que é um estorvo para o PSD: o
PSD é que se está a tornar num estorvo para Passos Coelho.
Já agora, ouvi David Dinis na
TSF, hoje, a dizer que está aberta uma crise no PSD. É mentira. A crise no PSD
abriu-se na noite do dia 5 de junho de 2011.
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias,
2-10-2017
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