Athanasius Schneider
Em toda a tradição católica, a questão
de como se comportar com um papa herético ainda não foi tratada, em termos
concretos, de modo a obter algo que se assemelhe a um verdadeiro consenso
geral. Até agora, nem um papa nem um concílio ecumênico formularam declarações
doutrinárias relevantes ou emitiram normas canônicas vinculantes sobre como
lidar com um papa herético durante o período de seu mandato.
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Papa Francisco e Dom Anthanasius Scheider |
Não há nenhum caso histórico de perda
de um pontificado por um papa durante seu mandato devido à heresia ou suposta
heresia. O Papa Honório I (625-638) foi excomungado postumamente por três
concílios ecumênicos (o Terceiro Concílio de Constantinopla de 681, o Segundo
Concílio de Nicéia de 787 e o Quarto Concílio de Constantinopla de 870) porque
apoiou a doutrina herética daqueles que promoveram o Monotelismo, contribuindo
assim para espalhar esta heresia. Na carta com a qual ele confirmou os
decretos do Terceiro Concílio de Constantinopla, o Papa São Leão II (682-683)
lançou o anátema sobre o Papa Honório (”anathematizamus Honorium”),
afirmando que seu predecessor “não esclareceu esta Igreja apostólica com a
doutrina da tradição apostólica, mas procurou subverter a fé imaculada com uma
traição ímpia” (Denzinger-Schönmetzer, 563).
O Liber Diurnus Romanorum
Pontificum, uma coleção heterogênea de formas usadas na chancelaria papal
até o século 11, contém o texto do juramento papal, segundo o qual todo novo
papa, ao tomar posse, tinha que jurar que “reconhece o Sexto Concílio Ecumênico
que golpeou com eterno anátema os criadores da heresia (monotelita), Sérgio,
Pirro etc., juntamente com Honório” (PL 105, 40-44).
Em alguns Breviários até o século XVI
e XVIII, o Papa Honório foi mencionado como herege nas lições das Matinas
do 28 de junho, festa de São Leão II: “In synodo Constantinopolitano
condemnati sunt Sergius, Ciro, Honório, Pirro, Paulus e Petrus nec non et
Macarius, cum discipulo seu Stephano, sed et Polychronius et Simon, qui unam
voluntatem et operationem in Domino Jesu Christo dixerunt vel praedicaverunt”. A
presença desta leitura em alguns Breviários ao longo de muitos séculos mostra
que muitas gerações de católicos não consideraram escandaloso que um papa em
particular, e em um caso muito raro, tenha sido considerado culpado de heresia
ou de favorecer a heresia. Naqueles tempos, os fiéis e a hierarquia da
Igreja distinguiam claramente entre a indestrutibilidade da fé católica
divinamente garantida pelo Magistério da Sé de Pedro e a infidelidade e traição
de um único papa no exercício concreto de seu ofício magistral.
Dom John Chapman, em seu livro “A
Condenação do Papa Honório” (Londres, 1907), explica que o Terceiro Concílio
Ecumênico de Constantinopla, que lançou o anátema sobre o Papa Honório,
determinou uma clara distinção entre o erro de um único papa e a inerrância na
fé da Sé Apostólica como tal. Na carta ao papa Agatão (678-681) pedindo-lhe
para aprovar as decisões conciliares, os Padres do Terceiro Concílio Ecumênico
de Constantinopla afirmam que Roma tem uma fé infalível, promulgada com
autoridade para toda a Igreja pelos bispos da Sé Apostólica, os sucessores de
Pedro. Pode-se perguntar: como foi possível o Terceiro Concílio Ecumênico
de Constantinopla afirmar isso e, ao mesmo tempo, condenar um papa como
herege? A resposta é bem clara. Papa Honório era falível, ele estava
errado, ele era um herege, precisamente porque não reafirmou com
autoridade, como devia, a tradição petrina da Igreja Romana. Ele não
apelou para essa tradição, mas simplesmente aprovou e espalhou uma doutrina
incorreta. Mas, uma vez desaprovadas por seus sucessores, as palavras do
Papa Honório I tornaram-se inofensivas para a inerrância na fé da Sé
Apostólica. Elas foram reduzidas ao seu verdadeiro valor, ou melhor, à
mera expressão de sua opinião pessoal.
O papa Santo Agatão não se deixou
confundir e nem abalar pelo comportamento deplorável de seu predecessor Honório
I, que contribuiu para espalhar a heresia, mas manteve sua visão sobrenatural
na inerrância da Sé de Pedro ao ensinar a fé, como escreveu aos imperadores em
Constantinopla: “Esta é a regra da verdadeira fé, que esta mãe espiritual do
seu pacífico império, a Igreja Apostólica de Cristo (a Sé de Roma) sempre
manteve e defendeu com energia tanto na prosperidade como na
adversidade; que, pela graça do Deus Todo-Poderoso, como será demonstrado,
ela nunca se desviou do caminho da tradição apostólica, nem foi ela adulterada
cedendo a inovações heréticas, mas desde o princípio recebeu a fé cristã de
seus fundadores, os príncipes dos Apóstolos de Cristo, e permanecerá inalterada
até o final, de acordo com a promessa divina do mesmo Senhor Salvador, que
anunciou nos Santos Evangelhos ao príncipe dos seus discípulos, dizendo:
“Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas
eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez,
confirma os teus irmãos.” (Ep. “Considerando mihi” ad Imperatores).
Dom Prosper Guéranger deu uma breve e
lúcida explicação teológica e espiritual deste caso concreto de um papa herege,
dizendo: “Que aplausos nos abismos quando, um dia, o representante d’Aquele que
é a luz apareceu como cúmplice do poder das trevas para trazer a noite! Uma
nuvem pareceu interpor-se entre o céu e os montes onde reside Deus no seu
vigário; sem dúvida, o aporte social da intercessão não tinha sido como que
devia” (L’Année liturgique, Paris 1911, vol. 3, p. 403).
Há também o fato de que por dois mil
anos nunca houve um caso em que um papa foi declarado deposto por causa do
crime de heresia durante seu pontificado. O papa Honório I foi
anatematizado somente após sua morte. O último caso de um papa herege ou
quase herético foi o do Papa João XXII (1316-1334), quando ensinou a teoria
segundo a qual os santos desfrutariam da visão beatífica somente após o
Julgamento Universal, na segunda vinda de Cristo. O caso foi abordado da
seguinte maneira: houve admoestações públicas (da Universidade de Paris e do
rei Filipe VI da França), uma refutação das teorias papais por meio de várias
publicações teológicas e uma correção fraterna do cardeal Jacques Fournier, que
mais tarde sucedeu a João XXII com o nome de Bento XII (1334-1342).
A Igreja, nos raros casos concretos de
um pontífice que incorre em sérios erros teológicos ou heresias, certamente
pode continuar a viver. A prática da Igreja até agora tem sido deixar o
julgamento final sobre um papa herético reinante para seus sucessores ou para
um futuro concílio ecumênico, como no caso do papa Honório I. O mesmo
provavelmente teria acontecido com o papa João XXII, se ele não tivesse se
retratado de seu erro.
Os pontífices foram depostos várias
vezes por poderes seculares ou por grupos criminosos. Isso aconteceu
especialmente durante o “saeculum obscurum”, o chamado século escuro
(século X e XI), quando os imperadores alemães depuseram vários papas indignos,
não por causa de heresia, mas por causa de sua escandalosa vida imoral e seus abusos
de poder. No entanto, eles nunca foram depostos por meio de um
procedimento canônico, sendo isso impossível por causa da estrutura divina da
Igreja. O papa recebe sua autoridade diretamente de Deus e não da
Igreja; portanto, a Igreja não pode depô-lo, por qualquer motivo que seja.
É um dogma de fé que o papa não pode
proclamar uma heresia quando ensina ex cathedra. Esta é a
garantia divina de que as portas do inferno não prevalecerão contra a cátedra
veritatis, que é a Sé Apostólica do Apóstolo São Pedro. Dom John
Chapman, especialista na história da condenação do Papa Honório I, escreve: “A
infalibilidade é, por assim dizer, o vértice de uma pirâmide. Quanto mais
solenes os pronunciamentos da Sé Apostólica, mais podemos ter certeza da sua
verdade. Quando eles atingem o máximo da solenidade, ou seja, quando eles
são ex cathedra em senso estrito, a possibilidade de erro é
completamente eliminada. A autoridade de um papa, mesmo nas ocasiões em
que não é realmente infalível, deve ser obedecida e reverenciada. Que
possa estar do lado errado é uma contingência que a história e a fé mostram
como possível “(The Condenation of Pope Honourius, Londres, 1907, p. 109).
Se um papa espalha erros doutrinários
ou heresias, a estrutura divina da Igreja já fornece um antídoto: a suplência
ministerial dos representantes do episcopado e do indefectível sensus
fidei dos fiéis. Nesta matéria, o fator numérico não é
decisivo. Basta ter apenas um par de bispos que proclamam a integridade da
fé e, assim, corrigem os erros de um papa herege. É suficiente que os
bispos instruam e protejam seu rebanho dos erros de um papa herege e que seus
sacerdotes e os pais de famílias católicas façam o mesmo. Além disso, como
a Igreja é também uma realidade sobrenatural, um mistério, um único organismo
sobrenatural, o Corpo Místico de Cristo, os bispos, padres e fiéis leigos –
além de correções, apelos, profissões de fé e resistência pública – devem
necessariamente realizar atos de reparação e de expiação à Divina Majestade
pelas heresias do Papa. De acordo com a constituição dogmática Lumen
gentium (cf. n° 12) do Concílio Vaticano II, todo o corpo de fiéis não
pode errar na fé, quando desde os bispos até os últimos fiéis leigos
compartilham um consenso universal numa matéria de fé e moral. Mesmo que
um papa esteja espalhando erros teológicos e heresias, a Fé da Igreja como um
todo permanecerá intacta por causa da promessa de Cristo sobre a assistência
especial e a presença permanente do Espírito Santo, o Espírito da verdade, em
sua Igreja (cf. Jo 14,17; 1 Jo 2,27).
Quando, por uma permissão inescrutável
de Deus, em um determinado momento da história e em um caso muito raro, um papa
espalha erros e heresias através de seu magistério ordinário e quotidiano não
infalível, a Providência divina desperta ao mesmo tempo o testemunho de alguns
membros do colégio episcopal e também os fiéis, para compensar as falhas
temporárias do Magistério Pontifício. Deve ser dito que tal situação é
muito rara, mas não impossível, como mostra a história da Igreja. A Igreja
é verdadeiramente um único corpo orgânico, e quando há uma enfermidade ou falha
na cabeça (o papa), o resto do corpo (os fiéis) ou partes eminentes dele (os
bispos) compensam os erros papais temporários. Um dos exemplos mais
famosos e trágicos de tal situação ocorreu durante a crise ariana do século
quarto, quando a pureza da fé foi mantida não tanto pela ecclesia
docens (papa e episcopado), mas pela ecclesia docta (os
fiéis), como afirmou o Bem-aventurado John Henry Newman.
A teoria ou opinião da perda do
ministério papal por deposição ou por declaração da perda ipso
facto, identifica implicitamente o papa com toda a Igreja ou manifesta a
atitude doentia de um “centrismo papal”, em última análise, de
papolatria. Os defensores dessa opinião (especialmente alguns santos)
manifestaram um ultramontanismo exagerado ou “centrimo papal”, fazendo do
pontífice uma espécie de semi-deus, que não pode cometer erros, mesmo em
assuntos fora do objeto da infalibilidade papal. Assim, um papa que comete
erros doutrinários – o que teórica e logicamente inclui também a possibilidade
de cometer o mais grave erro doutrinário, isto é a heresia – é insuportável ou
impensável para os seguidores dessa opinião (ou seja, a deposição de um papa e
a perda de seu ofício por causa da heresia), mesmo se o papa incorre nesses
erros em questões alheias ao objeto da infalibilidade papal.
A teoria ou opinião teológica de que
um papa herege pode ser deposto ou vir a perder o cargo era desconhecida no
primeiro milênio. Originou-se apenas no início da Idade Média, numa época
em que o papo-centrismo atingia o seu auge, quando o papa foi inconscientemente
identificado com a Igreja inteira. Isto já prefigurava, em sua raiz, a
atitude mundana de um príncipe absolutista segundo o lema: “L’État, c’est moi!”
Ou, em termos eclesiásticos: “Eu sou a Igreja!”.
A opinião de que um papa herege perde
seu ofício ipso facto tornou-se comum entre os teólogos desde
o início da Idade Média até o século XX. Continua, porém, sendo uma mera
opinião teológica e não um ensinamento da Igreja e, portanto, não pode
reivindicar o título de um verdadeiro ensinamento constante e perene da Igreja,
uma vez que nenhum concílio ecumênico e nenhum papa apoiaram explicitamente
essa opinião. De fato, a Igreja condenou um papa herético, mas somente
após sua morte e não durante seu pontificado. Mesmo que alguns doutores
sagrados da Igreja (por exemplo, S. Roberto Bellarmino e S. Francisco de Sales)
apoiem tal opinião, isso não prova sua certeza ou um consenso doutrinário
universal. Até os doutores da Igreja incorreram em erros; foi, por
exemplo, o caso de São Tomás de Aquino sobre a questão da Imaculada Conceição,
da matéria do sacramento da Ordem ou o caráter sacramental da ordenação
episcopal.
Houve um período na Igreja em que, por
exemplo, prevaleceu uma opinião teológica comum, objetivamente errada, segundo
a qual a entrega dos instrumentos era a matéria do sacramento da
Ordem; uma opinião, no entanto, que não podia invocar antiguidade ou
universalidade, mesmo que tivesse sido apoiada por um papa (pelo decreto de
Eugênio IV) por um tempo limitado ou por livros litúrgicos (também por um curto
período). Essa opinião comum foi, no entanto, corrigida por Pio XII em
1947.
A teoria da deposição de um papa
herético ou da perda de seu cargo ipso facto devido à heresia
é apenas uma opinião teológica, que não satisfaz as categorias teológicas
necessárias de antiguidade, universalidade e consenso (semper, ubique, ab omnibus). Não
houve declarações do Magistério universal ordinário ou do Magistério pontifício
em apoio às teorias da deposição de um papa herege ou da perda de seu
ofício ipso facto por causa da heresia. Segundo uma
tradição canônica medieval, posteriormente coletada no Corpus Juris
Canonici (a lei canônica válida na Igreja latina até 1918), um papa
poderia ser julgado em caso de heresia: “Papa a nemine est iudicandus, nisi
deprehendatur a fide devius”, quer dizer, que “o papa não pode
ser julgado por ninguém, a menos que seja flagrado desviando-se da fé
“(Decretum Graciano, Prima Pars, dist. 40, c. 6, 3. pars). O Código de
Direito Canônico de 1917, no entanto, eliminou a norma do Corpus Juris
Canonici, que falava de um papa herético. O Código de Direito Canônico
de 1983 também não prevê essa regra.
A Igreja sempre ensinou que até mesmo
uma pessoa herética, automaticamente excomungada por causa de heresia formal,
pode validamente administrar os sacramentos e que, em um caso extremo, um padre
herege ou excomungado também pode exercer um ato de jurisdição dando a um
penitente a absolvição sacramental. As regras eleitorais papais, válidas
até Paulo VI, ele incluído, admitiam que mesmo um cardeal excomungado podia
participar da eleição e ser eleito papa: “Nenhum cardeal eleitor pode ser
excluído da eleição, ativa e passiva, do Sumo Pontífice, por causa ou com o
pretexto de excomunhão, suspensão, interdito ou qualquer outro impedimento
eclesiástico; estas censuras devem ser consideradas suspensas, mas apenas
para os fins dessa eleição” (Paulo VI, Constituição Apostólica Romano
Pontifice eligendo , 35). Esse princípio teológico também deve
ser aplicado ao caso de um bispo herege ou de um papa herege, que, apesar de
suas heresias, pode validamente realizar atos de jurisdição eclesiástica e,
portanto, não perde o cargo ipso facto devido à heresia.
A teoria teológica ou opinião que
permite a deposição de um papa herege ou a perda de seu ofício ipso
facto devido à heresia é praticamente impraticável. Se fosse
aplicada na prática, criaria uma situação semelhante à do Grande Cisma, que a
Igreja já experimentou desastrosamente no final do século XIV e início do
século XV. Na verdade, sempre haverá uma parte do Colégio Cardinalício e
uma parte considerável do episcopado mundial e também dos fiéis que não vai
concordar em considerar um erro material (ou erros materiais) do papa como
heresia formal (heresias formais), e, portanto, continuará a considerar o papa
reinante como o único papa legítimo.
Um cisma formal, com dois ou mais
pretendentes ao trono papal – que também será uma consequência inevitável da
deposição canônica de um papa – necessariamente causará mais danos à Igreja
como um todo do que um período relativamente curto e muito raro em que um papa
espalhe erros doutrinais ou heresias. A situação de um papa herege será
sempre relativamente curta, se comparada aos dois mil anos de existência da
Igreja. Neste caso raro e delicado, devemos deixar margem para uma
intervenção da Divina Providência.
A tentativa de depor um papa herege a
qualquer custo é sinal de um comportamento demasiadamente humano, o que
eventualmente reflete uma relutância em suportar a cruz temporária de um
pontífice herético. Talvez reflita também o sentimento por demais humano da
raiva. Em todo caso, oferecerá uma solução excessivamente humana e, como
tal, semelhante ao comportamento na política. A Igreja e o Papado são
realidades que não são puramente humanas, mas também divinas. A cruz de um
papa herege – mesmo quando de duração limitada – é a maior cruz imaginável para
toda a Igreja.
Outro erro na intenção ou tentativa de
destituir um papa herético consiste na identificação indireta ou subconsciente
da Igreja com o Papa ou em fazer do Papa o ponto focal da vida cotidiana da Igreja. Isso,
em última instância, significa ceder subconscientemente a um ultramontanismo
doentio, ao papo-centrismo e à papolatria, isto é, ao culto à personalidade
papal.
Na verdade, houve períodos na história
da Igreja quando, por um tempo considerável, a Sé de Pedro permaneceu
vacante. Por exemplo, de 29 de novembro de 1268 a 1° de setembro de 1271,
não houve papa nem antipapa. Portanto, os católicos não devem fazer do
pontífice, de suas palavras e de suas ações, o foco diário de sua atenção.
Os filhos de uma família podem ser
deserdados. No entanto, o pai de uma família não pode ser deserdado, não
importa quão culposamente ou monstruosamente ele se comporte. Esta é a lei
da hierarquia que Deus estabeleceu até na criação. O mesmo se aplica ao
papa, que durante o seu mandato é o pai espiritual de toda a família de Cristo
na terra. No caso de um pai criminoso ou monstruoso, as crianças devem
retirar-se dele ou evitar o contato. No entanto, eles não podem dizer:
“elegeremos um novo e bom pai para nossa família”. Seria contrário ao
senso comum e à natureza. O mesmo princípio deve, portanto, ser aplicável
à questão da deposição de um papa herege. O papa não pode ser deposto por
ninguém; só Deus pode intervir e irá fazê-lo em seu tempo, já que Ele não
comete erros em sua providência (“Deus in sua dispositione non fallitur”). Durante
o Concílio Vaticano I, Dom Zinelli, Relator da deputação da Fé, falou nestes
termos da possibilidade de um papa herege: “Se Deus permite um mal tão grande
(isto é, um papa herético), não vão faltar os meios para remediar a esta
situação “(Mansi 52, 1109).
A deposição de um pontífice herético
acabaria por favorecer a heresia do conciliarismo, do sedevacantismo e de uma
atitude mental semelhante à de uma comunidade puramente humana ou política. Também
promoveria uma mentalidade semelhante ao separatismo no mundo protestante ou ao
autocefalismo no conjunto das igrejas ortodoxas.
A teoria ou opinião que permite a
deposição ou a perda do ofício revela-se também em suas raízes mais profundas –
ainda que de modo inconsciente – uma espécie de “donatismo” aplicado ao
ministério papal. A teoria donatista identificava os ministros sagrados
(sacerdotes e bispos) quase com a santidade moral do próprio Cristo, exigindo,
portanto, para a validade de seu ofício, a ausência de erros morais ou de má
conduta em sua vida pública. De maneira similar, a teoria supracitada
exclui a possibilidade de um papa cometer erros doutrinários, isto é, heresias,
declarando seu cargo inválido ou vacante por este fato, assim como faziam os
donatistas, que declaravam inválido ou vacante o ofício sacerdotal ou episcopal
devido a erros na vida moral.
Pode-se imaginar que no futuro a
autoridade suprema da Igreja (o Papa ou o Concílio Ecumênico) poderia
estabelecer as seguintes normas canônicas ou vinculantes para o caso de um papa
herético ou manifestamente heterodoxo:
Um papa não pode ser deposto de
qualquer forma ou por qualquer razão, nem mesmo por razões de heresia.
Todo novo papa eleito que toma posse
de seu ofício é obrigado, em virtude de seu ministério como Mestre supremo da
Igreja, a fazer o juramento de proteger todo o rebanho de Cristo dos perigos
das heresias e de evitar aparência de heresia, respeitando sua obrigação de
fortalecer todos os pastores e fiéis na fé.
Um papa que espalhe erros teológicos
óbvios ou heresias ou que contribua para sua difusão com suas ações e omissões
deve ser devidamente corrigido de forma fraternal e privada pelo Decano do
Colégio dos Cardeais.
Depois de correções privadas sem
sucesso, o Decano do Colégio dos Cardeais é obrigado a tornar pública sua
correção.
Juntamente com a correção pública, o
decano do Colégio dos Cardeais deve fazer um apelo a rezar pelo Papa, para que
ele possa recuperar a força para confirmar inequivocamente toda a Igreja na Fé.
Ao mesmo tempo, o Decano do Colégio
Cardinalício deveria publicar uma fórmula de Profissão de Fé, na qual os erros
teológicos que o Papa ensina ou tolera (sem necessariamente nomear o Papa)
fossem rejeitados.
Se o decano do Colégio dos Cardeais
omitir a correção, o apelo à oração e a publicação de uma Profissão de Fé, todo
cardeal, bispo ou grupo de bispos deve fazê-lo; e se cardeais e bispos também
deixarem de fazê-lo, qualquer membro dos fiéis católicos ou qualquer grupo de
fiéis católicos deve fazê-lo.
O Decano do Colégio dos Cardeais ou um
cardeal, ou um bispo ou um grupo de bispos, ou um fiel católico ou um grupo de
fiéis católicos que fizerem a correção, pedirem orações e publicarem uma
Profissão de Fé não podem ser submetidos a sanções canônicas ou acusados de
falta de respeito pelo Papa por este motivo.
No caso extremamente raro de um papa
herege, a situação espiritual da Igreja pode ser descrita com as palavras
usadas pelo papa São Gregório Magno (590-604), que falou da Igreja de seu tempo
como “um velho navio todo quebrado, que faz água por todos os lados, e cujas
tábuas podres, na grande tempestade que o sacode todos os dias, fazem rangidos
de naufrágio” (Registrum I, 4, Ep. Ioannem episcopum Constantinopolitanum).
Os episódios evangélicos em que Nosso
Senhor acalma o mar tempestuoso e salva Pedro que estava afundando na água nos
ensinam que mesmo na situação mais dramática e humanamente desesperada de um
papa herege, todos os Pastores da Igreja e os fiéis devem acreditar e confiar
que Deus, em Sua Providência, intervirá, e que Cristo acalmará a furiosa
tempestade e devolverá a força aos sucessores de Pedro, seus Vigários na terra,
para confirmar todos os Pastores e fiéis na Fé Católica e Apostólica.
O Papa Santo Agatão (678-681), que
teve a difícil tarefa de limitar os danos causados pelo Papa Honório I à
integridade da Fé, deixou palavras vivas num apelo ardente a cada sucessor de
Pedro, que deve estar sempre ciente de seu grave dever de preservar intacta a
pureza virginal do Depósito da Fé: “Ai de mim se eu negligenciar a pregar a
verdade do meu Senhor, que eles [os antecessores] pregaram
sinceramente. Ai de mim, se eu cobrir pelo silêncio a verdade que sou
obrigado a dar ao meu rebanho, isto é, ensinar e convencer o povo
cristão. O que direi no futuro julgamento do próprio Cristo, se eu me
envergonhar – Deus me livre! – de pregar agora a verdade de suas
palavras? Que satisfação posso dar por mim, pelas almas que me foram
confiadas, quando Ele pedirá estrita conta do ofício que recebi?” (Ep.”Considerando
mihi”ad Imperatores).
Quando o primeiro Papa, São Pedro
estava fisicamente acorrentado, toda a Igreja implorou pela sua libertação:
“Pedro estava assim encerrado na prisão, mas a Igreja orava sem cessar por ele
a Deus” (Atos 12: 5). Quando um papa espalha erros ou mesmo heresias, ele
está em cadeias espirituais ou em uma prisão espiritual. Portanto, toda a
Igreja deve orar incessantemente por sua libertação desta prisão
espiritual. Toda a Igreja deve ter uma perseverança sobrenatural em tal
oração e uma confiança sobrenatural no fato de que, no fim das constas, é Deus
e não o Papa quem governa Sua Igreja.
Quando o Papa Honório I (625-638)
adotou uma atitude ambígua a respeito da propagação da nova heresia do
Monotelismo, São Sofrônio, Patriarca de Jerusalém, enviou um bispo da Palestina
a Roma, dizendo-lhe: “Vá à Sé Apostólica, onde estão as bases da doutrina
sagrada e não deixe de rezar até que a Sé Apostólica condene a nova heresia”.
Ao tratar do trágico caso de um
pontífice herege, todos os membros da Igreja, começando pelos bispos, até os
simples fiéis, devem usar todos os meios legítimos, como as correções privadas
e públicas ao papa errante, orações constantes e ardentes e profissões públicas
da verdade, para que a Sé Apostólica volte a professar claramente as verdades
divinas que o Senhor confiou a Pedro e a todos os seus sucessores. “O
Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro, não de maneira que eles
pudessem, por revelação sua, dar a conhecer alguma nova doutrina, mas que, por
assistência sua, pudessem guardar santamente e expor fielmente a revelação
transmitida pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé” (Concílio Vaticano I,
Constituição Dogmática Pastor aeternus ,cap. 4).
Cada Papa e todos os membros da Igreja
devem lembrar as palavras sábias e atemporais que o Concílio Ecumênico de
Constança (1414-1418) pronunciou sobre o Papa, considerado como a primeira
pessoa na Igreja a ser vinculada pela Fé, cuja integridade ele deve guardar
cuidadosamente: “Visto que o Romano Pontífice exerce um poder tão grande entre
os mortais, é adequado que ele esteja cada vez mais ligado aos laços
incontrovertíveis da fé e aos ritos que devem ser observados com respeito aos
sacramentos da Igreja. Por isso decretamos e ordenamos, para que a
plenitude da fé possa brilhar num futuro Pontífice Romano com um esplendor
singular desde o primeiro momento de tornar-se papa, que a partir daquele
momento em que será eleito Romano Pontífice faça a seguinte confissão e profissão
pública” (Trigésima Nona Sessão de 9 de outubro de 1417.
Na mesma sessão, o Concílio de
Constança decretou que todo novo papa eleito deveria fazer um juramento de fé,
propondo a seguinte fórmula, da qual citamos as passagens mais cruciais:
“Eu, N., eleito Papa, com o coração e
os lábios confesso e professo ao Deus todo-poderoso, que confessarei firmemente
e preservarei a fé católica de acordo com as tradições dos Apóstolos, dos
Concílios Gerais e dos outros Santos Padres. Que manterei esta fé inalterada
até o último iota e que a confirmarei, defenderei e pregarei até a morte e o
derramamento de meu sangue, e da mesma maneira que seguirei e observarei de
todas as maneiras o rito transmitido dos sacramentos eclesiásticos da Igreja
Católica”.
Quão urgente seria pôr em prática o
juramento do papa, especialmente em nossos dias! O pontífice não é um
monarca absoluto, que pode fazer e dizer o que quiser, que pode mudar a
discrição a doutrina ou a liturgia. Infelizmente, nos séculos passados –
ao contrário da tradição apostólica dos tempos antigos – o comportamento dos
papas como monarcas absolutos ou semi-deuses tornou-se tão habitualmente aceito
que chegou a influenciar as concepções teológicas e espirituais da maioria dos
bispos e fiéis, e especialmente das pessoas piedosas. O fato de que o Papa
deva ser o primeiro na Igreja a evitar as novidades, obedecendo de maneira
exemplar à tradição da Fé e da Liturgia, foi às vezes apagado da consciência
dos bispos e dos fiéis por uma aceitação cega e piedosa de uma espécie de
absolutismo papal.
O juramento papal de Liber
diurnus Romanorum Pontificum considerava como a principal exigência e
qualidade distintiva de um novo papa a sua fidelidade inabalável a tradição,
assim como foi transmitida por todos os seus antecessores: ” Nihil de
traditione, quod em probatissimis praedecessoribus Meis servatum reperi, diminu
vel vel mutare, aut aliquam novitatem admittere; sed ferventer, e verum
discipulus et sequipeda, totis viribus meis conatibusque traído conservar ac venerari“(“Nada
mudarei da Tradição que recebi, e nada do que encontrei antes de mim,
preservado por meus veneráveis predecessores, nem tocarei, alterarei ou
permitirei qualquer inovação nela; de fato, reverenciá-la-ei com ardente afeto
como verdadeiro e fiel discípulo, transmitindo-a com toda a minha força e
máximo esforço”).
O mesmo juramento papal definia, em
termos concretos, a fidelidade à lex credendi (a regra da fé)
e à lex orandi (a regra da oração). Quanto à lex
credendi (a regra da fé), o texto do juramento diz:
” Verae fidei rectitudinem,
quam Christo tradente autor para sucessores UST atque Discipulos, até
exiguitatem meam perlatam, em seus Sanctum marcos Ecclesia, totis conatibus
meis, usico a animam et sanguinem valorizar, difficultates temporumque, cum seu
adjutorio, toleranter sufferre ” ( “Prometo manter com todas as minhas
forças, até a morte e o derramamento de meu sangue, a integridade da verdadeira
fé, cujo autor é Cristo, e que, através de seus sucessores e discípulos, foi
transmitida a minha humilde pessoa e que eu encontrei em Sua Igreja. Eu também
prometo pacientemente suportar as dificuldades dos tempos”).
Em relação à lex orandi, o
juramento do Papa afirma:
” Disciplinam ritum et
Ecclesiae, inveni sicut, et Sanctis em praecessoribus Meis traditum marcos,
illibatum valorizar” (“Prometo manter inviolada a disciplina e a liturgia
da Igreja como as encontrei e como elas foram transmitidos por meus santos
predecessores”).
Nos últimos cem anos, houve alguns
exemplos espetaculares de absolutismo papal. Quando consideramos a lex
orandi, as mudanças feitas pelos papas Pio X, Pio XII e Paulo VI foram
drásticas e radicais e, no que diz respeito à lex credendi, pelo
Papa Francisco.
Pio X tornou-se o primeiro papa na
história da Igreja Latina a realizar uma reforma tão radical do Salterio (cursus
psalmorum), que levou à construção de um novo tipo de ofício divino no que
diz respeito à distribuição dos salmos. Depois, houve o Papa Pio XII, que
aprovou para o uso litúrgico uma versão latina radicalmente modificada do texto
milenar e melodioso do Vulgate Psalter. A nova tradução
latina, o chamado “Saltério Piano”, era um texto fabricado artificialmente
pelos acadêmicos e, em seu refinamento, era difícil de pronunciar. Esta
nova tradução latina, acertadamente criticada com o ditado “accessit
latinitas, recessit pietas”, foi depois rejeitada de fato por toda a Igreja
sob o pontificado do papa João XXIII. O Papa Pio XII mudou também a liturgia da
Semana Santa, um tesouro litúrgico milenar da Igreja, introduzindo parcialmente
rituais inventados ex novo. Mudanças litúrgicas inauditas
foram, porém, levadas a cabo pelo Papa Paulo VI com uma reforma revolucionária
do rito da Missa e dos outros sacramentos, uma reforma litúrgica, que nenhum
Papa antes ousou realizar com tanta radicalidade.
Uma mudança teologicamente
revolucionária foi feita pelo Papa Francisco na medida em que ele aprovou a
prática de algumas igrejas locais de admitir à Santa Comunhão “caso por caso”
adúlteros sexualmente ativos (aqueles que coabitam nas chamadas “uniões
irregulares”). Mesmo que essas normas locais não representem uma norma
geral na Igreja, constituem, no entanto, uma negação prática da verdade da absoluta
indissolubilidade do matrimónio sacramental rato e consumado. Outra
mudança radical nas questões doutrinárias é a modificação da doutrina bíblica e
do magistério bimilenar da Igreja quanto ao princípio da legitimidade da pena
de morte.
Neste contexto, destaca-se e nos faz
refletir um fato impressionante narrado na vida do Papa Pio IX: diante do
pedido de um grupo de bispos para introduzir uma pequena mudança no Canon da
Missa (inserindo o nome de São José), ele respondeu: “Eu não posso fazer isso. Eu
sou apenas o papa!”
A seguinte oração de Dom Prosper
Guéranger, na qual ele elogia o papa São Leão II por sua vigorosa defesa da
integridade da Fé depois da crise causada pelo Papa Honório I, deve ser rezada
assiduamente por cada papa e por todos os fiéis, especialmente em nosso tempo:
“Impedi, ó São Leão, o retorno de
situações a tal ponto dolorosas. Mantende o pastor acima da região das névoas
malignas que se erguem da terra; mantende no rebanho aquela oração que
deve continuamente subir da Igreja a Deus em favor dele (Atos 12: 5): e Pedro,
mesmo se ele estiver sepultado nas mais escuras prisões, não deixará de
contemplar o puro esplendor do Sol da justiça; e todo o corpo da santa
Igreja estará na luz. O corpo, de fato — diz Jesus – é iluminado pelo
olho: se o olho é simples, todo o corpo resplandece (Mt 6,22). Instruídos
por vós sobre o valor do benefício que o Senhor concedeu ao mundo quando o
estabeleceu sobre o ensinamento infalível dos sucessores de Pedro, agora
conhecemos a força da rocha que sustenta a Igreja; sabemos que as portas
do inferno não prevalecerão contra ela (ibid. 16, 18). De fato, o esforço
desses poderes do abismo nunca foi tão longe como na crise fatal [do Papa
Honório] a qual Vós colocastes o termo. ora, seu sucesso, por mais
doloroso que tenha sido, não desmentiu as promessas divinas: não é ao silêncio
de Pedro, mas ao seu ensino que foi prometida a assistência indefectível do
Espírito da verdade” (Année liturgique, Paris 1911, vol. 3, pp.
403-404).
O caso extremamente raro de um papa
herético ou semi-herético deve, eventualmente, ser suportado e sofrido à luz da
fé no caráter divino e na indestrutibilidade da Igreja e do ministério
petrino. O Papa São Leão Magno formulou essa verdade, dizendo que a
dignidade de São Pedro não foi diminuída em seus sucessores, por mais indignos
que sejam, “Cuius Dignitas etiam em haerede indignado sem déficit” (Serm.
3, 4).
Poderia ocorrer a situação
verdadeiramente extravagante de um papa que pratica abuso sexual de menores ou
de subordinados no Vaticano. O que a Igreja deve fazer nessa
eventualidade? Deveria a Igreja tolerar um predador sexual de menores ou
subordinados? Por quanto tempo a Igreja deveria tolerar tal papa? Ele
deveria perder o papado ipso facto por causa desses
abusos? Nessa situação, poderia surgir uma nova teoria ou opinião canônica
ou teológica que permitisse a deposição de um papa e a perda de seu cargo
devido a crimes morais monstruosos (por exemplo, o abuso sexual de menores ou subordinados
acima mencionados). Tal opinião seria análoga à opinião de que seria
possível a deposição de um papa ou a perda de seu cargo devido à
heresia. No entanto, essa nova teoria ou opinião (deposição de um papa e a
perda de seu cargo devido a crimes sexuais monstruosos) certamente não
corresponderia à mente e à prática perenes da Igreja.
A tolerância de um papa herético como
uma cruz não significa passividade ou aprovação de sua conduta
errônea. Tudo deve ser feito para remediar esta situação. Suportar a
cruz de um papa herege, em nenhum caso significa ser passivo ou consentir com
suas heresias. Assim como as pessoas têm que suportar, por exemplo, um
regime iníquo ou ateu como uma cruz (muitos católicos viveram sob tal regime na
União Soviética, suportando essa situação como uma cruz, num espírito de expiação),
ou como os pais devem carregar a cruz de um filho adulto que se tornou um
descrente ou imoral, ou como os membros de uma família devem carregar como uma
cruz um pai alcoólico. Os pais não podem “depor” o filho descarriado de
pertencer à família, assim como as crianças não podem “destituir’ o pai
transviado de pertencer à família ou do seu título de “pai”.
Não depor um papa herege é mais seguro
e está mais de acordo com uma visão sobrenatural da Igreja. Fazer isso,
com todas as contramedidas práticas e concretas a serem tomadas, em nenhum caso
significa passividade ou colaboração com os erros papais, mas um engajamento
muito ativo e uma verdadeira compaixão com a Igreja, que, no tempo de um papa
herege ou semi-herege, vive suas horas no Gólgota. Quanto mais um papa
dissemina ambiguidades doutrinárias, erros ou mesmo heresias, mais intensamente
brilhará na Igreja a fé católica pura dos pequeninos: a Fé de crianças
inocentes; de freiras religiosas; em particular a fé das gemas
ocultas da Igreja: as monjas de clausura; a fé dos fiéis leigos heroicos e
virtuosos de todas as condições sociais; a fé de padres e bispos.
Esta chama pura da fé católica, muitas vezes alimentada por sacrifícios e atos
de expiação, brilhará mais do que a covardia, a infidelidade, a rigidez
espiritual e a cegueira de um papa herético.
A Igreja tem um caráter tão divino que
pode existir e viver por um período limitado de tempo apesar de um papa
reinante herege, precisamente por causa da verdade de que o papa não é sinônimo
ou idêntico à Igreja. A Igreja tem um caráter tão divino que nem mesmo um
papa herege é capaz de destruí-la, apesar de prejudicar muito sua vida; porém,
sua ação tem duração limitada. A fé de toda a Igreja é maior e mais forte
do que os erros de um papa herege e esta fé não pode ser derrotada. A
constância de toda a Igreja é maior e mais duradoura do que o desastre
relativamente breve de um papa herege. A verdadeira rocha sobre a qual
reside a indestrutibilidade da Fé e a santidade da Igreja é o próprio Cristo,
sendo o papa somente seu instrumento, assim como todo sacerdote ou bispo é
apenas um instrumento de Cristo Sumo Sacerdote.
A saúde doutrinal e moral da Igreja
não depende exclusivamente do Papa, pois, pela lei divina, esta é garantida, na
situação extraordinária de um papa herético, pela fidelidade do ensinamento dos
bispos e, em última análise, também pela fidelidade de todo o corpo dos fiéis
leigos, como foi suficientemente demonstrado pelo beato John Henry Newman e
pela história. A saúde doutrinal e moral da Igreja não depende em tal grau
dos erros doutrinários de um papa, por um período relativamente curto de tempo,
como para tornar a Santa Sé vacante. Assim como a Igreja pode ficar um
tempo sem o Papa, como já aconteceu na história por um período de vários anos),
assim também a Igreja é tão forte pela sua constituição divina que pode até
aturar um papa herege por um curto prazo.
O ato de depor um pontífice ou
declarar sua sé vacante devido à perda ipso facto do
pontificado por causa de heresia seria uma novidade revolucionária na vida
da Igreja a respeito de uma questão muito importante de sua constituição e
vida. Em uma matéria tão delicada, mesmo quando ela é de natureza prática
e não estritamente doutrinal, é preciso seguir a via mais segura (via tutior),
que é aquela do senso perene da Igreja. Apesar de três Conselhos Ecumênicos
sucessivos (o Terceiro Concílio de Constantinopla em 681, o Segundo Concílio de
Nicéia em 787 e o Quarto Concílio de Constantinopla em 870) e o Papa São Leão
II em 682 terem excomungado o Papa Honório I por heresia, eles nem sequer
implicitamente declararam que Honório havia perdido o papado ipso facto por
causa da heresia. De fato, o pontificado do Papa Honório foi considerado
válido mesmo depois de ter apoiado a heresia em suas cartas ao Patriarca
Sérgio, em 634, enquanto reinou por mais quatro anos até 638. O seguinte
princípio, formulado pelo Papa Santo Estêvão I (257), ainda que em outro
contexto, deveria ser uma diretriz para lidar com a questão muito delicada e
rara de um papa herege: “Nihil innovetur, nisi quod traditum est”, “Não
haja nenhuma inovação em relação ao que foi transmitido”.
Título e Texto: Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar
da Arquidiocese de Santa Maria em Astana, Cazaquistão
Tradução: José Antonio Ureta, Fratres in Unum.com,
28-3-2019
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