Rui Ramos
A endogamia do governo não é uma tradição
portuguesa, mas um fenómeno novo, que sugere o isolamento de um regime e o
esgotamento político do grupo que domina o país há vinte anos.
De repente, até a imprensa espanhola deu por que a península não acaba em Badajoz e que para além
da raia há um curioso país governado por parcerias de pais e filhos, e de
maridos e mulheres, como uma empresa familiar. É de facto extraordinário. Mas o
primeiro-ministro, muito descansado, matou logo a questão: “não era novidade”. Por quê? Porque já era notícia conhecida? Ou porque, em
Portugal, sempre teria sido assim, mas só agora a imprensa, por má vontade
contra o governo, estaria a desvendar os parentescos dos políticos? Ora, se foi
neste segundo sentido que António Costa disse que não havia novidade, é preciso
dizer que sim, que há novidade.
Nos séculos XIX e XX, mesmo
sob regimes supostamente representativos e apesar de revoluções
frequentes, a base de recrutamento político manteve-se bastante restrita em
Portugal, não só pela dimensão do país, mas por a instrução da população ser
reduzida. Se a isso adicionarmos o nepotismo, não é surpreendente que os mesmos
nomes de família tendessem a repetir-se na vida pública, tal como acontecia em
muitas profissões.
Na segunda metade do século
XIX, cerca de metade dos deputados tinham alguma relação de parentesco com outro
deputado. Houve sempre muitos primos e irmãos na política. Os irmãos Passos,
Manuel e José, os líderes da esquerda nos anos 1830, são um exemplo.
Os filhos sucederam por vezes
aos pais. Carlos Lobo de Ávila, ministro na década de 1890, era filho de Joaquim
Tomás Lobo de Ávila, ministro na década de 1860. Dizia-se até que o velho Lobo
de Ávila preparara o filho, desde pequenino, para uma carreira parlamentar,
obrigando o miúdo em casa a fazer discursos que ele ia interrompendo com
apartes e protestos, para o jovem Carlos se habituar a falar no meio do tumulto
das assembleias.
É fácil reconstruir linhagens
e redes de políticos aparentados, em alguns casos através de regimes que entre
si se contradiziam na ideologia e no funcionamento.
Mas sendo as coisas assim, há
a registar este facto que agora parecerá espantoso: num país com uma população
ainda mais pequena do que a de hoje e muito menos escolarizada, não tenho
notícia de irmãos ou filhos e pais terem sido ministros ao mesmo tempo durante
a Monarquia Constitucional, a Primeira República ou o Estado Novo. Pode-me
estar a escapar algum caso, mas penso que não. Quanto à atual democracia, creio
que só uma vez, antes da época atual, dois ministros foram parentes muito
próximos: Ricardo Baião Horta e Basílio Horta em 1981. Podia ter acontecido
outra vez em 1990, mas Miguel Beleza tomou posse como ministro das Finanças no
dia em que a sua irmã Leonor Beleza deixou de ser ministra da Saúde.
Desculpe, Dr. António Costa,
mas é de facto “novidade”, e não podemos procurar a sua razão de ser nas
tradições de nepotismo da sociedade portuguesa, porque essas tradições
nunca antes geraram tal acumulação de parentes próximos num governo.
Não devemos por isso diluir e
confundir os atuais parentescos governativos no meio de outros casos de
ligações familiares. Se esta endogamia tem algum significado, não é a de
um resquício do passado ou de uma ocorrência normal, mas, pelo contrário, a de
um fenómeno novo e único, que sugere o encerramento de um regime, incapaz de se
renovar, e o esgotamento político de um grupo que domina o país há vinte anos,
e que já só parece encontrar confiança dentro dos círculos familiares mais
próximos. Sim, há aqui novidade – e talvez sinal do fim de uma época.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
29-3-2019
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