Aparecido Raimundo de Souza
GORGÚNDIO
BITOLA LARGA recebeu um
baita de um envelope postado com AR trazendo seu novo manual de endereços com
todas as especialidades médicas, bem como um cartão magnético de identificação
do plano de saúde que vinha pagando há mais de dez anos. Como estava de férias e
sem nada para fazer, resolveu ligar para ver se a coisa funcionava de verdade,
como anunciava aquele amontoado de papéis, ou tudo não passava de propaganda
enganosa para engabelar trouxas.
Pegou o livreto azul, de capa dura. Quase uma
centena de folhas coloridas. Abriu ao acaso. Por coincidência, caiu num
geriatra que conhecia de longa data, desde os tempos em que levava sua falecida
mãe para se consultar com ele. Passou a mão no telefone e ligou para o número
indicado. Uma moça de voz adocicada
atendeu prontamente:
- Clínica ASSUMIAMEG, bom dia.
- Bom dia jovem. Gostaria de marcar uma consulta
com o doutor Koffer.
- Um minuto, por favor.
Depois do que pareceu uma eternidade a atendente
retornou:
- Desculpe pela demora.
- Em absoluto.
- O senhor é cliente dele?
- Não.
- Ah, sim. Veja bem, senhor. Só dispomos de
horários vagos para o ano que vem.
- Nossa!
- Infelizmente. Deseja mais alguma coisa, senhor?

- E para o doutor Hãhnchen haveria possibilidade?
- Um instante por obséquio.
Nesse “um instante por obséquio” se foram mais
cinco minutos cravados.
- Senhor, também está lotado. Só para começo de
janeiro.
- Que loucura! Estamos no final de novembro!...
Gorgúndio Bitola Larga desligou e contatou outros
credenciados. Mesmos problemas. Idênticas conversas. Não havia vaga. Quem sabe
mudando de área e de esculápio, obtivesse mais sorte e fosse acolhido com
sucesso. Optou por um tal de doutor Shekinah, cardiologista. Por incrível que
pareça a conversa da secretária da criatura foi literalmente idêntica a das
recepcionistas anteriores:
- Não temos disponibilidade para o momento
cavalheiro.
- Mas é urgente, dona. Meu coração, coitado, só
falta saltar pela boca.
- Desculpe. Sinto muito mesmo.
- Como é seu nome?
- Simone.
- OK, Simone. Desculpe a amolação.
Gorgúndio Bitola Larga teve uma ideia que a
princípio lhe pareceu brilhante. Aparecer pessoalmente no local. Anotou o
endereço da associada, pegou a moto e foi à luta. O consultório do doutor
Shekinah estava sediado numa dessas mansões impecáveis, de dois andares, com
jardins bem cuidados, piscina, churrasqueira e uma porção de carros importados
na garagem, sem falar no bairro nobre, com uma pá de seguranças rondando para
lá e para cá, como se fossem cães de guarda.
Entrou recepção à dentro e mandou bala:
- Uma ficha para o doutor Shekinah... por
gentileza.
A jovem encantadora sobretudada num avental azul
jogava ao celular. Levou um susto repentino, com aquela intromissão. Sem
consultar a agenda foi ríspida e direta com Gorgúndio:
- Senhor, para hoje não temos mais nenhum horário
disponível.
- E para amanhã?
- Igualmente impossível.
- Meu caso é urgente. Diria até de vida ou
morte...
- Nem assim posso atendê-lo.
- Como é seu nome?
- Simone, senhor.
Gorgúndio Bitola Larga continuou questionando:
- Simone, minha linda não sou cego. A recepção
está vazia...
- Senhor, os pacientes estão vindo para cá. Todos
com hora marcada. Seguimos uma ordem padronizada. Dentro de dois minutos
entrará uma senhora por aquela porta que o senhor deixou aberta.
- Desculpe. Uma desistência, ao menos?
- Até agora todas confirmadas.
- Ninguém que resida muito longe e possa perder o
horário?
- Para hoje nenhuma chance mesmo, acredite.
Gorgúndio Bitola Larga jogou, então, a derradeira
carta que dispunha na manga. Encarou a beldade da recepção bem dentro dos olhos
e arrematou enfático, e muito sério:
- Já que é assim e não tem jeito, fazer o quê?
Vou aproveitar que estou na chuva e me molhar mais um pouco. Procurarei outro
profissional. Quando vinha para cá, descobri que tem uma concorrente de vocês
duas quadras abaixo. Vou até lá, pago a consulta à vista e fim de papo. Como
está, deve ter aos montes, outras iguais por ai a fora. Fico muito agradecido,
senhorita Simone. Até mais ver...
Estava quase no portão quando Simone, a jovem
encantadora de avental azul-marinho (agora sem o telefone celular) o alcançou,
se desmanchando em mesuras e solicitudes que dava até para desconfiar:
- Senhor...!
- Pois não?
- Veja que coincidência. O senhor está com sorte.
Uma paciente acabou de ligar. Houve um imprevisto com o carro dela...
- E o que eu tenho a ver com isso?
- Acho que vai dar para lhe “encaixar”.
- “Encaixar?”.
- Sim.
- O que é “encaixar”, Simone?
- Em outras palavras. Falei com o meu patrão. O
doutor Shekinah vai lhe atender agora.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 26-3-2019
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