Alberto Gonçalves
A opinião publicada não contesta o pagode
socialista, na medida em que: a) acha que o pagode é normal; b) acha que o
pagode é benéfico; c) espera vir a beneficiar do pagode; d) já beneficia do
pagode.
O poder das ilusões é uma
coisa maravilhosa. E sobretudo patética. Para não admitir o que de facto são,
os portugueses fingem-se convictos de que são “os melhores dos melhores”,
citando a ladainha humilhante do professor Marcelo. O método é repetirmos com
maníaca insistência que somos insuperáveis nisto e naquilo, da bola aos
chouriços, das peúgas ao azeite. De tanto entoarem o mantra, alguns, coitados,
chegam a acreditar nele. Muitos, porém, permanecem ligeiramente céticos: embora
proclamem a superioridade pátria nos “setores” – sei lá – do mobiliário ou da
saúde, receiam no fundo estar errados e a fazer o que os clássicos da
Antropologia designavam por figura de urso. A conversão dos céticos dispõe da
propaganda oficiosa, os “telejornais” que se encarregam, dia após dia, de
entrevistar governantes nas imediações de uma inauguração, ou estrangeiros nas
imediações dos Jerónimos, todos dispostos a confirmar as incontáveis virtudes
deste abençoado país. Se um casal de belgas gosta disto, quem somos nós para
discordarmos?
Quase literalmente, não somos
ninguém. É a nossa sorte. Dado que o mundo mal dá pela existência de Portugal,
Portugal costuma escapar ao escrutínio do mundo. Ambos beneficiam do arranjo.
Exceto às vezes. Às vezes, um acontecimento fortuito ou um tique exagerado
desperta atenções alheias e indesejadas. Às vezes, as notícias escapam ao
controlo, ou aos objetivos editoriais do falecido DN. Às vezes, a realidade
espreita e perturba as patranhas que nos oferecem e o idílio em que vivemos. A
título de exemplo recente, sugiro o documentário sobre o desaparecimento de
Maddie McCann, estreado na Netflix. Ali não há turistas selecionados a louvarem
a comida e a hospitalidade e as “startups”: há ingleses que olham para Sul e
descobrem um território entregue a bárbaros, onde a polícia se destaca pela
espetacular inépcia e a corrupção genérica serve de cenário para apaixonantes
enredos. Em meia-dúzia de horas de programa, o mito do paraíso à beira-mar
afoga-se com esmero. Mas nada afoga as ilusões dos portugueses, os quais, bem
amestrados, tomam a crítica por um ataque movido a inveja. Não importa que, no
caso, a “inveja” seja tão fundamentada quanto a da banca suíça face à
estabilidade do BES.
Uma outra história atual e
digna da estupefacção “externa” é a endogamia governamental. Na sua infinita
ingenuidade, o povo garante que a família não se escolhe. A sério? O PS escolhe
os familiares que pode e, não satisfeito, nomeia-os para os cargos públicos que
não deve. Sendo engraçado que um dos argumentos contra a monarquia consista em
impedir a ascensão automática de mentecaptos, também é verdade que a situação
desta peculiar república, absolutamente trivial em exotismos marxistas, não é,
vá lá saber-se a razão, comum nas democracias civilizadas. É aliás inédita a
ponto de impressionar a imprensa espanhola, que habitualmente nos dedica a
quantidade de páginas que reservamos às Berlengas: o “ABC” fala numa “rede de
nepotismo sem precedentes em toda a Europa”, lembra a “rede de 27 pessoas com
vínculos familiares no exercício do poder” e refere que “a indignação tomou
conta do país vizinho”. Escusado dizer que se trata de uma série de calúnias, a
desmentir com urgência.
A primeira calúnia é
considerar que pertencemos à Europa, presunção que apenas funciona no momento
de receber, com maus modos, dinheiro alemão. Fora isso, uma fotografia coletiva
do governo basta para exibir não só os perigos da consanguinidade como uma
tropa fandanga que, na aparência e no conteúdo, dificilmente se sentaria na assembleia
estadual do Maranhão.
A segunda calúnia são os vinte
e sete parentes, proverbialmente caídos na lama. O Observador já desenterrou
quarenta e tal, e não duvido que uma pesquisa distraída pelas subsecretarias e
chefias de gabinete alcance os cento e cinquenta. Além de que amanhã é um novo
dia, e uma nova oportunidade profissional para dezenas de filhos, esposos,
genros, primos e enteados dos vultos que nos guiam.
A terceira calúnia é a
indignação que alegadamente nos assola. Qual indignação? Salvo por umas dúzias
de excêntricos, a famosa “opinião pública” e a famosíssima opinião publicada
não contestam o pagode socialista, na medida em que: a) acham que o pagode é
normal; b) acham que o pagode é benéfico; c) esperam vir a beneficiar do
pagode; d) já beneficiam do pagode.
Entre a cretinice e o
oportunismo, compreende-se a tendência do cidadão médio para a opinião
informada. Se o “ABC”, o “El País” e os jornais que calhar realizassem com
competência o seu trabalho, perceberiam que a notícia não é a rompante
promiscuidade no governo: é a complacência de uma sociedade em peso perante a
promiscuidade e perante o resto. O espantoso, na hipótese de ainda sobrar
alguém que se espante, é a jovialidade com que os portugueses se permitem ser
enxovalhados e roubados às mãos de uma legião de rústicos que nem possuem em
manha metade do que lhes falta em vergonha.
Haverá, nos confins da Terra,
populações mais oprimidas. Ou mais ridicularizadas. Ou mais burladas. Não
haverá nenhuma que o aceite com este simulacro de orgulho. Nisso, e não nas
peúgas ou no azeite, somos mesmo os melhores dos melhores. Ou uma desgraça sem
remédio, consoante a perspectiva.
Nota de rodapé
O prémio “Uma Rotunda Em Cada
Cruzamento, Dois Multiusos Em Cada Esquina, Três Sacos Azuis Em Cada Mandato”
da semana vai para António Costa, com a frase: “O mundo seria muito melhor se
fosse governado pelos presidentes de câmara”.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
30-3-2019
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