terça-feira, 8 de setembro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Dublê de encarcerado

Aparecido Raimundo de Souza

POR UM DESVÃO quase imperceptível, orificiado por alguém que antes de mim, esteve por aqui e cavucou, na parede do local onde estou encarcerado, uma espécie de claraboia mal ajambrada, eu espio. Olho, observo com atenção, para o lado de fora.  Prescruto, meio apavorado e aturdido, temendo que chegue um estranho inesperado e me flagre com a boca na botija. Não existe nada mais humilhante do que ser pego com a boca na botija. Ainda mais lvando em conta a situação inusitada em que me encontro metido.

Receio que vivalma me surpreenda de calças curtas, pilhado ao deus dará, sem eira, nem beira, achando que estou prestes a cometer algum crime hediondo e não previsto na legislação penal. Como fugir, por exemplo. Apesar disto, sem pensar nas consequências, me arrojo, audacioso, ao perigo de me expor abertamente e a ser comprometido com o sobressalto da inépcia iminente. Partindo daquele princípio antigo de ‘quem não arrisca —, perde a oportunidade de petiscar’ sigo em frente, apesar de desconhecer o que vem pela frente.

Diante deste quadro incerto, não me resta outra alternativa, senão a de me agarrar, de unhas e dentes, na oportunidade da aventura. A aventura é um remédio que espanta as melancolias, por mais melancólicas que possam parecer. Confiante nesta proeza, mais tendida e inclinada para uma viagem de sonhos, vislumbro você. Mon Dieu! Como sempre, a sua silhueta não é uma mera afoiteza que se esvanece ao menor sopro de um vento de través surgido obliquamente.  Tampouco uma façanha eventual dançando nas minhas quimeras mais prementes.

Em razão disso, vejo você e vejo inteira, dos fios de cabelos loiros, presos na nuca, descendo em cascatas volumosas pelas costas, lhe completando a fascinante figura de mulher esculpida por um pintor fenomenal. Contemplo, em igual extase, prazer vivíssimo e gozo íntimo, seu porte impecável e elegante, a sua altura esbelta, de olhos castanhos claros, emoldurados por longos cílios negros, o conjunto do rosto afogueado, as faces rosadas, escancaradas em sorrisos encantadores, terminando na boquinha de lábios acurados, deixando, à mostra, dentes alvos e refinados,  traduzindo, por sua vez, a abundância da vida plena que flui do interior da sua alma em constante festa de felicidade.

Apesar de atado às garras do encurralado, enraizado e sem chances dos benfazejos desfrutes da liberdade, bem sei, por mais que peleje, não poderei escapar, fugir, sair, me desentravar deste cativeiro. Ele existe e se faz literalmente expresso e palpavelmente  real. No mesmo quadro, não me é dado, ou concedido, o direito de gritar, e o que é pior: de me defender dos horrores da segregação. Se pudesse soltar a voz, ao menos berraria, aos quatro cantos do mundo, que meu maior desejo estaria centrado em estar ai em cima, colado em você, como pulga em cachorro. Grosso modo, como um chinelo que acabou de encontrar a sua metade faltosa.

Ah, quem me dera, pudesse me embrenhar por dentro da menina que existe dentro de sua alma, lhe evidenciando o excitamento de estar aqui! Tocar jubiloso as suas fendas bucais, acariciar seu rosto, beijar as suas bordas de margens carnudas... Degustar do sabor dos seus lábios,  e evidenciar neles, o eterno sabor do gosto de tudo... Murmurar, ato contínuo, palavras melosas e calientes ao pé do ouvido. Cristo Jesus, se eu pudesse transformar em realidade estes momentos de amofinações nimbosas em nossos melhores instantes de ternura...

Juro que seria a criatura mais feliz do mundo. E, igualmente, deste chão improbro e devoluto em que estou agora. Entendo ser completamente impossível realizar tal intento. Apesar de impraticável, eu queria, neste momento, ou pelo menos somente por um abrir e fechar de pálpebras, eu queria... Eu desejaria lhe abraçar. Almejaria lhe dizer do fundo do meu mais ingente, o quanto lhe desejo e venero. Ambicionaria, aliás, careceria colocar em prática, estas loucuras que me assanham todos os dias.

Entretanto, me contentaria, ficaria mais calmo, se pôr um milagre, me fosse permitido só agora, apenas hoje... Não minha princesa. Estou mentindo! Eu aspiraria mais: ansiaria estar com você, sair um pouco deste beco escuro e imundo, onde convivo, agarrado com a solidão apática e enfadonha, desleal e martirizante, que me carcome a vida, que me esmaga o peito, que me sobrecarrega o sangue e me transforma num ser completamente solitário e vazio. Juro trocaria toda a minha existência medíocre (ainda que por alguns minutos), unicamente para poder me apetecer do direito de tocar em suas mãos...

De caminhar pelas ruas e avenidas abraçado, lado a lado; me esquecer do abissal imensurável que me apavora; que me devora; que me consome e martiriza; que me mata a cada segundo um pouco a mais; um ‘pouco a sempre’; semelhantemente a uma espécie de agonia infame que parece não ter fim.  Contudo, minha princesa, eu não posso! Verdade, minha amada, eu não disponho desta saída prodigiosa! A mim me cabe, me resta olhar você daqui, lhe consumir a goles poucos, por este minúsculo buraco na parede e sentir a sua presença dotada de uma franqueza ingênua e me conformar em lhe ter pela metade, de longe (embora tão perto... Tão aqui), como se fosse um animal que precisasse estar literalmente enjaulado. 

E como um bicho feroz, aprisionado, repito, amargando os pecados (todos) sem contato, com o mundo ao redor e com a vida abundante que chega até mim por esta concavidade imunda desta cela-prisão infestada de ratos e baratas onde me colocaram a ‘contragosteado’, da vontade própria, como se eu não tivesse direito à algum ou nenhum tipo de escapatória, ou qualquer outra linha que me levasse a matutar com uma segunda chance ou no mais degradante dos infortúnios, na dádiva de conseguir um fio tênue de perdão.

Aos prantos, tento fazer contato. Me avizinhar, me conectar a sua frequência (cadê meu celular, meu whatsapp??!!), enfim, avisar a você, de alguma forma, que estou lhe vendo. Igual modo, sentindo seu cheiro, seu perfume, e pasme, minha linda, abrangendo até mesmo a quentura inimitável que emana de todas as suas entranhas. Eu sei, eu sei. Não posso. Entendo. Não posso! E no meu caso, especificamente, não existe milagre que dê jeito. Hoje, justamente hoje, faz exatamente... Parece que foi ontem... Todavia, hoje... Hoje você sabe perfeitamente, e por esta razão está aqui, postada... Hoje completa um ano que morri.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 8-9-2020

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Um comentário:

  1. Interessante esse seu texto. Nessa percepção do 'Pós-morte", nos faz refletir, que não devemos deixar para depois o que se pode fazer "hoje".

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