Aparecido Raimundo de Souza
POR UM DESVÃO quase
imperceptível, orificiado por alguém que antes de mim, esteve por aqui e
cavucou, na parede do local onde estou encarcerado, uma espécie de claraboia
mal ajambrada, eu espio. Olho, observo com atenção, para o lado de fora. Prescruto, meio apavorado e aturdido, temendo
que chegue um estranho inesperado e me flagre com a boca na botija. Não existe
nada mais humilhante do que ser pego com a boca na botija. Ainda mais lvando em
conta a situação inusitada em que me encontro metido.
Receio que vivalma me surpreenda de
calças curtas, pilhado ao deus dará, sem eira, nem beira, achando que estou
prestes a cometer algum crime hediondo e não previsto na legislação penal. Como
fugir, por exemplo. Apesar disto, sem pensar nas consequências, me arrojo,
audacioso, ao perigo de me expor abertamente e a ser comprometido com o
sobressalto da inépcia iminente. Partindo daquele princípio antigo de ‘quem não
arrisca —, perde a oportunidade de petiscar’ sigo em frente, apesar de
desconhecer o que vem pela frente.
Diante deste quadro incerto, não me
resta outra alternativa, senão a de me agarrar, de unhas e dentes, na
oportunidade da aventura. A aventura é um remédio que espanta as melancolias,
por mais melancólicas que possam parecer. Confiante nesta proeza, mais tendida
e inclinada para uma viagem de sonhos, vislumbro você. Mon Dieu! Como sempre, a
sua silhueta não é uma mera afoiteza que se esvanece ao menor sopro de um vento
de través surgido obliquamente. Tampouco
uma façanha eventual dançando nas minhas quimeras mais prementes.
Em razão disso, vejo você e vejo
inteira, dos fios de cabelos loiros, presos na nuca, descendo em cascatas
volumosas pelas costas, lhe completando a fascinante figura de mulher esculpida
por um pintor fenomenal. Contemplo, em igual extase, prazer vivíssimo e gozo
íntimo, seu porte impecável e elegante, a sua altura esbelta, de olhos
castanhos claros, emoldurados por longos cílios negros, o conjunto do rosto
afogueado, as faces rosadas, escancaradas em sorrisos encantadores, terminando
na boquinha de lábios acurados, deixando, à mostra, dentes alvos e
refinados, traduzindo, por sua vez, a
abundância da vida plena que flui do interior da sua alma em constante festa de
felicidade.
Apesar de atado às garras do
encurralado, enraizado e sem chances dos benfazejos desfrutes da liberdade, bem
sei, por mais que peleje, não poderei escapar, fugir, sair, me desentravar
deste cativeiro. Ele existe e se faz literalmente expresso e palpavelmente real. No mesmo quadro, não me é dado, ou
concedido, o direito de gritar, e o que é pior: de me defender dos horrores da
segregação. Se pudesse soltar a voz, ao menos berraria, aos quatro cantos do
mundo, que meu maior desejo estaria centrado em estar ai em cima, colado em
você, como pulga em cachorro. Grosso modo, como um chinelo que acabou de
encontrar a sua metade faltosa.
Ah, quem me dera, pudesse me
embrenhar por dentro da menina que existe dentro de sua alma, lhe evidenciando
o excitamento de estar aqui! Tocar jubiloso as suas fendas bucais, acariciar
seu rosto, beijar as suas bordas de margens carnudas... Degustar do sabor dos
seus lábios, e evidenciar neles, o
eterno sabor do gosto de tudo... Murmurar, ato contínuo, palavras melosas e
calientes ao pé do ouvido. Cristo Jesus, se eu pudesse transformar em realidade
estes momentos de amofinações nimbosas em nossos melhores instantes de
ternura...
Juro que seria a criatura mais feliz
do mundo. E, igualmente, deste chão improbro e devoluto em que estou agora.
Entendo ser completamente impossível realizar tal intento. Apesar de
impraticável, eu queria, neste momento, ou pelo menos somente por um abrir e
fechar de pálpebras, eu queria... Eu desejaria lhe abraçar. Almejaria lhe dizer
do fundo do meu mais ingente, o quanto lhe desejo e venero. Ambicionaria,
aliás, careceria colocar em prática, estas loucuras que me assanham todos os
dias.
Entretanto, me contentaria, ficaria
mais calmo, se pôr um milagre, me fosse permitido só agora, apenas hoje... Não
minha princesa. Estou mentindo! Eu aspiraria mais: ansiaria estar com você,
sair um pouco deste beco escuro e imundo, onde convivo, agarrado com a solidão
apática e enfadonha, desleal e martirizante, que me carcome a vida, que me
esmaga o peito, que me sobrecarrega o sangue e me transforma num ser
completamente solitário e vazio. Juro trocaria toda a minha existência medíocre
(ainda que por alguns minutos), unicamente para poder me apetecer do direito de
tocar em suas mãos...
De caminhar pelas ruas e avenidas
abraçado, lado a lado; me esquecer do abissal imensurável que me apavora; que
me devora; que me consome e martiriza; que me mata a cada segundo um pouco a
mais; um ‘pouco a sempre’; semelhantemente a uma espécie de agonia infame que
parece não ter fim. Contudo, minha
princesa, eu não posso! Verdade, minha amada, eu não disponho desta saída
prodigiosa! A mim me cabe, me resta olhar você daqui, lhe consumir a goles
poucos, por este minúsculo buraco na parede e sentir a sua presença dotada de
uma franqueza ingênua e me conformar em lhe ter pela metade, de longe (embora
tão perto... Tão aqui), como se fosse um animal que precisasse estar
literalmente enjaulado.
E como um bicho feroz, aprisionado,
repito, amargando os pecados (todos) sem contato, com o mundo ao redor e com a
vida abundante que chega até mim por esta concavidade imunda desta cela-prisão
infestada de ratos e baratas onde me colocaram a ‘contragosteado’, da vontade
própria, como se eu não tivesse direito à algum ou nenhum tipo de escapatória,
ou qualquer outra linha que me levasse a matutar com uma segunda chance ou no
mais degradante dos infortúnios, na dádiva de conseguir um fio tênue de perdão.
Aos prantos, tento fazer contato. Me
avizinhar, me conectar a sua frequência (cadê meu celular, meu whatsapp??!!),
enfim, avisar a você, de alguma forma, que estou lhe vendo. Igual modo,
sentindo seu cheiro, seu perfume, e pasme, minha linda, abrangendo até mesmo a
quentura inimitável que emana de todas as suas entranhas. Eu sei, eu sei. Não
posso. Entendo. Não posso! E no meu caso, especificamente, não existe milagre
que dê jeito. Hoje, justamente hoje, faz exatamente... Parece que foi ontem...
Todavia, hoje... Hoje você sabe perfeitamente, e por esta razão está aqui,
postada... Hoje completa um ano que morri.
Título e Texto: Aparecido Raimundo
de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 8-9-2020
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Interessante esse seu texto. Nessa percepção do 'Pós-morte", nos faz refletir, que não devemos deixar para depois o que se pode fazer "hoje".
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