Aparecido Raimundo de Souza
AFLOROSO PICÃO passado a menos de duas horas à condição de defunto, além de fresco, está furioso. Por conta, a criatura (resmunga dentro do caixão, aliás, não resmunga, berra):
— Ei, alguém que esteja me escutando aqui do lado? Por favor... por acaso fui colocado num esquife ou em uma caixa de sapato?
O gerente da funerária, o Combodart da Silva Tansulosina (assustado, arregala os olhos espiando ao redor):
— Meu Deus, quem está falando?
Afloroso Picão:
— Eu, seu moço! O ocupante recém-chegado. Já vou logo avisando: não estou nada satisfeito... Antes de descer os sete palmos, quero fazer uma reclamação. Necessito de um novo caixão.
Combodart, sem entender bulhufas:
— Ora, mas o senhor já partiu deste mundo... não deveria se importar com mais nada.
Afloroso Picão:
— Não me importar? Chega mais perto e dê uma olhada. Tire a tampa. Mal consigo esticar os braços! Espia, passei a vida inteira reclamando de apertos, ônibus lotados, elevadores cheios... e agora, até na subida para a eternidade, me colocam num caixão tamanho P!
Combodart, espantado, (coça a cabeça):
— Senhor, por favor, me perdoe, talvez o orçamento da sua família esteja meio apertado...
Afloroso Picão (indignado):
— Apertado? Pois quem está apertado, meu amigo, sou eu! Se ao menos fosse um ataúde king size, eu poderia descansar em paz. Assim, com este onde estou agora, vou passar meus futuros dias em desconforto...
Combodart tenta acalmar (a impaciência de cujus):
— Mas veja, meu nobre, observe pelo lado bom: o senhor não precisará mais se preocupar com dores nas costas...
Afloroso Picão (em tom sarcástico):
— Claro, porque agora tenho dores na alma!
Combodart:
— Quer que eu tente convencer a sua esposa a trocar? Seus entes queridos não estão mais aqui na sala ao lado, mas a sua mulher segue conversando com o padre Antônio Maria, o dono da funerária...