Carina Bratt
‘Eu era triste até ontem à noite, mas hoje, pela manhã, avivada pela graça de querer ser feliz, o encanto me despertou das trevas’.
Concessa Leal
EU QUERIA FUGIR... partir para um lugar onde ninguém me conhecesse. Me embrenhar por uma estrada deserta e sem fim. Precisava seguir em frente, sem olhar para trás, sem dizer nada a ninguém. Almejava apagar dos meus dias, os momentos de solidão, de meu rosto pálido e com rugas egípcias salpicadas de tristezas e de infelicidades, os fantasmas atormentadores, sobretudo, aqueles seres encapetados que só apareciam me trazendo lembranças desagradáveis que brotavam de dentro de meu ser como um cardume de peixes se debatendo contra a morte prematura fora d’água.
Carecia de deixar no meu ‘ontem’ lembranças que me fizeram mal, que só serviram para me contaminar o ‘eu’ e não contente me apostataram de recordações compulsivamente destituídas de coisas boas, de objetivos insanos que do nada me nocautearam com fortes dores de cabeça e a sensação degradante de que despencava em queda livre por um despenhadeiro imenso. Tudo na minha cabeça girava em desacordo. Minhas horas, desde o amanhã até o anoitecer me davam a sensação desdourada de coisas e fatos falsificados. Me sentia como uma mosca impotente diante de uma embalagem de inseticida prestes a me dar uma baforada de morte.
Destituída de uma realidade palpável, bem sei, não havia em mim nada que me segurasse naquele chão de terra bruta onde eu vivia desde que me conhecia por gente. Onde nasci e onde me criei. O ‘lugar-berço-mãe’ onde passei a minha infância, boa parte da adolescência e um bocadinho dos primeiros anos de vida adulta. Tudo, num repente, virou uma espécie de campo desfalecido. Os dias se consumiram lúgubres, as horas se tornaram enfadonhas. Meu mundinho de outrora cresceu obumbrado por calamidades e tragédias, desencantos e escarmentos.
As tardes se mesclaram cobertas de uma manta negra e pegajosa de tristezas sem pé nem cabeça, e para variar o cardápio das desilusões, as noites se alongaram ferrenhamente tenebrosas e enojadas. Dia seguinte, em cada amanhecer eu me via amarrada por cordas traiçoeiras, e por conta delas, sentia nas pernas e pés, uma espécie lancinante de peso descomunal me empurrando para longe, me afastando como se eu estivesse acorrentada (e de fato estava) a algo mais forte que a minha vontade de continuar simplesmente vivendo.
Talvez, não sei, oxalá fosse só impressão, mas em verdade, essa coisa calcava meu peito, me pressionando a vontade de reagir, me impedia de me remodelar. A ponto de, a certa altura, do nada, esse transtorno virar uma coisa maior e me tirar do foco. Por sua vez, o fatídico me entrelaçou e me puxou para baixo, e me fez mais lá no fundo, fraca e dependente, ao passo em que a tal fatalidade, no mesmo remar do barco, caíra em meus costados de maneira forte e coesa. Um estranho espírito vingativo minou as minhas forças, notadamente aquelas energias de querer fugir e me libertar e regressar ao ser feliz, alegre, radiante, completa, repleta por dentro, e, de roldão, todo meu ser, de alguma maneira voltasse a criar vida abundante e resplandecesse em um amor real, um amor transbordante e imorredouro.
Em meio a toda essa balbúrdia, um convencional senso de liberdade aflorou. De repente, me agarrei de unhas e dentes a essa possibilidade remota... e confesso, deu certo... acordei sobressaltada, suando em bicas, e de chofre, percebi estava vivendo, de novo, a minha vida de outrora. Me senti como aquela pombinha tardia que Noé abriu a porta da arca e me acenou para entrar. Meus dias de menina alegre, regressaram revigorados dentro de um lar de rosto bondoso e ameno. Ao espiar para o interior de mim mesma, percebi no hoje que me alimenta, poderia dar meia volta às carreiras, retornar desembestada, tresloucada, para aquela minha vidinha bucólica e inteiramente passée.
Título e Texto: Carina Bratt, de São Paulo, Capital, 8-6-2025
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