Marcos Paulo Candeloro
Vivemos numa era fascinante em sua dissimulação: a democracia está morta, mas seu cadáver é mantido em pé, embalsamado em rituais de linguagem, como um ídolo oco cuja função é apenas justificar o regime que o substituiu. Um regime que, com tragicômica desenvoltura, se apresenta como defensor da liberdade… censurando. Como guardião da paz… promovendo guerra. Como bastião do pluralismo… criminalizando dissidência.
A democracia liberal do pós-guerra, que pretendia equilibrar representação, liberdade de expressão e freios institucionais, foi sequestrada pelo que se pode chamar de tecnocracia ideológica. A retórica dos direitos humanos foi transformada em instrumento de poder supranacional. A “ordem baseada em regras”, que ninguém votou e que ninguém pode contestar, virou o novo dogma. E qualquer crítica a essa nova fé — seja em nome da soberania, da tradição ou da razão — é tratada como heresia extremista, “ameaça à democracia”.
Eis o paradoxo: para proteger a democracia, é preciso banir partidos de direita. Para resguardar a liberdade de expressão, é preciso censurar a “desinformação”. Para garantir a paz, é necessário alimentar a guerra por procuração com uma potência nuclear. Para combater o autoritarismo, é preciso suspender eleições ou ignorar resultados indesejados. Tudo isso com o respaldo entusiasta de jornalistas domesticados, ONGs capturadas e organismos multilaterais que respondem ao Leviatã sem rosto do globalismo institucional.
A ironia é tamanha que já não precisa ser escondida. Os arautos desse novo regime discursam sem pudor: defendem censura preventiva, listas negras de opositores, leis contra “discursos de ódio” que jamais definem, plataformas reguladas por comitês anônimos, sistemas de vigilância digital sob o pretexto de “segurança informacional”. A distopia não mais se esconde: ela posa de salvadora.
O inimigo, agora, não é o tirano — é o cidadão. O problema não é o poder excessivo do Estado, mas o fato de você compartilhar um meme errado. A ameaça não vem de cima, mas de baixo: da massa ignorante que vota errado, que lê os sites errados, que segue os perfis errados. Em nome da civilização, querem extinguir a polis. Em nome da razão, apagam a dúvida. Em nome do progresso, queimam o passado.
Mas há um detalhe incômodo
para os arquitetos dessa farsa: mesmo zumbificada, a democracia ainda carrega a
lembrança do que foi. E essa memória, que resiste como brasa sob os escombros,
é o que ainda pode incendiar a ilusão. Se não para restaurá-la, ao menos para
expor, em praça pública, o engodo dos seus embalsamadores.
Título e Texto: Marcos
Paulo Candeloro, ContraCultura,
13-6-2025
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