domingo, 29 de junho de 2025

[As danações de Carina] ‘O velho balanço’ e o regresso a um passado que ainda agora — tantos anos depois, continua vivo

Carina Bratt 

GOSTARIA DE DEIXAR as minhas impressões sobre o texto de Aparecido Raimundo de Souza, que recebeu o título de ‘O Velho Balanço’, publicado aqui na ‘Revista Cão que Fuma’ em 4 de agosto de 2017. No meu simplório entendimento uma verdadeira viagem emocional pelas memórias da infância. Ele mistura lirismo com uma nostalgia quase palpável, como se cada palavra carregasse o cheiro da terra molhada e o som do monjolo ao fundo. A construção das imagens da infância no texto é feita com uma delicadeza poética que transforma lembranças em verdadeiros quadros sensoriais. Se as minhas amigas me permitem, explorarei alguns itens que considero importantíssimos para que as pessoas que lerem essa pequena mimosidade poética possam ter um entendimento mais amplo. É certo que logo de cara, dá para se perceber que a infância do autor é recriada, como se fosse um lugar físico, quase mágico, onde cada elemento do cenário tem vida e significado. 

Euzinha, por conta, iria mais longe e incluiria à cena, o alpendre com móveis de madeira, o monjolo incansável, a pinguela sobre o córrego — tudo descreveria com riqueza de detalhes, como se o tempo não tivesse apagado nada. Por exemplo, invocaria a lua refletida no riacho e o cheiro da terra batida evocando uma infância ligada à natureza, ao tempo lento e à simplicidade. No mesmo trilho, o velho balanço não se apresenta apenas como um brinquedo — ele vai mais longe e se torna o símbolo de uma infância perdida, bem ainda da liberdade, da alegria pura. O que digo aqui, ou seja, ele, o velho balanço, aparece no fim do texto como a peça que falta para completar o quebra-cabeça da memória. Sua localização afastada da casa grande, quase tocando os trilhos da Maria Fumaça, sugere um espaço de imaginação e aventura, longe do mundo adulto. Aparecido faz uso de uma linguagem carregada de emoção e imagens inapagáveis. Usa expressões como ‘asas coloridas da fantasia dimensional’ e ‘visão cadente’ o que ajuda a criar uma atmosfera onírica. 

A nostalgia é intensa, mas não melancólica — é uma saudade que aquece, que valoriza o passado como parte essencial da identidade. Nesse ponto, entendo que a infância é retratada como um tempo quase sagrado, ‘destituída da maldade dos adultos’. Nesse ponto, ela é um espaço de pureza e encantamento. Aparecido não apenas lembra, ele revive — como se o tempo pudesse ser dobrado pela força da memória. Percebam caras amigas e leitoras da Grande Família Cão que Fuma, o texto fala sobre o balanço do ‘vai’ e ‘vem’ e no ‘vai’ e ‘vem’, ele viaja. Essa observação é muito poderosa — uma vez que ‘o vai e vem do balanço’ funciona como um portal poético. A cada movimento, o Aparecido se desloca não apenas no espaço, mas no tempo da memória. É como se aquele simples gesto de balançar ativasse lembranças adormecidas e abrisse caminho para uma viagem interior. Nesse tom, o movimento rítmico do balanço desenha a oscilação da memória entre o presente e o passado, ou dito de outra forma, sinaliza o que se lembra com nitidez e o que retorna em fragmentos. 

Cada impulso no ar parece bolinar também na imaginação do narrador — tendo em vista que ele não apenas relembra, ele revive. A imagem da Maria Fumaça nos trilhos ao fundo reforça essa ideia de deslocamento. Enquanto o balanço se move, Aparecido embarca numa viagem que não é física, mas emocional e transcende a imaginação. Essa ‘viagem’ também pode ser entendida como um retorno à essência da infância, um tempo onde o mundo se fazia o tempo todo descoberto com a felicidade maviosa do encantamento. Apesar disso, entendo que a viagem no texto de ‘O Velho Balanço’ é uma metáfora poderosa para o funcionamento da memória — e é justamente aí que mora a beleza do texto.  O Aparecido não se esqueceu de nada. Não fez uma viagem física, repito, mas uma viagem emocional e fantástica ao passado. Ele é ‘transportado pelas asas coloridas da fantasia dimensional’, como se a memória fosse um trem que o levasse de volta à infância. Esse deslocamento é imaginativo, pois acontece dentro da mente e do coração. 

Diria também, afetivo, porque é guiado por sentimentos profundos de saudade e pertencimento. Na sequência, bateria na tecla do sensorial, já que ele revive cheiros, sons e imagens ‘com nitidez surpreendente’. O velho balanço, queridas amigas, é entre outras surpresas, o gatilho da viagem, a bala certeira que acerta o alvo. Observem o seguinte: ‘No vai e vem’ do balanço, como semelhado ao pêndulo de Foucault, ele oscila entre o presente e o passado, como se cada impulso o levasse (e de fato leva) ao mais fundo nas lembranças. Ele diz que no ‘vai’ alcançava o futuro e no ‘vem’ retornava à infância — ou seja, o balanço é também ainda que distante, uma máquina do tempo simbólica. Irmanado em igual pensamento em sintonia com o meu, o leitor Leandro Silva, deixou o comentário que abaixo segue: ‘Há objetos que não ocupam espaço na sala, mas ocupam um continente inteiro dentro da alma. O conto “O Velho Balanço”, de Aparecido Raimundo de Souza, não é apenas um tributo à infância — é um grito abafado de quem procura a si mesmo em meio à ferrugem do tempo.’’ 

E segue: ‘Não nos conta apenas uma história, mas nos devolve à nossa própria. Há um balanço velho, lá no fundo do quintal da memória, que ainda range de saudade. Aparecido sabe disso. Escreve como quem olha pela fresta da janela e vê a si mesmo menino — descalço, livre, solitário, mas dono do céu inteiro. Sua pena tem cheiro de café coado na hora, de pão saindo do forno da avó, de madeira antiga que guarda segredos. Mas o texto vai além do saudosismo. Ele nos propõe uma arqueologia da identidade. O balanço ali descrito não é só um brinquedo — é um altar, um divã, um portal. O “vai” representa o sonho, a esperança. O “vem”, a lembrança, a dor que não se queixa, apenas sussurra.
E entre um impulso e outro, está o menino... e o velho. Um mesmo ser em dois tempos, conectados por uma corrente de ferro e memória. A ausência dos pais, dos irmãos, do amparo imediato, não gera vitimismo — mas uma força poética de resistência”’’.
 

E o ilustre leitor, termina assim: ‘O menino que poderia ser órfão, se torna rei. O balanço vira trono, e o quintal vira reino.
A beleza desse texto está no que ele desperta em nós: onde está o nosso velho balanço?
Em que canto da alma está escondido o lugar onde éramos inteiros? A resposta, talvez, venha quando pararmos de correr e decidirmos balançar de novo.
Nem que seja só com a lembrança’” Cá entre nós, minhas leitoras e amigas, espero que concordem comigo. Achei muito interessante essas observações do referido leitor. Resumindo o texto de Aparecido Raimundo Souza, a sua viagem bucólica também mostra que a memória não é só lembrança — é, em igual modo, a reconstrução poética da vida dele. Aparecido, não apenas recorda, ele revive com intensidade. A memória é apresentada como algo vivo, dinâmico, sem fronteiras que molda a identidade e indubitavelmente dá todo o sentido ao tempo presente.
 

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 29-6-2025 

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