Lula colhe na França resultados melhores do que os das viagens anteriores — mas os fatos mais importantes desta visita não mereceram o devido destaque no noticiário
Nuno Vasconcellos
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Arte: Paulo Márcio |
Esse comentário é feito à luz
das críticas que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem recebido pelo
número expressivo de viagens. Contando com a atual viagem à França, que se
encerra amanhã com o retorno do presidente a Brasília, ele já fez, desde que
tomou posse, em janeiro de 2023, 27 viagens e esteve em 34 países. O número
poderia ser até maior. Em outubro do ano passado, o presidente sofreu um
acidente doméstico no Palácio da Alvorada e, por recomendação médica, precisou
passar alguns meses sem enfrentar longas viagens presidenciais. O que deve ser
discutido, porém, não é a quantidade de horas de voo que o presidente acumula,
mas o resultado de suas viagens para o Brasil. Ou até para ele mesmo.
Esse debate é mais do que
pertinente num mundo competitivo como o atual, em que os espaços comerciais
devem ser ocupados e ampliados a todo instante. É papel do presidente, como
principal representante dos interesses de seu país, tratar dos termos dessa ampliação
e transformar em solenidades as assinaturas dos acordos que foram discutidos
antes, em detalhes, pelas áreas técnicas dos ministérios e pela diplomacia. É
assim que funciona. E é exatamente assim que deve funcionar para Lula ou para
qualquer outro presidente.
É com esses olhos que devem ser vistas as recentes viagens internacionais do presidente — inclusive essa que só terminará amanhã, com o retorno a Brasília. Havia muito o que ser tratado com o presidente da França, Emmanuel Macron e o mais importante, nesse caso, não foram as cenas das recepções suntuosas no Palácio do Eliseu, sede do governo francês. Muito menos as imagens de Lula, livre dos sapatos e do paletó, tentando mostrar a boa forma e disposição ao ensaiar acrobacias na abertura de uma exposição de arte em Paris. Ou, ainda, a presença da primeira-dama Janja da Silva num desfile de estilistas brasileiros na capital mundial da moda.
Por maior que tenha sido a
honraria, também é fato secundário o título de Doutor Honoris Causa conferido a
Lula pela Universidade de Paris. Ou outros pormenores que, ao longo da semana
passada, ocuparam espaço no noticiário, sob os aplausos dos que consideram o
presidente um dos maiores estadistas da história e sob as vaias dos que reduzem
o papel de Lula na França ao de um candidato à reeleição, que foi a Paris à la
recherche de la popularité perdue — ou em busca da popularidade perdida, numa
brincadeira com o título da obra clássica de Marcel Proust.
Tudo isso já foi comentado à
exaustão ao longo da semana, mas está longe de ser o que merece mais atenção na
avaliação de uma viagem. A importância de viagens como essa, muitas vezes, está
em detalhes que não ficam evidentes no noticiário do que nas cenas que saltam
aos olhos de todo mundo.
SOLUÇÃO CRIATIVA
Para o Brasil, a ida à França
tinha uma importância especial. Embora pouca gente se dê conta, os dois países
são vizinhos — isso mesmo, vizinhos! — e dividem uma fronteira que, a cada dia,
cresce em sua importância estratégica. Sim. O estado brasileiro do Amapá faz
divisa com a Guiana Francesa, departamento ultramarino que deixou de ser uma
mera colônia e passou a ser considerado parte do território nacional da França
ainda sob o governo Charles de Gaulle, em 1946.
Foi, digamos assim, a solução
criativa encontrada pelos franceses para manter controle sobre seu território
na América naquele momento de afirmação dos valores democráticos que se seguiu
à Segunda Guerra Mundial. Àquela altura, o domínio colonial europeu sobre
territórios em outros continentes passou a ser questionado pelo mundo inteiro.
Sendo assim, o fato é que pouca gente, ao longo dos 79 anos que se passaram
desde então, se deu muita importância para o fato de que, para o bem e para o
mal, os dois países são tão vizinhos quanto o Brasil é da Argentina ou a França
é da Espanha. E que, sendo assim, têm muito a conversar sobre as riquezas e os
problemas que compartilham na zona equatorial do continente americano.
Esse tema entrou subitamente
na pauta a partir do momento em que questões como o aquecimento global, a
necessidade de preservação da floresta, a transição energética e as ricas
jazidas de petróleo na costa amazônica se tornaram centrais no debate global. O
assunto, claro, precisa ser tratado pelos dois países sob o ponto de vista
ambiental, comercial e estratégico — e, nesse ponto, a França tem mais lições a
dar ao Brasil do que o contrário.
O debate em torno da produção
do Hidrogênio Verde, que só agora está ganhando força no Brasil, está na pauta
francesa desde o início da década passada. Ele evoluiu de forma acelerada até
que, em 2021 — ou seja, há quatro anos —, uma empresa chamada Hydrogène de
France — HDF investiu US$ 200 milhões na instalação de uma fábrica destinada a
produzir hidrogênio para uso como combustível numa usina instalada na Guiana e
abastecida com energia solar. A unidade conta com uma plataforma de eletrólise
essencial para a obtenção do combustível, sistemas de armazenamento de
hidrogênio e unidade de armazenamento de bateria de íon-lítio. Um
empreendimento como esse no Brasil ficaria anos sob análise do IBAMA e uma
fábrica como essa dificilmente teria autorização para funcionar.
É, como se vê, um projeto
importante, de alta complexidade, e que — embora envolva pontos delicados para
a questão ambiental — se encontra em funcionamento regular em plena Amazônia.
Não é só. Desde 2011, ou seja, há longos 14 anos, poços de petróleo localizados
no mar do Caribe, a seis mil metros de profundidade, vêm sendo explorados com
autorização do governo dos órgãos ambientais franceses. Atualmente, a Guiana
tem empreendimentos da Tullow Oil, uma associação entre a anglo-holandesa Shell
e a francesa Total, além de poços da própria Total e da canadense Eco Atlantic.
Esses projetos seguem a todo vapor e jamais se ouviu da ministra do meio-ambiente do Brasil, Marina Silva, qualquer crítica, por mais tímida que fosse, ao impacto que eles podem causar ao ambiente. Ao mesmo tempo, porém, a ministra impõe todo tipo de obstáculo possível à exploração econômica da região Norte. Enquanto a França explora a Amazônia em troca de cuidados ambientais redobrados, o vizinho Brasil, por meio do ministério de Marina, acha que a solução é deixar tudo como está.
Por mais relevante que seja,
essa questão ficou à margem da cobertura da viagem. Outros temas importantes,
porém, foram abordados por Lula nas reuniões que teve com Macron. Entre elas
está, naturalmente, o tratado comercial que, no momento que entrar em vigor (se
é que vai entrar um dia), abrirá para os produtos agrícolas do Mercosul as
portas do trilionário mercado consumidor da União Europeia.
RAPAPÉS DIPLOMÁTICOS
Por mais que tenha coberto
Lula e sua comitiva com os salamaleques e rapapés diplomáticos em que os
franceses são mestres, o fato é que Macron tem sido o maior entrave à
implementação do acordo. Embora o presidente brasileiro tenha pedido a “seu
amigo” Macron, para “abrir o coração” e aceitar os termos exaustivamente
discutidos ao longo dos últimos 20 anos, o francês se mostra mais irredutível
do que Asterix e Obelix, os personagens de ficção da aldeia gaulesa que
resistia às legiões de César nos tempos do Império Romano.
Macron tem seus motivos e,
assim como Lula, trabalha o tempo todo com os olhos mais voltados para a
repercussão de suas decisões dentro do próprio país do que em fazer acordos e
alianças que sejam proveitosos para todos. Ele sabe que os agricultores locais
farão o maior fuzuê aceite abrir o mercado doméstico — bloqueado por barreiras
protecionistas travestidas de cuidados sanitários — ao agronegócio mais moderno
do mundo. Sendo assim, ele considera melhor manter o coração fechado ao apelo
de Lula do que abrir o flanco para as bordoadas que virão dos barulhentos
fazendeiros que sempre o apoiaram em troca da defesa de seus interesses.
Para não dizer que se negou a
discutir o pedido de Lula, Macron fez uma concessão ao visitante e disse que
até topa assinar o acordo. Desde que sejam incluídas alterações importantes no
texto do tratado, que levou 20 anos para ficar pronto. Ou seja, propõe reabrir
um diálogo que pode se estender por mais 20 anos para que a pessoa que estiver
na presidência da França ali por volta de 2045 peça novas alterações antes de
admitir a abertura das fronteiras do país aos produtos agrícolas
sul-americanos.
É neste ponto que entram em
cena os mistérios da diplomacia. Embora não pareça, o fato da resistência da
França ao tratado ter ficado explícita nesta viagem já pode ser considerada um
avanço no que diz respeito aos interesses brasileiros. Quando Macron visitou
Lula, em março de 2024, o tema sequer esteve na pauta das discussões por
exigência da diplomacia francesa — que condicionou a vinda do presidente
francês ao silêncio em torno do assunto que poderia gerar incômodos para ele.
Ficou a péssima impressão de que Lula ignorou um assunto importante para o
Brasil para não melindrar o presidente de uma das poucas democracias relevantes
do Ocidente que aceitam dialogar com seu governo e tratá-lo de igual para
igual.
Ao retribuir a visita com esta
viagem à França, Lula talvez devesse ter mantido a mesma discrição em relação a
outros temas delicados da pauta entre os dois países. Ao mencionar em seu
pronunciamento sua tese peculiar de que a Ucrânia é tão culpada quanto a Rússia
pela guerra que os dois países travam há mais de três anos, Lula ouviu uma
resposta desconcertante. “Há um agressor, a Rússia, e um agredido, a Ucrânia, e
os dois não podem ser tratados em pé de igualdade”, disse Macron em tom
professoral. “A violação da integridade de um Estado foi causada pela Rússia,
não pela Ucrânia”.
Ainda que o resultado concreto
da viagem em relação ao acordo comercial tenha sido discreto e as diferenças do
ponto de vista do Brasil e o das democracias europeias no que se refere à
ditadura de Putin tenham ficado evidentes, a viagem teve para o governo
brasileiro um saldo mais positivo e menos incômodo do que o das viagens
presidenciais mais recentes. Para citar um exemplo positivo, a presença de Lula
valorizou a solenidade em que o ministro da Agricultura Carlos Fávaro recebeu
da Organização Mundial da Saúde Animal o certificado que aponta o Brasil como
um país livre da febre aftosa sem vacinação. Isso não é pouco.
Em novembro do ano passado, só
para lembrar, a rede francesa de supermercados Carrefour sofreu um boicote dos
frigoríficos brasileiros depois de seu presidente mundial, Alexandre Bompard,
criticar a qualidade da carne brasileira. Referindo-se ao acordo da União
Europeia com o Mercosul, o executivo apontou “o risco de inundação do mercado
francês com uma produção de carne que não atende aos seus requisitos e
padrões”.
Preocupado com o impacto de
suas palavras arrogantes sobre os negócios da empresa que dirige, e que tira
boa parte de seu lucro de suas operações no Brasil, Bompard se retratou. Mesmo
assim, receber esse certificado depois de um pedido de desculpas que não passou
de formalidade, para usar uma expressão a gosto da diplomacia, foi um tapa com
luva de pelica num momento em que o Brasil ainda se esforça para ter
reconhecida a qualidade se seus produtos agrícolas — embora essa qualidade
esteja mais do que comprovada por quem consome os alimentos colhidos e
processados para agroindústria nacional.
Detalhes como esse que fizeram
o saldo dessa viagem à França o mais positivo de todas as viagens feitas a
partir do momento em que Lula decidiu correr o mundo para buscar novas forças
e, mais uma vez recorrendo à obra de Proust, recuperar a popularidade perdida
no Brasil. Sob qualquer ponto de vista, é melhor para Lula — assim como para o
país que ele governa — aparecer na foto ao lado de alguém como Macron do que
rendendo homenagens a gente como o ditador russo Vladimir Putin ou o chinês Xi
Jinping — com que o presidente do Brasil esteve recentemente. Macron é um
presidente eleito pelo voto direto numa democracia que, os defeitos e
qualidades que tem, é uma das mais sólidas e institucionalizadas do mundo. Só
isso já conta pontos para quem, por mais que fale em democracia, está sempre em
companhia de ditadores.
ÁGUAS TRANQUILAS
Para Lula, essa ou qualquer
outra viagem é positiva porque, com a popularidade prejudicada pelos problemas
domésticos que seu governo nunca deixa de criar para ele mesmo, o presidente
talvez encontre numa dessas jornadas internacionais a chave que lhe permitirá
inverter a curva da perda de popularidade. E, nesse ponto, o presidente não
pode se queixar de estar sendo vítima de perseguição por parte dos adversários
que estão sempre em sua mira.
Em circunstâncias normais,
este seria o ano ideal para o governo mostrar trabalho e procurar se fortalecer
com o objetivo de aumentar suas chances eleitorais nas urnas do ano que vem.
Talvez o presidente pudesse estar neste momento navegando em águas mais
tranquilas e até colhendo os frutos de uma situação econômica que, se não é tão
fulgurante quanto dizem seus apoiadores, está longe de ir tão mal quanto seus
adversários querem fazer crer, se ele mesmo não tivesse antecipado o calendário
eleitoral. Foi o próprio Lula que anunciou, na primeira reunião ministerial
deste ano — quando cobrou mais fidelidade e empenho de seus auxiliares na
defesa do governo — que “2026 já começou”. É aí que está o problema.
Por incrível que possa
parecer, o declínio da popularidade de Lula, que ainda está longe de eliminar
suas chances de vitória no pleito do ano que vem, se tornou mais acentuado a
partir do momento em que ele fez esse anúncio. Se, de qualquer forma, ele não
conseguir inverter a curva descendente e recuperar o prestígio perdido, corre o
risco de dificultar uma disputa que os analistas viam como favas contadas em
2023, quando ele tomou posse.
Lula está em busca de uma
saída para o problema que ele mesmo criou. Nas últimas semanas, o tema da
reeleição passou a ser tratado como uma espécie de obsessão no terceiro andar
do Palácio do Planalto, onde fica o gabinete presidencial. Pelo que dizem alguns
dos integrantes do círculo mais próximo dos assessores de Lula, o presidente
não dá um passo nem toma uma única decisão sem medir as consequências
eleitorais de seus passos. Se dará certo ou não, só o tempo dirá.
O fato é que, como tem tido
dificuldades de encontrar no próprio país situações de apelo eleitoral que
facilitem o trabalho de sua equipe de marketing e reforcem seu prestígio
pessoal, Lula tem ido atrás delas no exterior. A questão é que as situações domésticas
positivas até aparecem. Mas, diante delas, o presidente tem cometido
impropriedades que acabam se voltando contra ele.
Semanas atrás, na inauguração de um braço da transposição do Rio São Francisco no interior da Paraíba, Lula fez uma afirmação que causou um estrago enorme à sua reputação junto ao eleitorado mais conservador que, querendo ou não, ele terá que conquistar se quiser vencer as próximas eleições. “Deus deixou o sertão sem água porque sabia que eu seria presidente”, afirmou. Os danos que esse arroubo verbal causou à imagem do presidente foram monitorados e tudo indica que foram maiores do que se imagina — e com outros como esse, será necessário um milagre para que ele não veja sua popularidade ir por água abaixo. Os próximos meses, como se vê, serão de fortes emoções.
Título e Texto: Nuno
Vasconcellos, O
Dia, 8-6-2025, 0h
Uma imprensa que não merece o voto de Mendonça
Vou ser investigado por conspiração?
Gilmar Mendes cala a imprensa
Orgulho do Brasil
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