Aparecido Raimundo de Souza
ÀS VEZES, NA MINHA SAUDADE cheia de pesadas digressões e insípidos
detalhes, recordo a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo.
Dentro dessa saudade, afrontando perigos terríveis os mais diversificados, me
transporto (como num sonho bom), levado que sou pelas asas coloridas da
fantasia dimensional. Nessa viagem minhas prerrogativas se propagam e então,
extasiado, alcanço os primórdios daquela quadra risonha e feliz, onde, pés
descalços, palmilhando sofregamente a terra batida passava os dias brincando
contente, numa adolescência puramente bucólica e envolvente destituída da
maldade dos adultos e da perversidade dos homens sem lei.
Claro como a luz incandescente
que abrasa meus dias atuais, vai se desenrolando, com a nitidez de uma
reconstituição inesperada, uma espécie de visão cadente. Dentro dela, vejo o
alpendre com as mesas e as cadeiras em madeira pura, a pinguela sobre o córrego
junto aos canaviais, o curral, o paiol de guardar mantimentos (que, de tão
antigo, se debruçava no peso de sua própria caducidade) e o monjolo que
funcionava incansável, às margens de um riacho de águas límpidas e brilhantes,
onde no começo de noite, por volta das dezoito, uma lua bonita vinha refletir a
sua resplandescência. A tudo sinto claramente, como se tivesse vivendo aquele
momento (tal e qual aconteceu exatos) sessenta e quatro anos atrás.
Mas esperem! Falta uma peça
importante para completar esse jogo de recordações que invade meu “eu”
entorpecido. Não consigo encontrar esse elo ausente, esse brinquedo que durante
anos a fio representou a minha verdadeira razão de existir. Falo de um balanço.
De um velho balanço que vivia escondido, lá bem longe da casa grande (mais para
perto dos campos cobertos de primavera), quase a roçar nos trilhos da velha
Maria Fumaça, que propriamente do imenso quintal que adornava a galeria em
torno da construção principal. Todo cair de tarde, por volta das quatro horas,
quando vinha descansar a estafa da escola primária, era naquele balanço de
correntes enferrujadas, meu passatempo preferido.
Vezes sem conta, me punha a
balançar em ritmo coordenado e eloquente, esquecido de tudo, da vida, das
lições chatas de matemática (de português não, adorava as aulas de redação), da
professora de história, da merenda ruim e repetida, dos colegas brigões e dos
castigos impertinentes com joelhos ao milho (rosto colado à parede), ou quando,
por qualquer besteira, extrapolava além da conta, entrava em cena, a
admoestação endossada pela abusada e temida palmatória. Naquele vai e vem
mavioso, algo bom e sensível espantava para as colinas verdes e adornadas de
esperança, as intempéries e incertezas de meus dias memoráveis.
Dava a impressão em minha
desenvoltura espiritual, meus tesouros de astúcia e fertilidade de imaginação,
que no “vai” alcançava um futuro muito além das minhas possibilidades de menino
sem dono. Como se, num repente, topasse com outro mundo paralelo e
desconhecido, esmagando taciturnamente meus sonhos desordenados. Na verdade,
era mais feliz o “vem”, porque novamente retrogradava, recuava no tempo,
passava pela infância querida, batia os pés no meu chão vermelho e tudo, tudo
como num passe de mágica, se transformava.
Nessa conversão, voltava a ser
criança outra vez. Dentro de mim, me sentia gente, apesar de morar com vovô
João, senhorzinho encurvado pelo peso dos janeiros, seu rosto congelado sob as
rugas, como o de um vivente sem vida, entretanto, simples de alma e humilde de
coração. Retinha dentro de sua fragilidade, meu querido avô, uma paciência de
Jó. Parecia um personagem saído de uma canção carnavalesca dos tempos do ronca.
Na pele de um rei, me via poderoso, apesar de não ter mamãe por perto, papai
ausente e separado dela, de não existir, tampouco, nenhum irmão da minha idade
ou qualquer outra criança que me viesse fazer companhia. Embora prevalecesse
essa lacuna, me aquilatava exaltado. De certa forma, fortalecido e solenizado.
Como era bom estar de volta ao aconchego familiar! Vovó Martinha,
entrincheirada nas suas horríveis dores de coluna, não regateava a atenção para
comigo.
Sinto, por todas essas coisas,
uma falta tremenda de seus pães quentinhos, do café feito na hora, de seus
doces, da sua comida no fogão à lenha. Por volta das oito horas, logo depois do
jantar, tendo por companhia a lareira, vovô João, acomodado em sua
espreguiçadeira, fazendo prevalecer a sua imaginação, botava para fora
histórias fantásticas, inventadas, contos classificados no prodigioso fichário
que se transformara a sua memória.
Hospedeiro aos extremos, lhano e sociável, agarrado a esses enredos de
espantos crescentes, criavam vida e forma, em suas palavras, bruxas e
príncipes, fadas encantadas e cinderelas que se viam presas em castelos, por
mãos de homens de corações maus, que transportavam criaturas inocentes em
carruagens vermelhas, com cavalos de duas cabeças para um planeta desconhecido,
cuja entrada ficava numa caverna, em meio da floresta densa e intocável...
Nesse retornar, me sentia
envolvido pelo calor daqueles que me cercavam de carícias e afetos. Esses mimos
se faziam quase opressivos, contudo, dentro de uma ansiedade que não chegava a
ser tirana. Tardão da noite (não poderia me esquecer desse detalhe), meu Deus
do céu... os vaga-lumes do campo vinham enfeitar a sacada, onde me sentava
antes de dormir, para espiar compridamente o tempo. Tinha a impressão de que o
céu caía inteiro do infinito e se postava, vencido, aos meus pés descalços de
pobreza. Apesar dessa desproteção, eu era capaz de viver, numa única
existência, uma série de outras realidades num percurso que se me abria com
infinitas sucessões.
Como se fosse o apertar de um
gatilho de uma arma poderosa, quebrava o marasmo, algo parecido com uma bala
zunindo sons estranhos, libertando as vozes eufóricas dos sapos enterrados no
brejo, dos grilos perdidos nas folhas das árvores e fazendo voar, num
deslocamento pesado, os morcegos irrequietos que durante o dia dormiam
negligentes e omissos na hospedagem do monjolo. Esses fatos, em conjunto,
provocam uma espécie de explosão momentânea.
Em mil pedaços me reparto
agora, me desdobro, me compartilho. Ao fazê-lo, me vejo correndo feito guri
daninho, de um lado para outro do passadiço. A todo custo, pretendo reter a
noite, com todos os seus segredos. Guardar tudo numa caixinha de madeira velha,
que mantenho escondidinha debaixo de minha cama. Porém, as mãos trêmulas de
moleque encapetado não me permitem tal façanha.
Agora, quando passados tantos e tantos janeiros, percebo, com certa
tristeza, todas essas coisas se foram, se perderam, sumiram no abismo
imensurável e não volta mais. Abobalhado, de queixo caído, me questiono: por
Deus, todas essas relíquias para onde foram? Em que parte de mim está escondida
aquela quadra risonha que fazia parte do meu dia a dia? Essas indagações giram
em minha cabeça no ritmo de um motor sendo acionado numa aceleração sofrida.
Talvez seja por isso, que às
vezes, na minha saudade, angústia imensa como um mar proceloso pancadeando
restos de um naufrágio, recorde a infância distante, perdida, agora, na poeira
do tempo...
Como é bom, como faz bem
viajar ao passado! Encontrar o chão de terra vermelha (nele o pomar de laranjas
e as bananeiras), entremeado entre as duas velhas montanhas rochosas que os
dominavam do alto. De roldão, o abacateiro florido onde eu subia e rasgava as
calças. Havia também, as galinhas, os patos, marrecos e porcos que vovó
Martinha juntava no terreiro, quando saia à porta da cozinha, sem deixar de
lado as pedras e bugigangas rejeitadas que colocava nos trilhos dos trens que
cortavam a herdade...
Nessa minha agonia imorredoura
e atroz, sempre falta o velho balanço, com seu barulho tênue que ficava
esquecido nos fundos do quintal. Essa peça enferrujada, que me fazia sentir
mais criança que o moleque peralta existente dentro de mim. Cadê o velho balanço? Em que cantinho oculto de minha alma, em que
desvio da minha lembrança, em que atalho nesse meu agora ele se quedou
adormecido e estático? Indubitavelmente, era nesse velho balanço que viajava
para o futuro.
No mesmo passo, montado nele
andejava, desenredado, roubava, com uma só mão segurando a corrente, o espaço
distante, as nuvens que voavam baixinhas, o sol gostoso, o ar mormacento que
respirava o vento ameno que tocava nas folhas, e também o calor que aquecia
meus cabelos. Confortavelmente sentado nesse brinquedo, acomodado com todas as
minhas quimeras e esperanças, a cabeça jogada para trás, roubava com arrojo o
azul mavioso do infinito e, de contrapeso, a paz enternecedora dos olhos de
Deus para enfeitar os caminhos incertos e desconhecidos da minha louca
imaginação.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De São Paulo, Capital. 4-8-2017
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Como é bom recordar as peraltices da nossa infância, onde a felicidade era constante, ahhh o balanço esse sim é uma bela recordação, onde podiamos dar asas a nossa imaginação, sentir a brisa suave tocar nosso rosto, onde os sonhos mais loucos em nosso momento criança se faziam findar. Eram tantos sonhos guardados que com o tempo ficou perdido no ar. Lindo texto; parabéns Aparecido Raimundo de Souza. Muito gostoso recordar nosso tempo de crianca
ResponderExcluirAgradeço, carinhosamente, o comentário da "Essencial Produções", na pessoa da jovem Carla, ao meu texto "O Velho balanço". Obrigado, de coração.
ResponderExcluirMeu menino.....
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