terça-feira, 24 de março de 2015

Recordações de um político que acaba sozinho

Maria João Avillez 

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3. Voltemos à República. Ando com isto na cabeça: terão alguns jornalistas e algumas das pessoas que frequentam as televisões e têm lugar habitual no debate público consciência do espanto que poderão provocar nas plateias vulgares, normais, que os ouvem?

O ar do país mediático está saturado de acusações. Não se faz mediação, acusa-se; não se informa, julga-se; não se esclarece, diz-se mal. De tudo e a eito. Perguntadores, mediadores, esclarecedores ou… exclusivamente advogados de acusação? A suspeita e a desconfiança têm praticamente lugar cativo, utiliza-se um considerável grau de má-fé e consome-se por vezes porções de ódio.

O comentário e o debate são muitas vezes – não todas, eu sei – pilotados por episódios e fait-divers e veja-se o tratamento dado à tômbola dos candidatos presidenciais – até aqui sem base de sustentação e com pouca verosimilhança – se não é de meter medo? E agora, com a introdução na tômbola de uma não despicienda novidade: cada um chega a um lado qualquer, atira com um nome e o nome passa a ser notícia-para-se-fazer-caso: igual, ou quase, a uma declaração formal de candidatura…

Também surpreende a deslizante leveza com que nos ecrãs, todos sabem que a medida A, a lei B, a decisão C estão obviamente erradas e deviam ser imediatamente trocadas pela X, a Y, e a Z (defendida pelas oposições ou os interesses estabelecidos, sendo irrelevante que nem umas nem outros careçam de mandato eleitoral para governar e logo para produzir medidas e decisões). Ouço muito falar – e constato-a – da descrença que paira sobre a política e do divórcio do eleitor face ao político, mas nunca ouço falar do peso ou da relevância ou da influência (como quiserem) de certos enviesamentos – não todos, repito – das televisões nisso tudo: quando mil vezes por dia se acusa a classe política de absolutamente todos os pecados enquanto ao mesmo tempo não se hesita em permanentemente a julgar na praça pública, e até com o apoio de documentos forjados? Ou lidando do mesmo modo empenhado com verdades, meias verdades ou mentiras? Ou ainda não se hesitando no assassinato moral de Pedro Lomba – por exemplo – como foi o caso há dias num jornal dito de referência.

Seria aliás incapaz de me pronunciar ou criticar o novo programa para os imigrantes que fez de Lomba a sua vítima (?) porque em absoluto desconheço o seu conteúdo. Já não seria incapaz de manifestar surpresa pelo tom soez usado neste caso onde afinal pouco ou nada se atendeu aos objectivos, bondades ou maldades do tal programa, preferindo-se o insulto ao argumento. Não percebo que dê jeito confundir isto com informação.

Eu sei que é proibido falar assim. Impopular e condenável, contra a corrente bem pensante e os seus códigos obrigatórios. Os seus hábitos e tribos. Paciência. Não vou imbecilizar-me ao ponto de lembrar aqui, ao fim de décadas de oficio, que conheço bem o valor fundamental da comunicação social e das suas insubstituíveis funções no equilíbrio e na saúde de uma sociedade democrática. Mas também não me imbecilizarei ao ponto de achar que o que se vê ou ouve todos os dias é – em muitos casos – passível de encaixar no adjectivo “verosímil” para já não dizer num sério e indispensável exercício de informação. Será porque o jornalismo é afinal a única classe trabalhadora que não “despacha” perante ninguém e é livre de acusar ou denegrir por opção? (sabendo-se ainda que quem se sinta humilhado ou ofendido com as consequências de tal “ comportamento” terá o inferno como destino pronto e único…)

Qualquer ser normalmente constituído, de esquerda ou de direita (até porque a seguir a uma, vem a outra…) pasmará com a leviandade risonha dos comentadores, profissionais da política. Há uns meses, Marques Mendes queixava-se compungidamente do avultado número de “casos e broncas, surpresas”, etc. (cito de memória) para dizer com alivio que sim, felizmente havia outro país, normal, óptimo, que seguia em frente, produzia, etc. Sem lhe ocorrer o que ele próprio (Mendes) contribuía para o eco das tais coisas: quantas não ampliou já ele nos ecrãs? A quantas não deu importância, quantas não transformou em “certezas”?

Um dia li aqui no Observador que Marcelo se dizia “cansado da intriga”. Quem havia de dizer, um fazedor/produtor/realizador do seu calibre, cansado do seu próprio produto? Mas a quantas intrigas não ofereceu ele – de bandeja – verosimilhança? A quantas não concedeu imediato direito de cidade? A quantas não emprestou a legitimidade do “professor”?

Nada disto é novo, nem original nem exclusivo e mesmo se com o mal dos outros posso eu bem, é-me irresistível deixar aqui algumas linhas que julgo pertinentes de alguém que se atarda sobre estas matérias. É espanhol, chama-se Miguel Angel Belloso, é um liberal sem grandes ilusões, professor, cronista e mentor de uma revista de economia que também dirige. Escreve semanalmente no DN e se aqui o cito é porque ele traduziu de forma simplicíssima, essa espécie de estranheza a que pretendi aludir acima. Eis um breve excerto de um recente artigo seu:

“Se alguém se questiona por que pode a Espanha perder a estabilidade política quando vierem as próximas eleições nos finais deste ano, e há possibilidades de que uma coligação heterogénea de esquerda possa governar o país, a resposta principal está na televisão. As duas principais estações do país, vistas diariamente por milhões de pessoas, são de esquerda. Programam debates políticos de manhã, à tarde e à noite que têm uma audiência muito respeitável e estão povoados por personagens, muitas delas irascíveis e desacreditadas, que desconhecem os princípios mais elementares da economia de mercado. Inclusive os que provêm do mundo conservador, que são a minoria, carecem de princípios claros sobre como se gera a riqueza ou em que consiste o dinheiro. O resultado é que uma pessoa senta-se a jantar com a família e o país, que está a crescer a um ritmo superior a 3% e vai produzir este ano mais de meio milhão de postos de trabalho – 400 mil em 2014 -, transforma-se no ecrã num país à beira de uma crise humana, numa situação de emergência social (…)”

Portugal não é a Espanha mas quem esteja a jantar com a família e abra a televisão, também se espanta: é como se o país vivesse uma situação de catástrofe social generalizada, a fome fosse trivial, o desemprego não fizesse senão aumentar e toda a classe política estivesse sob suspeita.

Pergunto: ou não? 
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 24-3-2014

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