Valdemar Habitzreuter
Não mais esta vida tranquila e
paradisíaca!... “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão...” Eis a sentença
fatídica à espécie humana como herança do pecado adâmico. Nascemos pecadores,
segundo a cultura religiosa judaico-cristã. Em outras palavras, desde o início
estamos contaminados pela doença do pecado, e o remédio da cura é o batismo que
purifica o ser humano dessa mancha original, mas só com a observância fiel das
prescrições da bula cristã. O remédio, para ser eficaz, é de uso contínuo,
encapsulado pela fé e esperança da cura definitiva; portanto, a garantia da
salvação.
Como conceber que uma
criancinha recém-nascida já tenha sua alma maculada por herança do pecado de
Adão e Eva? E que pecado é esse? Tem ela o gene do pecado contaminador dos
primeiros pais da humanidade? Segundo o cristianismo (catolicismo), sim; ela
tem de ser batizada desde criancinha, pois se chegar a falecer sem o batismo
não verá a glória no céu, vegetará eternamente no Limbo... Mas espera aí,
parece que o Limbo já não existe mais, não foi abolido pelo papa Bento XVI?...
Restaria então o purgatório. Mas, há aí também um problema, só passa pelo
purgatório quem foi batizado e precisa expiar alguma dívida deixada para trás
aqui na terra. Às pobrezinhas sem batismo só restaria então o inferno.
A única saída dessa trágica
fatalidade seria abolir também o inferno. Essas criancinhas iriam então para o
céu e fariam o ambiente celestial mais alegre com seus sorrisos inocentes e
angelicais, contagiando a todos os seus habitantes e ao grande vovô Deus.
Acredito que isso ainda está por vir. O Papa Francisco já acenou neste sentido
quando diz: “A igreja já não acredita em um inferno literal, onde as
pessoas sofrem. Esta doutrina é incompatível com o amor infinito de Deus”.
Mas, vejamos se não há um
fundo de verdade nessa herança pecaminosa do pecado original. Precisamos retroceder
a História quando foram assentadas as bases da teologia cristã (mais exatamente
da teologia católica). Um dos maiores representantes foi Sto. Agostinho no sec.
IV, recorrendo à filosofia neoplatônica (Plotino). Como é bem sabido, na
Filosofia de Platão o corpo é um cárcere para a alma, dificultando a que ela
vislumbre e faça sua trajetória de volta a sua morada original. Só através de
uma ascese rigorosa e constante consegue o homem reprimir ou controlar os
sentidos, as paixões, da carne para que a alma se lembre de sua origem da
outrora vida de bem-aventurança e lute contra a natureza carnal que a escraviza
e, assim, possibilitar a volta e poder desfrutá-la novamente.
Agostinho, na época, estava às
voltas no combate ao pelagianismo (heresia de Pelágio) e, justamente, teve que
enfrentar um pelagiano intelectual altamente versado em filosofia e teologia
como ele, de nome Juliano de Eclano, que discordava totalmente da possibilidade
da transmissão por herança do pecado de Adão e desafiou Agostinho: “dizei-me:
quem é essa pessoa que inflige um castigo a criaturas inocentes. (...) Vós
respondeis: Deus. Deus, dizeis! Deus! Aquele que nos confiou Seu amor, que nos
amou, que não poupou Seu próprio Filho por nós. (...) É Ele, dizeis, quem julga
dessa maneira; é Ele o perseguidor de crianças recém-nascidas; é Ele que envia
bebezinhos para as chamas eternas”. (...) Seria correto e apropriado tratar-vos
como indigno de argumentação”...
Mas, Agostinho não deixou por
menos e rebateu com o seguinte discurso: Adão e Eva, assim que perpetraram o
pecado, cobriram suas genitálias de vergonha e isto configurou sua culpa,
conscientes que ficaram do pecado cometido ao desobedecer a Deus. Esta sensação
de culpa e consequente vergonha acompanha ainda hoje a todo ser humano como uma
herança psíquica, no dizer de Agostinho. Assim, a atividade sexual humana
oferece a oportunidade de pecar, de enlamear a alma pelo gozo do corpo se não
for regrada.
Nesse sentido, desde os primórdios,
a moral cristã incutiu de que o instinto sexual deixado livre e sem controle
nos arrasta para o lado animalesco e nos deixa distantes das coisas do espírito
(nada mais platônico). A moral cristã, pois, é um tanto antissexista e enaltece
a castidade para fins de elevar espiritualmente o ser humano; o sexo exercido
fora dos padrões morais cristãos seria pecaminoso, permitido apenas,
controladamente, dentro do casamento para fins de procriação.
Mas, onde entra aí a culpa (?)
herdada das criancinhas, estas criaturinhas tão amáveis por sua inocência?
Teria Agostinho prenunciado Freud séculos mais tarde? Pois a teoria de Freud se
baseia justamente nisto: as criancinhas, desde a nascença, já têm pulsões
sexuais, são fortemente eróticas em suas etapas de crescimento. Assim,
observa-se a erotização na sucção do seio da mãe (fase oral), seguindo-se a
fase anal..., a fase fálica.... e, por fim, a fase genital... Enfim, já teriam
o impulso sexual desde a mais tenra idade. Estaria aí velado o pecado original
adâmico?
Agostinho, através do conto
mítico bíblico da transmissão do pecado original aos descendentes, não teria
visto nas criancinhas uma potencialidade pecadora transmitida por herança e que
deveria ser enfraquecida e remediada pelo batismo? O batismo configuraria, por
assim dizer, uma espécie de divã freudiano para um proceder da catarse da alma
ao longo da vida cristã. Eis, pois, a psicanálise agostiniana do pecado
adâmico... Mas como Freud já está ultrapassado em muitos aspectos, Agostinho
também o possa ser...
Título e Texto: Valdemar Habitzreuter, 16-3-2017
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