Aparecido Raimundo de
Souza
“A solidão era tanta, tanta e tamanha, que entrelaçava
seus corações até antes mesmo de terem nascido”.
Tompson de Panasco
TINHA MAIS QUE MORRER O SUJEITO. Vagabundo, desocupado, vivia pelas ruas
andejando com visível dificuldade, batendo de porta em porta, vomitando a sua
impotência desenfreada a quem cruzasse com ele. Tomado pelo instinto de um
esmoleiro dos tempos medievais, parecia preso numa piedade calada. Aqui e
acolá, implorava restos de comida, pães velhos, roupas fora de uso. E quem
doasse alguma coisa – se esperasse um muito obrigado ou um Deus lhe pague –
fosse tirando o cavalinho da chuva.
Aquele homem não abria a boca de jeito nenhum, para agradecer um nadinha
que lhe fizessem.
Além de todos esses
defeitos, terrivelmente mal-agradecido. Sem vergonha e descarado, atrevido e
impávido, quando cruzava com mulheres bonitas, abria-se em gracejos e mesuras.
Fazia piadinhas sem graça e pesadas. Deixava as boquiabertas raparigas com seus
rebolados perdidos, inclusive as senhoras que não tinham mais rebolado,
fisgadas pelo avanço da idade. O certo é que tais velhotas coravam boquiabertas
e desgostosas com o infeliz.
Um dia, um bando de
desocupados e desordeiros deu-lhe algo forte para beber, e o colocaram a pique.
Deu tilte no cabeção. Quando as irmãs do convento de São Francisco de Assis,
por acaso, atinaram com o pobre, jazia o coitado, caído de bruços, numa vala
aberta recentemente pela prefeitura nas circundâncias da cidade, as roupas
quase a despencar do corpo malnutrido e debilitado de saúde. Penalizadas,
avisaram o Padre Gregório, que imediatamente providenciou uma equipe da
pastoral. Resgatado, levaram-no para o banheiro publico (cidadezinhas do
interior tem muito desses WCs coletivos) e deram-lhe aos costados, um chuveiro
em regra.
Trocaram as roupas
farropoídas por novas. Fizeram-lhe a barba, apararam os cabelos e ainda
descolaram um par de sapatos e até um paletó fora de moda, mas bom. Como para
ele não havia isso de moda, a nova vestimenta veio a ser útil demais, até
porque não se tinha notícia de algum dia os habitantes lhe terem visto
enroupado num paletó.
Dessa maneira, aquele
andarilho, de repente, tornou-se até bem-apessoado, de personalidade firme e
maneiras delicadas. Seu rosto sem a barba de semanas apresentava um aspecto
jovial. Quem o visse, agora, não daria para ele vinte e poucos anos, embora
pela certidão, ou melhor, pelo que havia sobrado do documento, contasse trinta
e cinco. Vendo-se assim, tão remoçado, o próprio não se reconheceu no espelho
que lhe botaram na frente dos olhos espantados.
De fato, aquela tez refletida,
deveria ser outra, menos a dele, o desgraçado, o traste, que vivia de deu em
deu. “Que homem bonito – pensou com ares narcisistas – parece até artista de
cinema”. Ao diabo, fosse quem fosse. Se o espelho estava ali, plantado diante
de seu nariz, só poderia ser ele mesmo. Danasse o resto e tudo mais!
Bonito, simpático,
atraente, passou a fazer as refeições junto com o padre, na casa paroquial que
ficava colada a igreja. Poderia, agora, quem sabe, se desse a sorte, arranjar
uma namorada. Mas naquele lugarejo... nenhuma rameira, ou dama que prezasse a
honra, iria querer flertar com um borestia daqueles... mesmo as encalhadas se
candidatariam a viver ao lado de um homem que ninguém sabia de onde tinha
pintado, se fugitivo da justiça, ou procurado por dever qualquer coisa à
sociedade.
Somente ele sabia de
onde provinha. Somente ele tinha as respostas e poderia falar abertamente do
passado. Contudo, pobre mendigo, desprezível alma que ninguém dava importância.
A ninguém interessava saber ou entender que, outrora, ele fora um rico e
abastado fazendeiro, que tinha mansão, carro do ano, lojas de comércio, muitas
terras, uma centena de empregados, mulher bonita e uma filha maravilhosa. Nos
dizeres de Ovidio, “Donec eris felix,
multos numerabis amicos; tempora si fuerint nubila, solus eris”. Verdade, por sinal, incontestável.
O que se apurou
depois, a companheira, sem mais nem menos, o abandonou e foi embora para outra
localidade, a tiracolo com um sujeito esquisito, levando a filha de quinze anos
(na época) e nunca mais dando sinais de vida. Ele, apavorado, sem saber o que
fazer, ficou desatinado, alienado. Andou, procurou, fez mil loucuras, porém não
soube, jamais topou com o paradeiro de sua consorte. Abestado e mentecapto,
abandonou o sítio, as terras onde plantava café e virou andarilho. Na sua
pequena e pacata Andirá, interior do Paraná, morador por mais antigo que fosse
saberia dar noticias precisas. Nem da mulher ou da filha, ou do elemento que,
com elas, se debandara.
Por isso, ele se tornara
um nômade cigano, sem porto seguro, a vagar errante de cidade em cidade, sem
paradeiro certo, alma vazia, comendo, vivendo, e se mantendo a custas da ajuda
alheia. Quem, naquela localidade, iria se interessar por ele? Ninguém. Viva
alma se atreveria a descer tanto... de novo com suas dores e misérias,
lembranças e medos, abandonou o aconchego do padre Gregório e voltou à
malfadada e incerta vida de João Ninguém.
Nem mesmo outra
ambulante que há quinze ou vinte dias chegara e rodopiava por ali, igual a ele,
vinda de algum eito com as suas típicas sujices, ou talvez, pior em flagelo,
pudesse ser comparada. Moça bonita lembrava Oriana, amada de Amadis de Gaula,
apesar de seus olhos tristes e sofridos, as roupas frangalhadas, porcamente
cobrindo um corpo escultural, os cabelos compridos em desalinho, figura que em
pouco tempo tornou-se conhecida da galera pela ternura e meiguice que
transmitia. Só tinha o defeito de ser pobre e a falha de ninguém saber de onde
havia aparecido.
Coisa de dois sábados,
o imprevisível criou vida e forma. Ambos os poaias se encontraram na praça, se
viram em relance ligeiro. A beldade, num ímpeto fugiu alígera, porque ele quis
maliciosamente, levantar a sua saia (ou o que restava dela) visando apreciar
melhores perspectivas. A gargalhada dos transeuntes se generalizou. Uns queriam
se divertir, outros acharam afrontoso. Teve meia dúzia de apressadas bocas que
cuspiu no desgraçado rejeitos ejaculados. Pura maldade. Padre Gregório apareceu
de repente e lascou um sermão nos insensatos e a coisa caiu no esquecimento.
Todo esse incidente
não passou de um fato a mais na pacata localidade, que logo em seguida
mergulhou no marasmo rotineiro de sempre. Porém, uma semana após esse quase
desentendimento entre o casal de indigentes, aconteceu uma coisa que espantou a
todos, desde os cidadãos mais honrados, as damas da alta sociedade com suas
riquezas à ponta do nariz, até os menos abastados pela sorte.
Tudo aconteceu numa
chuvosa manhã de domingo. Ninguém avistou o mendigo pelas ruas e calçadas.
Criaturas mais afoitas, perguntaram daqui e dali, mais por questão de
desencargo de consciência, que por solidariedade. O fato é que durante todo o
domingo ninguém avistou o rapaz. De roldão, tampouco a moça. Entretanto, na
quarta-feira à tarde, um bando de garotos que brincava pelas redondezas da
linha do trem, achou, num terreno baldio, dois corpos complemente despidos. O
primeiro pertencia ao sem rumo que vivia de porta em porta pedindo comida e um
copo de café.
O segundo, da infeliz
menina que chegara fazia pouco. Estavam de mãos dadas, rostos muito unidos,
como se pretendessem eternizar um longo e derradeiro beijo de despedida. Os
habitantes deduziram que o mendigo encontrara a garota numa ruela qualquer e a
tivesse arrastado para o mato, a fim de violentá-la. Porém, dias mais tarde, em
face da estação de rádio noticiar os fatos, o jornaleco publicar fotografias da
dupla, a polícia civil entrar em ação, o ministério público se fazer presente,
etc., e tal, investigadores e repórteres de uma dezena de emissoras de
televisão se deslocaram da capital e até autoridades da longínqua Andirá para
desvendarem o mistério.
E desvendaram. O pobre
homem, abastado fazendeiro do norte do Paraná, que saíra pelo mundo feito
louco, em busca de sua família, ou a procura da paz para si mesmo, finalmente
fora abençoado com o evento benfazejo do objetivo que incansavelmente
procurava. A moça, nada mais, nada menos, Érica, sua filha. O rebento que ele
tanto especulou encontrar na sua triste e melancólica vida de solitário. Ambos
(não se sabe como) se reencontraram naquele fim de mundo, e não se teve
explicação plausível, de como se reconheceram, e pior, ninguém soube aclarar
pormenorizadamente como bateram de frente com as garras frias da morte.
Um pequeno grupo de comerciantes
a pedido do padre Gregório, em sintonia com as irmãs do convento de São
Francisco de Assis, providenciou os enterros de pai e filha, com direito a
velório, flores, gente chorando, cantoria, missas de sétimo dia... e até
quermesse. Na verdade, o mínimo que poderia ser feito (e, diga-se de passagem,
puseram em prática), para que dois seres humanos não fossem enterrados em covas
rasas no pequeno cemitério local, como simples indigentes.
Atualmente, uma
estátua enorme (“Almas Carentes”) se vê à entrada de quem chega ou sai dos
arredores para a rodovia que interliga a São Paulo. As honras e os galardões
recaíram claro, no atual prefeito, que trouxe para as redondezas, uma multidão
sem conta de turistas e curiosos que deixam uma soma considerável em dinheiro
nos restaurantes, bares e quiosques da (até então, antes e pacata) cidadela
incrustrada entre montanhas e rios entre outros atrativos da natureza a se
perderem de vistas.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Da Lagoa Rodrigo de Freitas,
no Rio de Janeiro. 27-10-2017
Colunas anteriores:
Como Thompson de Panasco ,já foi citado aqui neste blog, pelo Aparecido mais de dez vezes,temo passar por ignorante se perguntasse quem é .
ResponderExcluirPesquisei e nada encontrei então admito minha ignorância ; Quem é Thonpsom de Panasco?
Paizote
Acredito que seja a sua "alma gêmea"...😊
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