Rui Ramos
Em vez de “europeizar Portugal”, o governo
tem-se ocupado sobretudo com fantasias de “portugalizar a Europa”, isto é, de
reduzir a UE à redistribuição de rendimentos através do poder político.
Durante anos, a modernização
de Portugal foi sugestivamente expressa pela ideia de “europeizar” o país, isto
é, de o aproximar dos padrões de organização e das maneiras de ser da Europa
ocidental. Nos primórdios da democracia, europeizar significou não apenas
recusar a ditadura e a pobreza do passado, mas também a ditadura e a pobreza
daqueles que, em vez da Europa ocidental, tinham como referência a Europa
soviética ou as tiranias de folclore e de miséria do Terceiro Mundo.
A decisão de Cavaco Silva
sobre a adesão portuguesa à moeda única, na década de 1990, resume o sentido
dessa “europeização”: tratava-se, num Estado e numa sociedade minadas por
défices e por desvalorizações, de fazer da integração europeia um princípio de
disciplina orçamental e o incentivo para desenvolver uma competitividade que
não passasse simplesmente por salários baixos.
Sabemos que acabou por não ser
assim. Em 1995, o poder caiu nas mãos dos atuais ministros, então ainda só
secretários de Estado ou assessores e com menos parentes para empregar no
Governo. A partir daí, a ideia de aumentar o bem-estar no país através da
criação de riqueza foi substituída pelo projeto de aumentar o poder do Estado
através da apropriação e redistribuição dos recursos existentes.
A atitude para com a
integração europeia também mudou: já não era vista como um fator de mudança,
mas, antes, como um meio de evitar mudanças. Foi neste novo contexto que o
euro, a partir de 2000, serviu sobretudo para facilitar o endividamento do
Estado e dos bancos e empresas na sua órbita. Assim pôde o regime compensar
socialmente a estagnação que afetou a economia logo que, terminada o protecionismo inflacionista
e alfandegário, não se cuidou de melhorar a sua competitividade.
Em vez de “europeizar
Portugal”, o poder socialista tem-se ocupado sobretudo com fantasias de
“portugalizar a Europa”, isto é, de reduzir a União Europeia a um mecanismo de
redistribuição de rendimentos através do poder político. Nessa união de
“apoios”, “transferências” e “mutualizações”, cada Estado funcionaria como uma
espécie de federação nacional dos clientes e dependentes que, dentro das suas
fronteiras, lutam entre si para disputar uma fatia do bolo do Estado e que,
fora das fronteiras, lutariam juntos para obter uma fatia do bolo da UE. É esta
inspiração que atravessa a entrevista de António Costa sobre a Europa, publicada no
passado domingo.
Costa faz doutrina sobre
muitos temas. Mas a “questão do euro”, a reconciliação dos povos com a
“globalização” ou a ideia de que a prosperidade dos países do norte é
conseguida à custa dos países do sul são usadas em carrossel sempre para
justificar esquemas de transvase de dinheiro.
E como seria de esperar, toda
a resistência a esse projeto é atribuída a uma “crise dos valores
demo-liberais”. É verdade que, pelo meio, Costa fala de “reformas”. Mas para
sugerir, se bem o entendi, que terá sido uma concessão mais ou menos simbólica
à Alemanha, a fim de obter o que interessa: a “estabilização”, isto é, o
financiamento europeu de sistemas demasiado inviáveis para resistir a
conjunturas menos expansivas.
Eis a grande visão da
oligarquia portuguesa: projetar na Europa, ou numa parte da Europa
(necessariamente a parte mais rica), os seus arranjos de poder em Portugal.
Esta Europa “portugalizada” funcionaria assim como o contexto em que, em
Portugal, uma pequena clique instalada no Estado e cada vez mais fechada sobre
si própria continuaria a alimentar as suas clientelas e a desfrutar o poder num
país em declínio. Não está mal pensado, e as políticas do BCE, sem as quais os juros da dívida seriam pelo menos o dobro,
têm alimentado a expectativa.
Mas convém
provavelmente que, para além de Mario Draghi, olhemos para os votos e
as manifestações na Alemanha, na Itália e em França. Talvez sejam a escrita na
parede deste palácio imaginário.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
26-3-2019
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