Aparecido Raimundo
de Souza
EU ERA UM MORADOR DE RUA.
Literalmente jogado às traças. Como tal, sem qualquer laivo de crença, esmolava
ao deus dará, como um miserável mendigo que não encontrava paradeiro em canto
algum para criar raízes e formar uma família. Na verdade, eu não significava
nada mais que isso. Um sem teto, sem chão, sem patrocínio a guisa de futuro,
como tantos existentes por ai, Brasil a fora. Na idade do Mártir do Gólgota,
jogado aos reveses da sorte, empurrava para a barriga os meus infortúnios e a
as minhas desditas como experiências malparidas e sem qualquer feição de
realidade prática.
Sem ter às vezes, o que comer para espantar a fome medonha ou pior, algo
para beber e intencionando aplacar a sede, além de andar aos maltrapilhos das
roupas esfarrapadas, me falsificava viver. Na verdade, vegetava feito um nômade
recrucificado. Vicejava de um canto para outro, em busca de um não sei
exatamente o quê. Porém, apesar dos pesares, com o passar dos dias e dos meses,
me transformei em um morador de rua diferente influenciado por uma onda de
harmonia vinda diretamente do céu. Aliás, lutava tenazmente desde que caíra nas
raias da banda negra da vida.
Pelejava a cada manhã, para ter condições dignas dentro da minha miséria
cada vez mais implacável e medonha. Graças a Deus contei com um benfazejo da
boa sorte amiga e camarada. E agradeço ao Pai Maior por essa oportunidade que
me foi dada. Posso asseverar ser um cara de aura brilhante. A começar pela
comida. Um mês após ter aportado em São Paulo, já não passava fome. Arranjei um
restaurante perto de onde acampara, e todo final de noite o responsável pela
cozinha, seu Alcides, me destinava um amontoado de restos que durante o dia
fizera a festa de seus clientes.
Portanto, de pronto, afastara o quadro ríspido dos roncos barrigais
incomodativos. Como se atravessasse às águas turbulentas e gélidas do Aqueronte
me refazia a cada novo segundo por inteiro e continuava em frente. Em vista
disso, nunca passei pela insatisfação de não ter uma boa marmita nem os demais
companheiros que dividiam comigo idêntico rol de lamurias. Outra oportunidade
única, da qual não podia reclamar. Meu repouso noturno. Não me recolhia
diretamente ao relento. Passava as noites dentro de um recipiente cilíndrico
gigantesco, à semelhança, não ao barril de “Chaves” da série mexicana.
Daquele outro sujeito. Um tal de Diógenes, conhecido filósofo da Grécia
Antiga que viveu muitos e muitos anos antes de Jesus aparecer na terra. Não sei como era a vasilha do sujeito. A
minha cuba certamente bem maior que as comuns. Construído para servir de
residência para o personagem de um filme, se constituía numa gloriosa mansão
que carinhosamente apelidei de minha casa minha vida, claro, minha casa minha
vida às avessas. Todavia, minha casa minha vida com algumas pequenas e
insignificantes variantes. Exemplo. Além de maior em tamanho e largura, nesse
espaço caberiam, sem exagero algum, uns seis ou sete barris, se armazenados
corretamente.
Segundo apurei com quem me fez presente, a gloriosa dorna fora
construída sobre medida para um filme de longa metragem que rodaria em Itu,
interior de São Paulo. Para quem não sabe, Itu é onde tudo se apresenta de
forma exagerada. A localidade se eternizou a nível nacional pelo ator e
comediante Simplício que fazia um quadro nos programas “Praça da Alegria” e “A
Praça é Nossa”, no SBT. Esse particular
não vem ao caso. De posse do presente, devo dizer em bom nível de voz, não
necessitei pagar um centavo para morar e ninguém (fosse da prefeitura ou da
saúde pública) me tirou o teto, nem mexeu comigo e pasmem já se passaram
anos!
Em fluxo idêntico, não me preocupava com as contas da água e luz. A água
eu pegava em um balde plástico num condomínio próximo de onde me instalara,
graças a seu Paulo Quirino, um síndico generoso. A iluminação, igualmente
propícia, também chegava até mim oriunda da companhia de energia. Verdade.
Quero morrer cego dos ouvidos se estiver mentindo. Eu desfrutava da concessão
da bondade e o melhor de tudo, sem precisar fazer o que as pessoas chamam de
“gato”. Afinal, sem enrolação, como tal proeza viera de mãos beijadas até meus
oprobiosos dissabores?
Simples! Tive o cuidado de instalar meu barricado a um muro de um
terreno baldio, perto de rica casa ladeava por auspicioso poste de eletricidade
que servia sobejamente às minhas necessidades mais prementes. Com esse
privilégio ao alcance dos meus ais, não precisava “caçar” tocos de velas ou
isqueiros para ter claridade. A iluminação cobria toda a extensão da calçada
com uma florescente bastante potente, o que me livrava de ser atacado nos
adiantados das noites, por ratos e baratas. Carecia, inclusive, colocar um
pedaço de plástico preto na porta-boca da entrada, quando me recolhia visando
evitar que o reflexo da lâmpada não atrapalhasse meu sono.
Uma coisa que considerava superlegal. Nessa desigualdade de altos e baixos,
não me achava totalmente sozinho. Ao meu lado, igualmente ao relento gélido das
noites infindáveis, outros inquilinos, num total de doze, faziam a vizinhança
ser um pouco mais feliz e menos depreciativa. Entre esses locatários, uma moça
bonita até dizer chega veio aumentar o número de desamparados. De olhar lúcido
e profundo, simpática, extremamente carinhosa e prestativa, dava a ela vinte e
cinco anos, talvez menos. Desconhecia como caíra nessa decadência impiedosa.
Esperança, seu nome. Quase todo final de tarde, ai por volta das
dezenove, dividia com ela e com os demais habitadores, o que conseguira de
comida. Fosse batendo de porta em porta, ou o mais interessante, nos dias de
despachos e oferendas a Exu, esmiuçando nas esquinas das encruzas, uma série de
despachos espirituais com os quitutes os mais variados. Existe um número
bastante expressivo de gente burra (notadamente os abastados) gastando os tubos
com esses donativos embasados em ritos pífios voltados para intenções piedosas
em favor das mais diversificadas entidades do além.
Ao deleite desses boçais, fazia à limpa. Valia a pena o sacrifício. Como
isso se tornava possível? Passando as mãos em tigelas com boa farofa, arroz,
galinhas pretas ao molho pardo, canjica, cuscuz e outras delícias. Depois, no aconchego do meu habitat, me
deleitava fartamente. Sem mencionar as bebidas. Uma variante bastante ostensiva
de vinhos e espumantes (além, claro, de refrigerantes) para sem teto nenhum
botar defeito. Dois meses atrás, vendo
que a jovem continuava sozinha atirada a mercê dos infortúnios, tomei coragem e
fiz um convite a ela. Perguntei, assim de chofre, se queria vir morar comigo,
em minha bombona. Espaço sobrava para nós dois, expliquei.
Após esse convite e no decorrer das semanas, me dediquei a mostrar a ela
o tanto de roupas que recolhera em doações advindas de famílias ricas nas quais
batia em busca de auxílio. Entre calças, camisas, meias, relógios velhos,
despertadores, brinquedos, cadeiras, televisões do tempo do ronca, rádios de
pilhas, existia, no contrafluxo, uma coleção bastante farta de vestidos, saias
e minissaias, bermudas, calcinhas, sapatos femininos e masculinos, blusas,
cobertores, lençóis, claro, tudo usado, porém, em estado quase primoroso de
conservação. Esperança ficou de pensar se aceitaria ou não a proposta.
Segundo ela, algo inusitado e “extremamente tentador”. Desde a moção
colocada no ar, a beldade passou a me fazer companhia na busca operosa pela
sobrevivência, me ajudando a recolher o que vinha em espórtulas e regalos.
Quando na “comunidade”, me ajudava a distribuir os alimentos aqueles mais
carentes, a maioria composta por rapazes drogados e velhos que careciam de
cuidados especiais. Se não me falha a memória, dois meses após o convite,
Esperança finalmente sentenciou. Praticamente depois de eu ter experimentado a
plural multiplicação de meus medos, num roteiro que nem eu mesmo acreditava
fosse possível, levantei vivas ao infinito.
A jovem veio morar comigo em meu Barril de Carvalho. Formamos, a partir
de então, à celebração desse ágape uma família desigual, no pior dos mundos,
entretanto, eu não me veria mais sozinho em derredor de criaturas que como eu,
identicamente vagavam pelos cantões de bairros chiques da capital paulista,
matando um leão a cada dia para sobreviver. Juntados os andrajos, nove meses
depois, para meu espanto e ao mesmo tempo alegria incontida, nasceu Cainara.
Uma menina linda e tão maravilhosamente bela e formosa quanto à mãe. E eu
passei a ser o sem teto mais feliz de toda a redondeza.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Brasília, Capital
Federal, 30-7-2019
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