Só porque você vota e paga impostos, acha
que tem o direito de incomodar os ungidos em Brasília? Que audácia
Ana Paula Henkel
O Manual do Covarde,
livro de Guilherme Fiuza e sucesso absoluto nas livrarias de todo o país, é o Brasil
traduzido, desenhado e explicado por um de seus observadores mais críticos,
destemidos, lúcidos e bem-humorados. O autor, também colunista aqui na Oeste,
explica a mágica petista de caminhar “do palácio à cadeia sem tirar a máscara”
que só os políticos engajados do Brasil seriam capazes de produzir. Fiuza nos
brinda com uma obra cheia de humor com as histórias de personagens da vida real
como o ex-presidente que foi morador da carceragem da Polícia Federal, sua
sucessora no Planalto, que depois tentou uma vaga no Senado, e personagens
igualmente infames como Rodrigo Janot (ou “Enganot” para o autor) e os irmãos
Batista (os “Free-Boys”). Ministros do STF não escaparam da maravilhosa
sagacidade de Fiuza.
Como o título brilhantemente
ilustra, Manual do Covarde é uma molecagem literária, deliciosa e
profunda ao mesmo tempo, em resposta à eterna molecagem política que assola o
país. Talvez para a próxima edição, Fiuza pense em acrescentar mais um capítulo
no manual que, mesmo com humor, mostra o festival de covardias a que somos
submetidos por parte daqueles que deveriam zelar pela ordem e pelo Estado
Democrático de Direito.
Depois do bizarro inquérito
das fake news no STF, aberto para apurar a criação, a
disseminação e o financiamento de notícias falsas contra integrantes da Corte —
que é vítima, acusadora, investigadora e provável julgadora do caso, como um
menino rico, poderoso e mimado —, nesta semana testemunhamos a molecagem do
Senado. A Casa, que parece nunca ter pressa para votar pautas importantes para
o país, aprovou a toque de caixa o texto-base do “PL das Fake News” — o Projeto
de Lei 2.630/20, que, sob o manto da bondade do Estado paternalista, promete
nos proteger de notícias falsas, uma vez que não temos maturidade suficiente
para formar opiniões.
As rédeas dos
Estados e da nação mudarão constantemente, mas certas fissuras na liberdade de
expressão podem ficar para sempre
O projeto não é apenas um
claro atentado ao livre direito de expressão. Ele mostra a covardia de
senadores que parecem estar bastante incomodados com o que muitos brasileiros
pensam deles como legisladores. O isolamento em seus gabinetes numa terra
longínqua, protegidos por dezenas de assessores e torres de concreto, parece
não existir mais. As redes sociais e aplicativos de mensagens derrubaram os
muros que os cercavam e protegiam contra os incômodos questionamentos dessa
gente chata da vida real que agora deu para ficar cobrando tudo. Só porque você
vota e paga impostos, acha que tem o direito de incomodar os ungidos em
Brasília? Que audácia.
Governos passam. Políticos
passam. Alguns deles virarão páginas amareladas nos livros de História e
encalharão nas estantes empoeiradas de nossa memória, deixando o cenário
político sem que percebamos, tamanha sua ineficiência em conduzir com maestria
o cargo que lhes foi confiado por nós, sejam eles membros do Judiciário, do
Executivo ou do Legislativo. As rédeas dos Estados e da nação mudarão
constantemente, mas certas fissuras na liberdade de expressão podem ficar para
sempre. Os princípios da liberdade e responsabilidade, defendidos
incansavelmente aqui na Oeste desde seu nascimento, e que
embasam nossas convicções, precisam ser preservados. A liberdade de expressão é
porto seguro para qualquer democracia saudável.
Diante do que testemunhamos
atualmente no mundo, com uma geração de jacobinos virtuais, incendiários e
revolucionários demolidores de estátuas, é preciso sempre ressaltar o respeito
pelas lições do passado e pela preservação de instituições que, mesmo
imperfeitas, fazem parte de nações livres. Isso nos conecta aos reais pilares
da liberdade, da ordem e da justiça.
E, por respeito e preservação
desses pilares, não podemos nos silenciar sobre nenhum tipo de blindagem para
qualquer poder da República quando há abusos praticados. Membros das cortes
judiciais, dos Poderes Legislativo e Executivo são meros servidores públicos e
precisam desempenhar suas funções como tais, servindo às demandas da sociedade.
Não há mais espaço para ativismos judiciais em defesa de interesses pessoais,
políticos ou ideológicos.
A sociedade tem o
direito de cobrar não apenas as ações, mas também as consequências dessas ações
Accountability, uma
palavra em inglês muito usada no cenário político aqui nos Estados Unidos, é
normalmente traduzida para o português como “ser responsável” por alguma coisa.
Porém, ela parece não ter uma tradução fiel à sua totalidade, que, no cotidiano
norte-americano, é usada para cobrar não apenas ações, mas, principalmente,
consequências para os atos daqueles que foram eleitos para nos representar.
Diante da aberração que foi
cometida nesta semana por alguns senadores, numa clara tentativa de amordaçar
opositores, opiniões contrárias e cobranças — uma vez que já existe lei para
punir injúrias, calúnias e difamações —, precisamos trazer à luz aqueles que
merecem ser responsabilizados por suas ações. Peço desculpas se as próximas
linhas forem um pouco enfadonhas, mas creio que isso é accountability.
Meu saudoso pai, homem criado na fazenda em Minas, diria que “esse trem
de accountability” é “dar nome aos bois” e apontar quem roubou o
queijo. Quem são os 44 senadores candidatos às páginas de um futuro “Manual da
Censura”?
É pra já:
·
Cidadania:
Alessandro Vieira (SE), Eliziane Gama (MA).
· Democratas:
Chico Rodrigues (RR), Jayme Campos (MT), Maria do Carmo Alves (SE), Rodrigo
Pacheco (MG), Marcos Rogério (RO).
· MDB: Confúcio
Moura (RO), Dario Berger (SC), Eduardo Braga (AM), Jader Barbalho (PA), Jarbas
Vasconcelos (PE), José Maranhão (PB), Marcelo Castro (PI), Simone Tebet (MS).
·
PDT: Cid
Gomes (CE), Acir Gurgacz (RO), Weverton (MA).
·
PL:
Wellington Fagundes (MT).
·
Podemos: Rose
de Freitas (ES).
·
PP: Ciro
Nogueira (PI), Daniela Ribeiro (PB), Katia Abreu (TO).
·
PROS:
Telmário Mota (RR).
·
PSB: Veneziano
Vital (PB).
·
PSDB:
Tasso Jereissati (CE).
· PSD: Ângelo
Coronel (BA), Antonio Anastasia (MG), Carlos Fávaro (MT), Irajá (TO), Lucas
Barreto (AP), Nelsinho Trad (MS), Omar Aziz (AM), Otto Alencar (BA), Sérgio
Petecão (AC).
· PT:
Humberto Costa (PE), Jaques Wagner (BA), Jean Paul Prates (RN), Paulo Paim
(RS), Paulo Rocha (PA), Rogério Carvalho (SE).
· Rede:
Randolfe Rodrigues (AP), Fabiano Contarato (ES).
· Republicanos: Mecias
de Jesus (RR).
Os livros de
História que mostram páginas em que a liberdade é amarrada e confinada não têm
final feliz
Não se combate fake
news com censura, leis de mordaça ou mais poder para o Estado, que já
é gigantesco. Quem vai definir o que é ou não fake news? Quem vai
dizer o que podemos ou não consumir, ler, questionar? O Estado? O que esses
senadores fizeram nesta semana atinge diretamente a liberdade de expressão e o
— falsamente protegido por muitos desses mesmos senadores desde a eleição em
2018 — Estado Democrático de Direito.
Transferir para o Estado a
tutela da liberdade não é apenas muito perigoso, é loucura e um caminho desvirtuado
que não sabemos onde pode dar. Os livros de História que mostram páginas em que
a liberdade é amarrada e confinada não têm final feliz. Notícias falsas não são
combatidas com menos informação, menos liberdade e mais Estado policialesco;
mas com mais informação, mais liberdade e accountability para
os agentes propagadores de informações, sejam eles perfis anônimos, civis,
oficiais ou veículos de expressão na imprensa. A liberdade de expressão é
oxigênio vital para a democracia.
Precisamos agir e cobrar da
Câmara do Deputados, para onde o projeto vai agora para votação, o destino
dessa tentativa de censura: a lata de lixo. Muito está em jogo. Para os que me
acompanham, não escondo meu apreço por Ronald Reagan, o 40º presidente
norte-americano, que já nos alertava sobre as armadilhas contra a liberdade nos
anos 1980: “A liberdade individual depende de manter o governo sob controle. Ou
você controla seu governo, ou o governo o controlará”.
Em O Manual do Covarde,
Guilherme Fiuza é preciso ao retratar o perfil de muitos ungidos de nossa
política que vendem o canto de sereia da proteção estatal contra bichos-papões
estrategicamente colocados embaixo de sua cama: “A grande covardia atual é a
simulação de altruísmo para obtenção de ganhos pessoais e paroquiais — ou seja,
um paradoxo. A demagogia coitada é o investimento mais seguro para o picareta
moderno”.
Uma versão em inglês da obra
de Fiuza resolveria metade de meus problemas na América quando o assunto é
explicar o (inexplicável) Brasil.
Título, Imagem e Texto: Ana
Paula Henkel, revista Oeste, nº 15, 3-7-2020
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