Aparecido Raimundo de Souza
ENQUANTO DONA LUCIA costurava em seu quarto, na velha
máquina Singer, posicionada em frente a
televisão, sua filha, a pequena Eliza, de seis anos, deitada ao lado, de
barriga no chão, desenhava. Pelo fato de estar muito tempo entretida em
terminar com um amontoado de peças de roupas que fazia, para uma fábrica de
confecções próxima de sua casa, resolveu dar uma paradinha básica ir até a
cozinha, comer alguma coisa e completar, depois, com um bom café que a
empregada Matilda acabara de fazer e cujo cheiro gostoso exalava por todos os
ambientes.
Assim pensando, colocou os óculos e já se punha a caminho, quando, ao
pular por cima da menor e a chamar para que a acompanhasse no lanche da tarde,
estancou os passos se debruçando sobre o que ela fazia. O que viu a deixou
pasma, atônita, com os nervos à flor da pele. Eliza se entretinha com uma caixa
de lápis de cores sombreando, com muito esmêro (e colocando nele toda a sua
criatividade de criança inteligente) algo insólito. A pequena se dedicava, na
verdade, a terminar de colorir
destacando os contornos de um troço comprido e enorme, com duas bolas redondas
embaixo, na base, dando a impressão de caroços a semelhança de uma bolsa
escrotal. Para deixar a coisa mais apavorante, o diagrama apontava um
desengonçado fino e em riste, como se quisesse, na sua eretez tocar bem alto o
teto do quarto.
Como se movida por molas e impulsionada por um ímpeto inesperado, não
pensou duas vezes. Agarrou a menina pelos cabelos. Fora de si, soltando fogos
pelas ventas, a mulher vociferou um amontoado de palavrões. Transtornada e sem
largar dos cabelos compridos da pobre e indefesa, aumentou lhe o castigo,
distribuindo uma série de tabefes à torto e a direita, sem se importar se os safanões pegariam no
rosto, nas pernas, nas costas, ou nádegas. No clima da loucura, vociferou:
— Sua sem vergonha, filha de uma égua...
Onde foi que você viu esta coisa? Fala logo, sua desgranhenta infeliz.
Foi seu tio, meu irmão que passou pelado perto de você?
A menina sem entender bulhufas, aos gritos e aos prantos, mal teve tempo
de terminar o que pretendia dizer:
— Não, mamãe... Eu...!
— O indecente do seu irmão?
— Não, mamãe!
No que a megera indagava, à alta voz, seguia com a chuva intermitente de
admoestações, não fazendo questão de direcionar onde a sua furia incontida
poderia vir acertar a pobre e indefesa criança, quem sabe até num ponto que a
pudesse causar lesões irreversíveis:
— Fala, sua vadia. Desembucha, ou boto você lá no portão completamente
pelada, para que as suas coleguinhas aqui da nossa rua e do bairro vejam que
tipo de moça sem escrúpulos você será futuramente. Vai ficar sem lanche e sem
janta até eu colocar esta coisa toda em pratos limpos.
Nesse tom e sem deixar um minuto sequer de enumerar impropérios os mais
cabeludos, dona Lúcia, inconformada, foi
mais longe. Passou a mão num cinto e seguiu impiedosamente espancando a filha inteiramente à mercê de sua exasperação
desajeitada:
— Fale, maldita. Vomite. Se não foi o seu tio, nem seu pai, nem seu
irmão, quem lhe mostrou esta infâmia que agora está ai feito uma piranhazinha
desenhando? Fale de uma vez e sem mentiras. Alguma coleguinha lá da sua escola?
Quem, me dá o nome: Aninha... Sofia... Emanuela?
A princesinha, sem forças para se desagarrar dos braços da enraivecida e
desnaturada, mal conseguia abrir a boca para dizer algo que ao menos aplacasse
a insensatez de sua genitora:
— Ningúem, mamãe... Não me bata...
Por favor... Por favor.
— Onde foi que você viu esta coisa nojenta? Fale, estou perdendo a
paciência. Vamos, sua vagabunda. Tão
nova e no caminho da perdição. Puxou o safado do seu pai. Nem das fraldas saiu
ainda... Fale, maldita, cante a pedra. Dou-lhe uma... Dou lhe duas...
Apavoradamente aterrorizada, os olhos e os lábios manchados por
hematomas escuros, o corpo inteiro cheio de lanhaduras em vista das
correadas, enfim, num quase assomo de imobilidade, o pequeno anjo, enfim desabafou:
— Eu ví na sua mão, mamãe... — Eu vi na sua mão... Juro por Deus...
A mãe, não satisfeita, com a resposta seguiu mais encolerizada. Espumava
pelos cantos da boca:
— Ainda por cima tem a cachimônia de
inventar mentiras, e, pra variar, resolveu tirar uma com a minha cara?
E tome safanões e bordoadas, bordoadas e safanões:
— Pro seu quarto agora. Sem televisão, sem essa porcaria de celular. Sem lanche, sem janta, e sem água. A noite
ficará no escuro e trancada a sete chaves.
A surra e os gritos, como não poderia deixar de ser, despertaram a empregada Matilda, que ato
contínuo e prevendo o pior, acionou os vizinhos mais próximos. Alguém,
indignado, teve a ideia de ligar para a polícia. A viatura chegou fazendo um
estardalhaço dos diabos. Minutos depois, se juntou a ela, outra viatura, desta
vez, a do conselho tutelar.
Por conta deste evento, a pracinha em frente à residência onde morava a
costureira, seu irmão, o marido (que estava viajando) e o casal de filhos,
lotou de gente. As árvores próximas, de repente, se viram enfeitadas de pessoas
trepadas para presenciarem o trágico espetáculo, claro, com a saída de dona
Lúcia algemada e da menina (a cabeça e os braços cobertos por um lençol) nos
braços da galera de proteção ao menor. O que se sucedeu algumas horas depois
deste ocorrido foi o seguinte: Precisou da interferência do avô da menina, o
doutor Alcebíades de Carvalho Peçanha, que exercia o cargo de promotor de
justiça no forum local da cidade, para livrar a filha dele, a dona Lúcia e
resgatar a neta.
A pequena Eliza, de seis anos, passou, a partir de então, a morar
definitivamente com o avô. A noite, em casa, passado todo o bafafá, o doutor
Alcebíades de Carvalho Peçanha, ainda pensativo e com a pulga atrás da orelha,
com muito jeitinho e carinho, inquiriu, da neta, o que ela havia rascunhado que
tirara a mãe (filha dele) do sério, a ponto de lhe baixar o sarrafo sem dó nem
piedade. A pequerrucha, ainda meio
assustada e chupando o dedinho polegar, olhou para o avô e respondeu na maior
das inocências:
— “A tesora, vovô. Eu desenhei a tesora que a mamãe tava com ela nas mão
e usava pra cortar as ropa que fica sobre a bancada junto com as otra que ela traz todo dia da fábrica”.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 31-7-2020
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