Toffoli e seus colegas reduziram a si
próprios à condição de uma empresa de segurança cuja principal ocupação é
fornecer proteção para si mesmos e para políticos enrolados com o Código Penal
J. R. Guzzo
Nunca houve nos 129 anos de
história do Supremo Tribunal Federal, mesmo nos seus momentos mais
constrangedores, um ministro tão incompreensível quanto Antonio Dias Toffoli.
Desde 2009, quando ganhou do ex-presidente Lula a indicação para o cargo, e até
hoje, ninguém conseguiu entender a seguinte charada: como um cidadão que foi
reprovado duas vezes seguidas no concurso público para juiz de Direito pode ser
ministro do tribunal mais importante da Justiça brasileira? Toffoli foi
declarado incapaz, por decisão oficial de duas diferentes bancas examinadoras
que tiveram a oportunidade de apreciar os seus méritos, de exercer o cargo de
juiz em qualquer comarca do Brasil. Mas pode ser ministro do Supremo — até o
próximo dia 10 de setembro, aliás, é ninguém menos que o seu presidente. Não
existe nada de parecido na Justiça de qualquer outro país.
Toffoli, até ser nomeado para
o STF, foi advogado de um partido político, o PT, e das campanhas eleitorais de
um ex-presidente que cumpriu pena de prisão fechada pelos crimes de corrupção
passiva e lavagem de dinheiro. Sua mulher é advogada de um escritório de
Brasília, que tem causas no tribunal em que o marido é ministro; até algum
tempo atrás, por sinal, dava a ele uma mesada de R$ 100 mil. Em fevereiro do ano
passado foi incluída pela Receita Federal, junto com o ministro Gilmar Mendes,
numa investigação sobre irregularidades no pagamento do Imposto de Renda.
Sabe-se o que aconteceu na ocasião. Os auditores que participavam da
investigação foram suspensos de suas funções, o STF proibiu que o processo
fosse adiante e a revista Crusoé, que noticiou o fato, foi
censurada pelo ministro Alexandre de Moraes — o real motivo para o infame
“inquérito das fake news”, ilegal e secreto, que está aí até hoje.
Dias atrás, o desfile de
Toffoli chegou à Praça da Apoteose: revelou-se que ele foi acusado de receber
propinas da empreiteira de obras Odebrecht entre 2007 e 2009, quando era
advogado-geral da União. A denúncia vem do próprio Marcelo Odebrecht, condenado
pela Justiça Federal como o maior corruptor da história do Brasil, na delação
premiada que lhe permite cumprir a sua pena de prisão em casa, com tornozeleira
eletrônica — desde que não minta em nada do que diz em suas acusações. O
público foi informado, ao mesmo tempo, que o departamento de propinas da
empreiteira OAS registra em seus arquivos a seguinte menção: “15 mil — reforma
casa Dias Toffoli em 2013”. A imprensa, alguns anos atrás, tratou do assunto —
no tempo em que ainda publicava notícias de corrupção. A história andava
sumida, mas a Lava Jato, que parece morta na mídia, continua viva nos autos — e
produzindo informações como essas, apesar de todos os esforços do ministro
Moraes e de seus colegas no STF para censurar a realidade.
Eles podem se manter a salvo
do Código Penal e fora da prisão, pois resolveram, eles mesmos, que é proibido
julgar os seus atos — mas é tudo o que conseguem. Podem preservar o próprio
couro, mas não o bom nome.
Acham-se
sofisticados e não sabem quanto acabam parecidos com lordes de republiqueta
bananeira
É uma coisa penosa. Os
magistrados do Supremo perderam a capacidade de funcionar como uma corte de
Justiça; reduziram a si próprios à condição de uma empresa privada de segurança
cuja principal ocupação, hoje em dia, é fornecer proteção para si mesmos e para
políticos enrolados com o Código Penal. Toffoli não é a única anomalia do STF —
na verdade, é uma espécie de “ministro-padrão”, cujo comportamento parece
servir de modelo e inspiração para os colegas.
O ministro Gilmar Mendes, por
exemplo, seria o quê? Sua mulher também trabalha num escritório de advocacia
que tem causas perante o STF — embora, no seu caso, não haja notícias de
mesada. É sócio de uma faculdade privada de direito em Brasília, que, além de
sua atividade comercial, recebe dinheiro público em embalagens variadas — um
fenômeno que igualmente não tem similar no mundo, a exemplo da dupla repetência
de Toffoli. Foi, como mencionado acima, envolvido na investigação da Receita
Federal que deixou tão assustados os colegas de STF. Sua última realização foi
acusar o Exército Brasileiro de ser cúmplice do “genocídio” que, em seu
entender, a covid-19 está causando no Brasil.
Depois de falar, o ministro
não teve peito para sustentar o que falou — veio com a história de que não quis
ofender os militares etc. etc. etc. Se não quis, então por que chamou o
Exército de “cúmplice” de um crime contra a humanidade, como o genocídio é
definido pela ONU? Enfim: esse é Gilmar Mendes, que já acusou o então juiz
Sergio Moro, em seus tempos de Operação Lava Jato, de comandar uma “organização
criminosa”, e que já foi avaliado pelo colega Luís Roberto Barroso como “uma
mistura do mal com o atraso, com pitadas de psicopatia”. Hoje é um dos heróis
dos “advogados do campo progressista”, ou do PT. De que maneira seria
humanamente possível levar a sério o STF, diante de Toffoli, Gilmar e os
colegas que os apoiam?
O conjunto dos seus atos, na
verdade, é uma humilhação. Não para eles, imunizados há anos por uma bateria de
anticorpos que não lhes deixa sentir vergonha com a opinião alheia — mas para
os 18.000 juízes, 14.000 procuradores e 1 milhão de advogados deste país e,
sobretudo, para os brasileiros que os sustentam na condição de contribuintes.
Os ministros fizeram de si
próprios, já há muito tempo, um objeto de piada com seu deslumbramento diante
do desfrute gratuito das coisas caras da vida — gratuito para eles, claro, pois
é você quem paga tudo com os seus impostos. Acham-se sofisticados por imitarem
a vida de gente rica; não sabem quanto acabam parecidos com lordes de
republiqueta bananeira, na sua ânsia de utilizar o cargo para tratar bem de si
próprios. É o eterno vício do serviço público de país subdesenvolvido: “Vamos
aproveitar, porque é o governo que está pagando tudo”. Nada foi tão típico dessa
conduta quanto a cômica licitação feita em abril, com a covid-19 já roncando,
para a compra de vinhos de safras com pelo menos quatro “premiações
internacionais”, entre outras bugigangas de bufê metido a chique. O que pode
ser mais atrasado do que isso?
O Supremo Tribunal
Federal é hoje o ente público mais odiado do Brasil
A conta vai para o seu bolso.
Numa reportagem recente da Revista Oeste, os jornalistas Branca
Nunes, Cristyan Costa e Artur Piva demonstraram que o STF gastou em 2019 perto
de R$ 700 milhões para oferecer ao público pagante esse serviço que está aí.
Tem 2.000 funcionários, nos quais se incluem, acredite se quiser, jornalistas
(são dezoito, ganhando até R$ 10 mil por mês), encadernadores, cerimonialistas,
“auxiliares em reparação bucal” e por aí afora. Os ministros, além dos R$ 40
mil mensais de salário oficial — acrescidos de R$ 6,5 mil descritos como “abono
de permanência”, licença-prêmio, dois meses de “férias coletivas” e outros
“penduricalhos”, como dizem —, têm carro com motorista, plano médico
cinco-estrelas, dentista, passagens de avião (com área exclusiva para
embarque), diárias de hotel, reembolso de contas de restaurante.
Cada um conta com 25
assessores pessoais — incluindo-se aí o cidadão vestido de capa preta que lhes
puxa a cadeira na hora em que se sentam à mesa nas sessões plenárias. Têm
segurança pessoal privada, que só neste ano já custou cerca de R$ 4,5 milhões.
Entre março e maio deste ano, no auge do “distanciamento social” que exigem de
todo mundo, conseguiram gastar R$ 800 mil com a sua frota de automóveis.
O resultado disso tudo é que o
Supremo Tribunal Federal é hoje o ente público mais odiado do Brasil — uma
situação que não tem precedentes na história de um país acostumado, bem ou mal,
a achar que a Justiça era uma espécie de ilha no meio do oceano de safadeza dos
políticos, governantes e malfeitores bilionários que fazem parte da paisagem.
Os ministros dizem que são malquistos porque a “opinião pública”, que nada
entende da ciência do Direito, não concorda com as suas decisões. Conversa. O
problema não está em como decidem, e sim no que fazem.
Sua reputação vem do seu
comportamento como pessoas; eles não são respeitados, muito simplesmente,
porque agem de maneira a não merecer respeito. É verdade que o brasileiro, cada
vez mais, vê o STF dar sentenças tão parecidas com absurdos, mas tão parecidas,
que fica impossível achar que são outra coisa. Mas o centro do problema está na
conduta dos onze ministros que formam o atual plenário.
Há ministros que não praticam,
ao que se saiba, as mesmas ações praticadas pelos Toffolis, Gilmares, Moraes e
outros. Mas quando aprovam os colegas, ativamente ou pelo silêncio, não se
comportam apenas como cúmplices; tornam-se iguais a eles. É isso, e só isso.
Não há saída, por mais que venham com latinório, data vênia e
hermenêuticas para explicar o que estão fazendo. Têm de se conformar, em suma,
em ser respeitados apenas entre os seus semelhantes, ou o seu “público”:
senadores, deputados, advogados de corruptos capazes de pagar honorários que
começam em R$ 1 milhão, lobistas, colossos da finança, “campeões nacionais” e
por aí vamos. Além disso não é possível.
A Corte
criou dois tipos de cidadãos: os que fazem sacrifícios e aqueles cujo
bem-estar tem de ser assegurado
Os ministros do STF, como se
sabe, não podem botar o pé na rua, fazer uma fila ou entrar numa loja — o risco
de vaias, ofensas e agressões, hoje, tornou-se quase uma certeza. Não é normal.
Como é possível que os membros da mais alta corte de Justiça do Brasil sejam
tão detestados que não podem circular livremente em seu próprio país? Os
ministros se tornaram invisíveis fisicamente, mas não conseguem escapar do
julgamento que a população faz deles e que está presente a cada minuto nas
redes sociais.
O ministro Toffoli tem sido um
clássico. No dia em que mandou as forças-tarefas da Lava Jato em Curitiba, São
Paulo e Rio de Janeiro “compartilhar” com a Procuradoria-Geral da República a
base de dados de suas investigações — tida como a mais rica mina de ouro que o
país já conheceu em matéria de informação sobre ladroagem —, Toffoli “bombou”.
Na escala de 0 a 100 usada para medir menções feitas na internet, pulou de 5
para 31 pontos. Logo depois, quando vieram as denúncias de propina da OAS e da
Odebrecht, as “buscas” pelo nome do ministro subiram 1.800%.
Dá para entender por aí, é
claro, o que na verdade já está entendido há muito tempo: a ofensiva ilegal do
ministro Alexandre de Moraes, com o apoio de nove entre seus dez colegas, para
investigar fake news e “atos antidemocráticos” não tem nada a
ver com qualquer intenção de preservar a verdade ou defender a democracia — é
repressão direta contra quem usa as redes sociais para se manifestar sobre o
STF. Faz parte do modo de operação preferido dos ministros que estão aí. De um
lado, declaram inconstitucional tudo o que possa prejudicar os seus interesses,
como fizeram ao proibir o Congresso de aprovar qualquer projeto de lei para
diminuir os salários do funcionalismo público em momentos de emergência. Pouco
se importam, aí, com a aberração de estarem criando no Brasil, oficialmente,
dois tipos de cidadãos desiguais perante a lei — os do setor privado, a quem
cabe fazer os sacrifícios materiais, e os do setor público, cujo bem-estar não
pode ser tocado por ninguém. De outro, criminalizam as redes sociais para
intimidar quem está revoltado com os seus atos.
Os ministros do STF, pelo
conjunto da obra, são hoje a principal ameaça à democracia no Brasil.
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