Augusto Nunes
Hélio Schwartsman já seria
muito mais que um jornalista se fosse apenas um jornalista da Folha de
S. Paulo. Quem trabalha por lá aprende desde a primeira pauta que já saiu
da vida para entrar na História. Por respirar o mesmo ar que oxigenou os
pulmões dos descobridores de uma verdade anterior a Gutenberg, um filhote
da Folha descobre em um minuto que quem compreende a função
social do jornalismo nem precisa saber escrever. Os recém-chegados também
aprendem que a Folha, embora centenária, nasceu em 1983, com a
missão de conceber, parir e amamentar a campanha das Diretas Já. Antes de
reivindicar a paternidade da maior mobilização popular da história do Brasil,
nada parece ter acontecido de relevante na trajetória do jornal que, nascido há
mais de um século, capricha na pose de quarentão provido de notório saber sobre
qualquer coisa.
Em 1964, por exemplo, a Folha apoiou
com entusiasmo de pregador a queda do presidente João Goulart. Nos anos
seguintes, não deu um pio sobre prisões de deputados, cassações de mandatos e
outros pontapés na democracia. Com a decretação do AI-5, a empresa Folha da
Manhã arrendou um dos seus jornais ao comando da repressão política. Mais de
uma vez, terroristas souberam que morreriam no dia seguinte pela manchete que
noticiava já na véspera a execução do prisioneiro, sempre “ocorrida durante uma
troca de tiros com agentes dos órgãos de segurança”. A partir de 1968, a
ditadura sem disfarces colocou sob censura, anos a fio, a revista Veja e
o Estadão. A Folha não foi censurada um único dia.
A direção e os jornalistas em cargos de chefia cuidavam voluntariamente de
sonegar aos leitores notícias consideradas incômodas pelos generais no poder.
Alguém aí leu essas coisas
na Folha? Nem vai ler. Os arqueólogos seletivos preferem exumar o
indignado editorial sobre a brancaleônica invasão do jornal por fiscais do
presidente Fernando Collor, ou textos iracundos resultantes de colisões
frontais com outros governos, todas sem perdas ou danos consideráveis. A Folha só
é boa de briga em períodos de temperatura política amena.
A boa saúde do
Estado de Direito requer cuidados apenas quando começa uma sessão do STF
Realizada quando o regime
militar aguardava alta na UTI, a campanha das Diretas Já foi tão
perigosa quanto uma eleição de síndico. Para defender a democracia numa
ditadura em estado de coma, basta a mobilização da Guarda Mirim de
Taquaritinga. Sabe-se lá por quê, a Folha acaba de tirar do
baú a fantasia de guardiã das instituições em perigo para prevenir um autogolpe
do presidente eleito há menos de dois anos. Neste 2020, a boa saúde do Estado
de Direito requer cuidados apenas quando começa uma sessão do Supremo Tribunal
Federal. Ou quando um ministro termina a redação de uma decisão democrática.
Se um repórter contratado na
véspera já entra na redação calçando coturnos imaginários, é compreensível que
veteranos de guerra enfeitem a cabeça com um quepe de general paraguaio do
século 18. É o caso de Hélio Schwartsman. Aos 55 anos, ele é o titular da
coluna no alto da página 2. É também um dos editorialistas, cargo que garante
ao menos um almoço por semana com o dono da empresa. Não é pouca coisa. Mas não
é tudo: como informa o currículo resumido, o oficial graduado Hélio Schwartsman
é filósofo. (Que fique claro: não se trata de mais um diplomado por uma das
faculdades de Filosofia anexadas a universidades federais que só servem para
enfeitar a sala de troféus de Lula com títulos de doutor honoris causa.
Schwartsman é filósofo mesmo, daqueles condecorados com curso de
aperfeiçoamento no exterior, barba de um dia e meio e tufos de cabelos nas
orelhas que parecem filtros improvisados para impedir que o pensador acabe
perdendo tempo com detritos intelectuais.)
Habituado a produzir uma tese
por dia, o colunista-editorialista-filósofo elevou a produtividade depois do
pouso no Brasil do coronavírus. Com tempo para piruetas mentais mais
audaciosas, não é surpreendente que tenha sido ele o autor do texto publicado
pela Folha na edição de 8 de julho deste ano. O título é o
resumo da ópera: PORQUE QUERO QUE BOLSONARO MORRA. Se os bares da Vila Madalena
estivessem abertos, Schwartsman talvez se limitasse a impressionar os amigos,
todos escritores sem leitores, com a mera declamação da frase. Enquanto a
plateia se recuperava do surto de criatividade e ousadia, o autor poderia até
retirar-se sem pagar a cerveja consumida e esquecer o espasmo de imaginação.
Certamente a prorrogação da quarentena soprou ao colunista a ideia de jerico:
que tal ordenhar o título imbecil até colher o suficiente para o artigo do dia?
E então entrou em campo o
filósofo. Depois de reiterar na primeira linha seu apoio ao vírus chinês que
infectara o presidente da República, Schwartsman fez a ressalva: “Nada
pessoal”. Como assim? O que há na cabeça de alguém que deseja a morte de alguém
sem nenhum motivo específico para odiar o condenado? A continuação do besteirol
informa que o autor do texto estava raciocinando como um adepto de algo chamado
“consequencialismo” — embora jamais tenha sido “consequencialista”. Se fosse,
acreditaria que “ações são valoradas pelos resultados que produzem. O
sacrifício pode ser válido, se dele advier um bem maior”.
Seria interessante
ouvir Schwartsman dissertar sobre os mistérios do consequencialismo
E qual seria, no caso do
presidente brasileiro, esse misterioso “bem maior”? “No plano mais imediato”,
pontifica o pensador de galinheiro, “a ausência de Bolsonaro significaria que
já não teríamos um governante minimizando a epidemia nem sabotando medidas para
mitigá-la”. Nas linhas seguintes, ele jura que a cada declaração de Bolsonaro favorável
à reabertura da economia cai a taxa de isolamento e aumenta o número de óbitos.
Quer dizer: no Brasil, não é o vírus que anda matando gente. É Bolsonaro.
Embora proibido pelo STF de interferir na estratégia de combate à pandemia, o
presidente é responsabilizado por Schwartsman por todas as mortes ocorridas no
Brasil. Só não morreu mais gente, avisa, graças ao patriotismo e à perspicácia
de governadores e prefeitos.
No fim do desfile de sandices,
Schwartsman garante que as mortes seriam reduzidas em outros países, cujos
habitantes se espelham nos maus exemplos de Bolsonaro. O prefeito de Bolonha,
quando o fantasma da crise sanitária começou a agigantar-se, lançou a campanha
“Abrace um chinês”. O prefeito de Milão decidiu que a cidade não iria parar. Em
metrópoles que adotaram o isolamento total, a curva de óbitos permaneceu
ascendente. Mas o colunista da Folha acha que a solução viria
com a morte de Bolsonaro. Fez mal o governo federal ao tentar enquadrar Schwartsman
como criminoso. Ele merece continuar à solta e exercendo o direito à liberdade
de expressão.
Seria interessante ouvi-lo
dissertar sobre os mistérios do consequencialismo. A Alemanha nazista matou seis
milhões de judeus (entre os quais poderiam ter figurado ancestrais do
colunista), convencida de que o mundo seria melhor com a erradicação de raças
inferiores. Com a eliminação física de Trotsky, teria Stalin garantido uma
União Soviética menos brutal? O Brasil teria ficado menos idiota se fosse
atendido quem torceu pela morte da dupla Lula e Dilma? Há outro bom motivo para
manter Schwartsman livre, leve e solto. Como todo filósofo, o pensador da Folha certamente
se angustia com três enigmas antigos como o mundo. Quem somos? De onde viemos?
Para onde vamos?
Para eliminar a primeira
interrogação, bastou a Schwartsman uma incursão pelo mundo maravilhoso do
consequencialismo. Se não sabia quem era, agora já descobriu quem é: uma
perfeita besta quadrada.
Título e Texto: Augusto
Nunes, revista Oeste, 17-7-2020, 9h31
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