A moral do bioma que vive na universidade,
na “burguesia liberal” e na imprensa é fruto de preguiça, oportunismo e
incapacidade de aceitar a decisão da maioria
J. R. Guzzo
A elite intelectual
brasileira, ou a nebulosa de indivíduos que imaginam representar o papel de
intelectuais brasileiros na cena pública, criou ao longo dos dois últimos anos
uma nova moral. Ela não enxerga mais a existência humana como algo que deve ser
comandado pelas escolhas entre o bem e o mal, tais como um e o outro são
definidos por princípios que toda pessoa decente sabe muito bem quais são. Não
são ensinados em aulas de ciência política nem em editoriais da imprensa; fazem
parte, simplesmente, do “universo moral” a que se refere Martin Luther King, em
que vigoram leis de conduta que funcionam com a mesma exatidão das leis
físicas. Essa nova moral esqueceu as opções universais que separam o certo do
errado: a medida de todas as coisas passou a ser uma pessoa determinada, com
CPF, identidade e ocupação conhecidos. Seu nome é Jair Bolsonaro.
Pelas novas leis morais em
vigor, tudo o que se faça, diga ou pense em relação ao presidente da República
é um ato de virtude se for contra ele; se for a favor, ou mesmo se for apenas
neutro, é o mal. A partir daí, está encerrada qualquer possibilidade de debate
político no Brasil. Quem é íntegro, patriota e comprometido com o bem comum e
as boas causas, segundo a moral ora em vigor na sociedade que se considera
civilizada neste país, tem de ser contra Bolsonaro, pouco interessando o que
ele realmente faz ou não faz na vida real. Não vale mais o princípio, um dos
pilares do “universo moral” de King, segundo o qual todo homem deve ser julgado
por seus atos, e não por seus pensamentos; no caso, o homem é condenado apenas
por ser quem é. Entregue à própria vertigem, a elite intelectual chegou ao
ponto que todos podem ver agora: está negando ao presidente o direito à vida.
Não é possível haver nenhum
tipo de moralidade sem compaixão — nem mesmo a que foi inventada pela elite
brasileira para conviver com os seus rancores e canalizar frustrações mal
resolvidas. Quando pessoas que se apresentam como porta-vozes de ideias, de
cultura e de civilização dizem que “entendem”, ou aplaudem, um manifesto em que
se deseja diretamente a morte de um ser humano, é inútil perder tempo tentando
entender os argumentos que apresentam. Isso é sinal de que o seu aparelho
mental deixou de operar de acordo com valores morais; já não é capaz de reagir
aos estímulos mais elementares emitidos pelas noções do bem e do mal. O
respeito à própria integridade, como se costuma dizer, é uma exigência da
moral; o respeito ao próximo é um requisito da boa educação. No Brasil que
transformou o antibolsonarismo em religião, não sobrou nenhuma das duas coisas.
Uma criança de
10 anos seria capaz de bater nesse governo. Onde está a valentia?
A moral desse bioma que vive
na universidade, na “burguesia liberal” (que não gosta de ser chamada de
“burguesia”, mas faz questão do “liberal”), nas redações de jornal e nos
estúdios de televisão, entre outros habitats desse tipo, não
é, naturalmente, moral nenhuma. É fruto, antes de mais nada, da preguiça para
pensar; ter ódio sempre dá muito menos trabalho do que ter ideias. Logo depois
vem o oportunismo — se no ambiente ao seu redor, sobretudo no trabalho, a fé da
maioria exige que o presidente seja detestado, é bem mais seguro achar a mesma
coisa. Pode até dar lucro, dependendo do seu empenho em concordar com o chefe.
Juntam-se a incapacidade de sugerir alternativas coerentes para “esse governo
que está aí”, a frouxidão de caráter e a irritação comum que tanta gente tem
diante de pensamentos independentes. Enfim, há um combo perverso que une a
incapacidade de aceitar decisões da maioria, quando o sujeito não está de
acordo com elas, e o recalque de ter de dividir o Brasil com o povo brasileiro
— não o povo dos cursos de sociologia, mas o povo como ele realmente é:
evangélico, defensor da propriedade privada, contra o aborto, a favor da
família, contra o bandido, a favor da polícia, admirador dos militares,
bolsonarista e por aí vamos.
Pessoas que não precisam mais
de trinta segundos para encontrar argumentos que justifiquem o ódio, a vingança
e uma oração à morte como essa que acaba de ser feita gostam de ver a si
próprias como espíritos livres de “convenções”. Apenas escondem, com isso, a
sua incapacidade de sentir — ou de gostar sinceramente de outras pessoas de
carne e osso. No fundo, não se importam com ninguém. Só dão valor aos próprios
desejos — e só se sentem seguras cuidando deles. Acham mais importante
definir-se como “de esquerda” antes de se definirem como seres humanos. Têm,
enfim, a falsa coragem de bater num governo que cumpre a lei nos seus detalhes
mais extremados e vive paralisado pelo medo de parecer autoritário. Não há
risco nenhum em bater num governo como o de Bolsonaro, que tem mostrado a
energia de uma minhoca para se defender; uma criança de 10 anos de idade seria
capaz de bater nesse governo. Onde está a valentia?
O STF viola
todos os dias a Constituição na cara de todo mundo — e a elite elogia
O efeito mais destrutivo da
nova moral é ter criado um país legalmente incompreensível. Como tudo o que se
pode fazer contra o presidente da República e o seu governo passa hoje por um
serviço ao bem comum, à pátria e à própria humanidade, o STF viola todos os
dias a Constituição na cara de todo mundo — e a elite elogia. Faz há quinze
meses um inquérito ilegal contra bolsonaristas radicais, no qual nega aos
advogados dos cidadãos que está perseguindo o acesso a uma parte dos autos.
Prende pessoas sem apontar a elas os crimes que teriam cometido. Toma decisões
secretas. Executa uma investigação penal que só o Ministério Público está
autorizado pela lei a fazer. O que vale para uns não vale para outros.
Querer que o presidente morra
não é crime; é um desejo, que pode ser pervertido do ponto de vista humano e
insultuoso para os 58 milhões de brasileiros que exerceram seu direito legal de
votar em Bolsonaro em 2018, mas é apenas isso, um desejo. Não há punição legal
para desejos; só há as sanções que podem vir de quem os escuta. Quando Pedro
odeia Paulo, fica-se sabendo mais sobre Pedro do que sobre Paulo — é o caso,
precisamente. O problema é que os jornalistas que fazem militância em favor do
presidente (“blogueiros”, como diz a mídia) deveriam ter tratamento igual. Por
que um, o que escreve no jornal que está querendo que o presidente morra, é o
autor de uma opinião, e os outros são autores de crimes? Dos dois lados, o que
se tem é a manifestação de vontades, e não a execução de atos. Só que, no
Brasil democrático de 2020, o primeiro ganha honra ao mérito como usuário do
direito constitucional de livre expressão. Os demais, que nem desejaram em
público a morte de ninguém, vão para a cadeia do STF.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste, 10-7-2020, 8h33
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