sexta-feira, 10 de julho de 2020

A vertigem da elite intelectual

A moral do bioma que vive na universidade, na “burguesia liberal” e na imprensa é fruto de preguiça, oportunismo e incapacidade de aceitar a decisão da maioria


J. R. Guzzo

A elite intelectual brasileira, ou a nebulosa de indivíduos que imaginam representar o papel de intelectuais brasileiros na cena pública, criou ao longo dos dois últimos anos uma nova moral. Ela não enxerga mais a existência humana como algo que deve ser comandado pelas escolhas entre o bem e o mal, tais como um e o outro são definidos por princípios que toda pessoa decente sabe muito bem quais são. Não são ensinados em aulas de ciência política nem em editoriais da imprensa; fazem parte, simplesmente, do “universo moral” a que se refere Martin Luther King, em que vigoram leis de conduta que funcionam com a mesma exatidão das leis físicas. Essa nova moral esqueceu as opções universais que separam o certo do errado: a medida de todas as coisas passou a ser uma pessoa determinada, com CPF, identidade e ocupação conhecidos. Seu nome é Jair Bolsonaro.

Pelas novas leis morais em vigor, tudo o que se faça, diga ou pense em relação ao presidente da República é um ato de virtude se for contra ele; se for a favor, ou mesmo se for apenas neutro, é o mal. A partir daí, está encerrada qualquer possibilidade de debate político no Brasil. Quem é íntegro, patriota e comprometido com o bem comum e as boas causas, segundo a moral ora em vigor na sociedade que se considera civilizada neste país, tem de ser contra Bolsonaro, pouco interessando o que ele realmente faz ou não faz na vida real. Não vale mais o princípio, um dos pilares do “universo moral” de King, segundo o qual todo homem deve ser julgado por seus atos, e não por seus pensamentos; no caso, o homem é condenado apenas por ser quem é. Entregue à própria vertigem, a elite intelectual chegou ao ponto que todos podem ver agora: está negando ao presidente o direito à vida.

Não é possível haver nenhum tipo de moralidade sem compaixão — nem mesmo a que foi inventada pela elite brasileira para conviver com os seus rancores e canalizar frustrações mal resolvidas. Quando pessoas que se apresentam como porta-vozes de ideias, de cultura e de civilização dizem que “entendem”, ou aplaudem, um manifesto em que se deseja diretamente a morte de um ser humano, é inútil perder tempo tentando entender os argumentos que apresentam. Isso é sinal de que o seu aparelho mental deixou de operar de acordo com valores morais; já não é capaz de reagir aos estímulos mais elementares emitidos pelas noções do bem e do mal. O respeito à própria integridade, como se costuma dizer, é uma exigência da moral; o respeito ao próximo é um requisito da boa educação. No Brasil que transformou o antibolsonarismo em religião, não sobrou nenhuma das duas coisas.

Uma criança de 10 anos seria capaz de bater nesse governo. Onde está a valentia?

A moral desse bioma que vive na universidade, na “burguesia liberal” (que não gosta de ser chamada de “burguesia”, mas faz questão do “liberal”), nas redações de jornal e nos estúdios de televisão, entre outros habitats desse tipo, não é, naturalmente, moral nenhuma. É fruto, antes de mais nada, da preguiça para pensar; ter ódio sempre dá muito menos trabalho do que ter ideias. Logo depois vem o oportunismo — se no ambiente ao seu redor, sobretudo no trabalho, a fé da maioria exige que o presidente seja detestado, é bem mais seguro achar a mesma coisa. Pode até dar lucro, dependendo do seu empenho em concordar com o chefe. Juntam-se a incapacidade de sugerir alternativas coerentes para “esse governo que está aí”, a frouxidão de caráter e a irritação comum que tanta gente tem diante de pensamentos independentes. Enfim, há um combo perverso que une a incapacidade de aceitar decisões da maioria, quando o sujeito não está de acordo com elas, e o recalque de ter de dividir o Brasil com o povo brasileiro — não o povo dos cursos de sociologia, mas o povo como ele realmente é: evangélico, defensor da propriedade privada, contra o aborto, a favor da família, contra o bandido, a favor da polícia, admirador dos militares, bolsonarista e por aí vamos.


Pessoas que não precisam mais de trinta segundos para encontrar argumentos que justifiquem o ódio, a vingança e uma oração à morte como essa que acaba de ser feita gostam de ver a si próprias como espíritos livres de “convenções”. Apenas escondem, com isso, a sua incapacidade de sentir — ou de gostar sinceramente de outras pessoas de carne e osso. No fundo, não se importam com ninguém. Só dão valor aos próprios desejos — e só se sentem seguras cuidando deles. Acham mais importante definir-se como “de esquerda” antes de se definirem como seres humanos. Têm, enfim, a falsa coragem de bater num governo que cumpre a lei nos seus detalhes mais extremados e vive paralisado pelo medo de parecer autoritário. Não há risco nenhum em bater num governo como o de Bolsonaro, que tem mostrado a energia de uma minhoca para se defender; uma criança de 10 anos de idade seria capaz de bater nesse governo. Onde está a valentia?

O STF viola todos os dias a Constituição na cara de todo mundo — e a elite elogia

O efeito mais destrutivo da nova moral é ter criado um país legalmente incompreensível. Como tudo o que se pode fazer contra o presidente da República e o seu governo passa hoje por um serviço ao bem comum, à pátria e à própria humanidade, o STF viola todos os dias a Constituição na cara de todo mundo — e a elite elogia. Faz há quinze meses um inquérito ilegal contra bolsonaristas radicais, no qual nega aos advogados dos cidadãos que está perseguindo o acesso a uma parte dos autos. Prende pessoas sem apontar a elas os crimes que teriam cometido. Toma decisões secretas. Executa uma investigação penal que só o Ministério Público está autorizado pela lei a fazer. O que vale para uns não vale para outros.

Querer que o presidente morra não é crime; é um desejo, que pode ser pervertido do ponto de vista humano e insultuoso para os 58 milhões de brasileiros que exerceram seu direito legal de votar em Bolsonaro em 2018, mas é apenas isso, um desejo. Não há punição legal para desejos; só há as sanções que podem vir de quem os escuta. Quando Pedro odeia Paulo, fica-se sabendo mais sobre Pedro do que sobre Paulo — é o caso, precisamente. O problema é que os jornalistas que fazem militância em favor do presidente (“blogueiros”, como diz a mídia) deveriam ter tratamento igual. Por que um, o que escreve no jornal que está querendo que o presidente morra, é o autor de uma opinião, e os outros são autores de crimes? Dos dois lados, o que se tem é a manifestação de vontades, e não a execução de atos. Só que, no Brasil democrático de 2020, o primeiro ganha honra ao mérito como usuário do direito constitucional de livre expressão. Os demais, que nem desejaram em público a morte de ninguém, vão para a cadeia do STF.
Título e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, 10-7-2020, 8h33

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