Os senadores aprovaram a mais agressiva
legislação de censura que o Brasil já viu. Nem o AI-5 permitia a prática da
censura em qualquer um de seus 12 artigos
J. R. Guzzo
É uma realidade baseada na
lógica, comprovada pela prática de séculos e que há muito tempo dispensa
qualquer comprovação através da experiência; não está mais em discussão, ou
talvez nunca tenha realmente estado. Ela ensina uma verdade simples e potente.
Todas as vezes em que algum governo, em qualquer época, regime político ou
lugar deste mundo, quis regular a liberdade de expressão, o resultado foi o
mesmo, sem nenhuma exceção: essa liberdade foi reduzida, falsificada ou
simplesmente extinta. Não é uma questão de ponto de vista. É a consequência
inevitável da pretensão de melhorar algo que é um direito evidente, por
natureza, do ser humano. Esse direito não pode, objetivamente, ser melhorado
por leis — da mesma forma como não é possível melhorar, por alguma espécie de
ato administrativo, o direito do homem a pensar ou a existir. Conclusão: em vez
de melhorar, ele só piora, todas as vezes em que se mexe com ele.
É o que acaba de acontecer,
nesta corrida cada vez mais descontrolada do Brasil rumo à escuridão, com a
aprovação do “Projeto de Lei das Fake News” no Senado Federal — sem
debate público, sem sessão plenária, por “voto eletrônico”, num momento em que
o país está arrasado por uma epidemia a caminho de matar 60 mil pessoas e por
apenas 44 votos, de um total de 81 senadores. Se não há acordo nem entre os
próprios senadores sobre o tema, que respeito se pode esperar de uma lei
dessas? A verdade, pela evidência dos fatos, é que o Senado Federal do Brasil
tratou um direito fundamental do homem, incluído como “sagrado” nessa bendita
Constituição que não sai da boca de políticos, juristas e pensadores
brasileiros em geral, com o pouco-caso de quem está trocando um nome de rua em
algum fundão perdido do interior.
Naturalmente, como fazem todas
as ditaduras nos momentos em que tentam dar um cheiro de legalidade a ações de
banditismo contra os direitos democráticos, os autores da lei disseram que seu
objetivo era “aprimorar”, ou até mesmo “proteger”, a liberdade de expressão. É
mentira, como se pode verificar pela leitura do que está escrito no texto
aprovado pelos 44 senadores. A autoridade pública — também podem chamar de
“polícia” — tem a partir de agora o direito de “rastrear” todas as comunicações
feitas pelos cidadãos através dos meios eletrônicos. É, para começar, uma
violação grosseira do direito à privacidade na comunicação entre as pessoas:
pela nova lei, mesmo a sua conversinha num simples grupo de WhatsApp entre os
familiares, os amigos ou os vizinhos do prédio pode ser gravada por quem manda
nos governos, sem licença da Justiça ou de quem quer que seja. Para continuar,
é uma agressão direta à liberdade de manifestação do seu pensamento, pois tudo
o que você disser poderá ser utilizado contra você — ou contra as plataformas
por intermédio das quais as suas conversas são feitas.
Como é possível uma
sociedade livre entregar ao Estado a função de decidir o que é verdade e o que
é mentira?
Como uma lei que pretende
combater a mentira nas comunicações públicas, punindo a transmissão de
“notícias falsas”, pode ser construída, ela mesma, em cima de uma mentira? O
fato é que toda essa lei se baseia na falsificação da verdade. Ela pretende
castigar o mau uso da liberdade de manifestação, segundo os autores asseguram
piedosamente nos seus propósitos — mas isso já é feito, desde 1940, pelo Código
Penal Brasileiro. A calúnia, a difamação e a injúria são os únicos três crimes
que alguém pode cometer utilizando-se do seu direito à livre expressão; até
hoje, ninguém foi capaz de descrever alguma outra possibilidade. Muito bem:
esses três delitos estão previstos nos artigos 139, 140 e 141 do Código Penal,
e caso o réu seja condenado está sujeito a penas de multa, prisão ou reclusão.
Pode ser punido, até mesmo, o crime de calúnia contra um morto. Será que já não
está bom assim? É a regra que vem valendo há 80 anos, sem nenhuma observação em
contrário, para as mentiras ditas pela imprensa, ou por outros meios de
comunicação. Por que, agora, estão achando que é preciso fazer mais?
No que talvez seja o seu pior
momento, a lei manda que se forme um “conselho” para julgar o que há de errado
e quem errou em tudo o que se diz na internet — um surto de mania de grandeza
que, além do mais, pretende “certificar” (ou não) as virtudes dos serviços a
ser criados pelos “provedores de redes sociais” e “serviços privados de
mensageria” para controlar o que os brasileiros dizem na internet. “Conselho”?
Que raio quer dizer isso? Então a Justiça brasileira, com seus 18 mil juízes,
desembargadores, ministros, tribunais inferiores, superiores e supremos, não é
o lugar certo para julgar as questões que envolvem uma das garantias essenciais
da Constituição? É uma aberração: ao entregar a uma montoeira indefinida de
deputados, senadores, burocratas, diretores de “agências reguladoras”, comunicadores
e gente da “sociedade civil” o direito de definir o certo e o errado em tudo
aquilo que se diz num celular no território nacional, a nova lei está
privatizando a Justiça. Como é possível uma sociedade livre entregar a um
“conselho” — entregar ao Estado, na verdade — a função de decidir o que é
verdade e o que é mentira?
O que os políticos
querem é combater tudo o que se possa dizer contra eles e comprar a tolerância
do STF
A degeneração moral, lógica e
política que os autores da lei criaram autoriza a coleta em massa de
informações sobre o cidadão e sobre o que ele vai dizer daqui para diante em
seus aparelhos de comunicação — se quiser exercer o direito legal de falar o
que pensa, terá de se esconder num canto qualquer onde as autoridades não possam
ouvi-lo. Você, por acaso, confia na honestidade de quem vai estar na escuta das
suas palavras — um senador, por exemplo? Está seguro de que ele não vai usar em
proveito próprio o que ouviu? A lei das fake news, em mais uma das
suas deformações tóxicas, também exige que qualquer empresa que queira operar
no país através de redes sociais terá de ter “sede no Brasil” — uma patriotada
primitiva, ignorante e destrutiva que significa atraso tecnológico direto na
veia. Acima de tudo, enfim, os senadores aprovaram a mais agressiva legislação
de censura que o Brasil já viu. Nem o AI-5 de 1968, tido como a pior agressão à
liberdade que alguém jamais escreveu num pedaço de papel em toda a história
nacional, permitia a prática da censura em qualquer um dos seus 12 artigos.
Permitia fechamento do Congresso, confisco de bens e negação de habeas
corpus para crimes políticos. Mas não permitia censura.
Não adianta, como dizem os
autores da lei, garantir que não há censura no texto aprovado, no sentido de
proibir alguém de dizer alguma coisa. Não há a palavra “censura”, mas há a
censura — sempre há, todas as vezes em que a autoridade tem a vontade, ou a
pretensão, de julgar o bem e o mal naquilo que as pessoas pensam. O fato é que
até hoje nenhum país civilizado, onde há o máximo possível de liberdades — e
tantas notícias falsas circulando nas redes sociais como no Brasil —, fez nada
de parecido com o que está se tentando fazer aqui. Não ocorreu a ninguém, até
agora, banir a mentira da vida pública de uma nação. Alguém acredita que os
senadores que aprovaram essa lei sejam os únicos a ver o que mais ninguém viu?
O que condena a “lei das fake
news”, acima tudo, é a sua hipocrisia de nascença. Nunca foi objetivo de
seus patrocinadores combater notícia falsa nenhuma. O que os políticos querem é
combater tudo o que se possa dizer contra eles (e o que eles fazem) nas redes
sociais — e, mais até do que isso, comprar a tolerância, o apoio e a
cumplicidade do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos seus atos. O STF é o
verdadeiro inventor dessa deformação agora usinada como lei pelo Senado — e que
teve por origem real o medo dos próprios ministros de responder penalmente
pelos atos de que são acusados ou suspeitos. Todo o resto é conversa-fiada.
“Protejam a gente; em compensação, vamos proteger vocês quando forem julgados
aqui” — essa é a mensagem. Não poderiam encontrar parceiros tão dispostos a
cooperar. O Senado, como todo mundo sabe, é a casa de gigantes da honestidade
como Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e tantos outros heróis da
política nacional — esse último, aliás, acaba de ver o próprio STF, por 3 a 2,
autorizar seu processo penal por corrupção e lavagem de dinheiro, na condição
de chefe do “quadrilhão do PP”. Você acha que ele votou a favor ou contra a
“lei das fake news”?
“A lei não é contra as
notícias falsas, é contra as liberdades individuais. Não é contra a mentira; é
a favor da censura. Não é para defender o cidadão; é para defender quem tem
poder de quem não tem poder”, afirmou o deputado gaúcho Marcel van Hattem, do Partido
Novo — que, junto com seus colegas de bancada Paulo Ganime, do Rio de Janeiro,
e Vinicius Poit, de São Paulo, tem sido uma das vozes mais ativas na denúncia
do projeto que passou pelo Senado. Eles vão lutar, agora, pela sua rejeição na
Câmara dos Deputados. É um perfeito sinal dos tempos que as suas vozes não
apareçam na mídia que chama a si própria de “grande”. Estão confinadas às redes
sociais — essas mesmas que os donos do Brasil velho querem calar.
Título, Imagem e Texto: J.
R. Guzzo, revista Oeste, nº 15, 3-7-2020
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