segunda-feira, 6 de julho de 2020

A lei da mordaça

Os senadores aprovaram a mais agressiva legislação de censura que o Brasil já viu. Nem o AI-5 permitia a prática da censura em qualquer um de seus 12 artigos

J. R. Guzzo


É uma realidade baseada na lógica, comprovada pela prática de séculos e que há muito tempo dispensa qualquer comprovação através da experiência; não está mais em discussão, ou talvez nunca tenha realmente estado. Ela ensina uma verdade simples e potente. Todas as vezes em que algum governo, em qualquer época, regime político ou lugar deste mundo, quis regular a liberdade de expressão, o resultado foi o mesmo, sem nenhuma exceção: essa liberdade foi reduzida, falsificada ou simplesmente extinta. Não é uma questão de ponto de vista. É a consequência inevitável da pretensão de melhorar algo que é um direito evidente, por natureza, do ser humano. Esse direito não pode, objetivamente, ser melhorado por leis — da mesma forma como não é possível melhorar, por alguma espécie de ato administrativo, o direito do homem a pensar ou a existir. Conclusão: em vez de melhorar, ele só piora, todas as vezes em que se mexe com ele.

É o que acaba de acontecer, nesta corrida cada vez mais descontrolada do Brasil rumo à escuridão, com a aprovação do “Projeto de Lei das Fake News” no Senado Federal — sem debate público, sem sessão plenária, por “voto eletrônico”, num momento em que o país está arrasado por uma epidemia a caminho de matar 60 mil pessoas e por apenas 44 votos, de um total de 81 senadores. Se não há acordo nem entre os próprios senadores sobre o tema, que respeito se pode esperar de uma lei dessas? A verdade, pela evidência dos fatos, é que o Senado Federal do Brasil tratou um direito fundamental do homem, incluído como “sagrado” nessa bendita Constituição que não sai da boca de políticos, juristas e pensadores brasileiros em geral, com o pouco-caso de quem está trocando um nome de rua em algum fundão perdido do interior.

Naturalmente, como fazem todas as ditaduras nos momentos em que tentam dar um cheiro de legalidade a ações de banditismo contra os direitos democráticos, os autores da lei disseram que seu objetivo era “aprimorar”, ou até mesmo “proteger”, a liberdade de expressão. É mentira, como se pode verificar pela leitura do que está escrito no texto aprovado pelos 44 senadores. A autoridade pública — também podem chamar de “polícia” — tem a partir de agora o direito de “rastrear” todas as comunicações feitas pelos cidadãos através dos meios eletrônicos. É, para começar, uma violação grosseira do direito à privacidade na comunicação entre as pessoas: pela nova lei, mesmo a sua conversinha num simples grupo de WhatsApp entre os familiares, os amigos ou os vizinhos do prédio pode ser gravada por quem manda nos governos, sem licença da Justiça ou de quem quer que seja. Para continuar, é uma agressão direta à liberdade de manifestação do seu pensamento, pois tudo o que você disser poderá ser utilizado contra você — ou contra as plataformas por intermédio das quais as suas conversas são feitas.

Como é possível uma sociedade livre entregar ao Estado a função de decidir o que é verdade e o que é mentira?

Como uma lei que pretende combater a mentira nas comunicações públicas, punindo a transmissão de “notícias falsas”, pode ser construída, ela mesma, em cima de uma mentira? O fato é que toda essa lei se baseia na falsificação da verdade. Ela pretende castigar o mau uso da liberdade de manifestação, segundo os autores asseguram piedosamente nos seus propósitos — mas isso já é feito, desde 1940, pelo Código Penal Brasileiro. A calúnia, a difamação e a injúria são os únicos três crimes que alguém pode cometer utilizando-se do seu direito à livre expressão; até hoje, ninguém foi capaz de descrever alguma outra possibilidade. Muito bem: esses três delitos estão previstos nos artigos 139, 140 e 141 do Código Penal, e caso o réu seja condenado está sujeito a penas de multa, prisão ou reclusão. Pode ser punido, até mesmo, o crime de calúnia contra um morto. Será que já não está bom assim? É a regra que vem valendo há 80 anos, sem nenhuma observação em contrário, para as mentiras ditas pela imprensa, ou por outros meios de comunicação. Por que, agora, estão achando que é preciso fazer mais?

No que talvez seja o seu pior momento, a lei manda que se forme um “conselho” para julgar o que há de errado e quem errou em tudo o que se diz na internet — um surto de mania de grandeza que, além do mais, pretende “certificar” (ou não) as virtudes dos serviços a ser criados pelos “provedores de redes sociais” e “serviços privados de mensageria” para controlar o que os brasileiros dizem na internet. “Conselho”? Que raio quer dizer isso? Então a Justiça brasileira, com seus 18 mil juízes, desembargadores, ministros, tribunais inferiores, superiores e supremos, não é o lugar certo para julgar as questões que envolvem uma das garantias essenciais da Constituição? É uma aberração: ao entregar a uma montoeira indefinida de deputados, senadores, burocratas, diretores de “agências reguladoras”, comunicadores e gente da “sociedade civil” o direito de definir o certo e o errado em tudo aquilo que se diz num celular no território nacional, a nova lei está privatizando a Justiça. Como é possível uma sociedade livre entregar a um “conselho” — entregar ao Estado, na verdade — a função de decidir o que é verdade e o que é mentira?

O que os políticos querem é combater tudo o que se possa dizer contra eles e comprar a tolerância do STF

A degeneração moral, lógica e política que os autores da lei criaram autoriza a coleta em massa de informações sobre o cidadão e sobre o que ele vai dizer daqui para diante em seus aparelhos de comunicação — se quiser exercer o direito legal de falar o que pensa, terá de se esconder num canto qualquer onde as autoridades não possam ouvi-lo. Você, por acaso, confia na honestidade de quem vai estar na escuta das suas palavras — um senador, por exemplo? Está seguro de que ele não vai usar em proveito próprio o que ouviu? A lei das fake news, em mais uma das suas deformações tóxicas, também exige que qualquer empresa que queira operar no país através de redes sociais terá de ter “sede no Brasil” — uma patriotada primitiva, ignorante e destrutiva que significa atraso tecnológico direto na veia. Acima de tudo, enfim, os senadores aprovaram a mais agressiva legislação de censura que o Brasil já viu. Nem o AI-5 de 1968, tido como a pior agressão à liberdade que alguém jamais escreveu num pedaço de papel em toda a história nacional, permitia a prática da censura em qualquer um dos seus 12 artigos. Permitia fechamento do Congresso, confisco de bens e negação de habeas corpus para crimes políticos. Mas não permitia censura.

Não adianta, como dizem os autores da lei, garantir que não há censura no texto aprovado, no sentido de proibir alguém de dizer alguma coisa. Não há a palavra “censura”, mas há a censura — sempre há, todas as vezes em que a autoridade tem a vontade, ou a pretensão, de julgar o bem e o mal naquilo que as pessoas pensam. O fato é que até hoje nenhum país civilizado, onde há o máximo possível de liberdades — e tantas notícias falsas circulando nas redes sociais como no Brasil —, fez nada de parecido com o que está se tentando fazer aqui. Não ocorreu a ninguém, até agora, banir a mentira da vida pública de uma nação. Alguém acredita que os senadores que aprovaram essa lei sejam os únicos a ver o que mais ninguém viu?

O que condena a “lei das fake news”, acima tudo, é a sua hipocrisia de nascença. Nunca foi objetivo de seus patrocinadores combater notícia falsa nenhuma. O que os políticos querem é combater tudo o que se possa dizer contra eles (e o que eles fazem) nas redes sociais — e, mais até do que isso, comprar a tolerância, o apoio e a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos seus atos. O STF é o verdadeiro inventor dessa deformação agora usinada como lei pelo Senado — e que teve por origem real o medo dos próprios ministros de responder penalmente pelos atos de que são acusados ou suspeitos. Todo o resto é conversa-fiada. “Protejam a gente; em compensação, vamos proteger vocês quando forem julgados aqui” — essa é a mensagem. Não poderiam encontrar parceiros tão dispostos a cooperar. O Senado, como todo mundo sabe, é a casa de gigantes da honestidade como Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro Nogueira e tantos outros heróis da política nacional — esse último, aliás, acaba de ver o próprio STF, por 3 a 2, autorizar seu processo penal por corrupção e lavagem de dinheiro, na condição de chefe do “quadrilhão do PP”. Você acha que ele votou a favor ou contra a “lei das fake news”?

“A lei não é contra as notícias falsas, é contra as liberdades individuais. Não é contra a mentira; é a favor da censura. Não é para defender o cidadão; é para defender quem tem poder de quem não tem poder”, afirmou o deputado gaúcho Marcel van Hattem, do Partido Novo — que, junto com seus colegas de bancada Paulo Ganime, do Rio de Janeiro, e Vinicius Poit, de São Paulo, tem sido uma das vozes mais ativas na denúncia do projeto que passou pelo Senado. Eles vão lutar, agora, pela sua rejeição na Câmara dos Deputados. É um perfeito sinal dos tempos que as suas vozes não apareçam na mídia que chama a si própria de “grande”. Estão confinadas às redes sociais — essas mesmas que os donos do Brasil velho querem calar.
Título, Imagem e Texto: J. R. Guzzo, revista Oeste, nº 15, 3-7-2020

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