Pelas novas regras de empatia, sorriso só é
permitido no pombal do Zoom. Você já tinha notado que para eles empatia é
empatar a vida alheia
Guilherme Fiuza
Um rapaz andando na praia de Copacabana
foi cercado por vários homens armados, imobilizado e atingido com uma arma de
choque. Não era um assalto. Eram agentes de segurança pública fingindo combater
uma epidemia. Muito perto dali, na mesma hora, vários ônibus circulavam cheios,
com janelas fechadas e presença de passageiros sem máscara, assim como o
banhista atacado. O coronavírus achou a ação dos guardas cariocas perfeita.
Em nota oficial, a assessoria
da covid-19 parabenizou os boçais do Crivella e do Witzel, que apesar de enrolado
no Covidão e com a polícia nos calcanhares ainda arranja tempo para mandar
bater no cidadão. São muito dinâmicos, esses homens públicos de hoje.
A nota da covid-19 recomenda que
os agentes de segurança brasileiros continuem assim, atacando pessoas isoladas
ao ar livre e especialmente sob o sol, já que nesse ambiente o coronavírus não
tem muito que fazer. O estado-maior da epidemia elogiou a vista grossa de
governadores e prefeitos com as aglomerações em transportes públicos —
agradecendo a parceria em prol do contágio livre e democrático.
Gente ferrada
se espremendo para ir trabalhar não incomoda. O que incomoda mesmo é a
liberdade
Uns boçais fardados também
fizeram história invadindo o quarto de uma bailarina, em Santa Catarina. Ela
estava recebendo amigos em casa, o que justifica o arrombamento da sua porta em
qualquer ditadura que se preze. Os humanistas de plantão estão de férias e não
veem nada disso. Todos aninhados direitinho em seus confinamentos vip,
engajados no compartilhamento remoto de música, poesia e filosofia a 1,99 (a
tecnologia barateou muito o ser humano) e sem nenhuma janelinha aberta para a
paisagem incômoda dos ônibus lotados.
O que os olhos não veem, o
coração não mente.
Hoje em dia, os humanistas de
Zoom só têm olhos para dedurar banhista e boêmio. Gente ferrada se espremendo
para ir trabalhar não incomoda. O que incomoda mesmo é a liberdade. Isso eles
não toleram. Tome um gole de chope na calçada ou dê um mergulho no mar para ver
o que é bom. Eles vão fotografar você — e expor o pecado mortal da sua cara
limpa. Pelas novas regras de empatia, sorriso só é permitido no pombal do Zoom.
Você já tinha notado que para eles empatia é empatar a vida alheia.
Nunca mais
será ético viver enquanto houver alguém podendo morrer
O Flamengo foi jogar no
Maracanã e virou escândalo. Segundo a patrulha viral, com total apoio do
estado-maior epidêmico, o time que leva alegria e colore a vida do maior número
de pessoas no país estava pondo vidas em risco. O clube respondeu apresentando
seu protocolo completo de segurança sanitária, com todos os atletas devidamente
testados e evidenciando que aquele grupo era, na verdade, um modelo de conduta
social na epidemia.
Mas a brigada corona nem
ouviu. Ela não tem tempo para protocolo, só para slogan. E alegou que o jogo do
Flamengo no Maracanã “desrespeitava” os pacientes do hospital de campanha no
mesmo bairro. Ainda não entendeu a lógica? Explicamos para você: nunca mais
será ético viver enquanto houver alguém podendo morrer.
Aí o campeonato de São Paulo
começou e o escândalo não se repetiu. Mistério. Será que a vacina chinesa já
está funcionando e o perigo passou? Por que o Corinthians jogar com o Palmeiras
não é pecado, se até a semana retrasada o Flamengo era o vilão da falta de
empatia? Será que o pecado do Flamengo foi ignorar os porta-vozes da covid?
Vamos esperar para ver se sai
uma nota oficial do estado-maior epidêmico esclarecendo tudo.
Título e Texto: Guilherme
Fiuza, revista Oeste, 24-7-2020, 8h05
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