sábado, 25 de julho de 2020

O pecado do banhista solitário

Pelas novas regras de empatia, sorriso só é permitido no pombal do Zoom. Você já tinha notado que para eles empatia é empatar a vida alheia

Guilherme Fiuza 

Um rapaz andando na praia de Copacabana foi cercado por vários homens armados, imobilizado e atingido com uma arma de choque. Não era um assalto. Eram agentes de segurança pública fingindo combater uma epidemia. Muito perto dali, na mesma hora, vários ônibus circulavam cheios, com janelas fechadas e presença de passageiros sem máscara, assim como o banhista atacado. O coronavírus achou a ação dos guardas cariocas perfeita.


Em nota oficial, a assessoria da covid-19 parabenizou os boçais do Crivella e do Witzel, que apesar de enrolado no Covidão e com a polícia nos calcanhares ainda arranja tempo para mandar bater no cidadão. São muito dinâmicos, esses homens públicos de hoje.

A nota da covid-19 recomenda que os agentes de segurança brasileiros continuem assim, atacando pessoas isoladas ao ar livre e especialmente sob o sol, já que nesse ambiente o coronavírus não tem muito que fazer. O estado-maior da epidemia elogiou a vista grossa de governadores e prefeitos com as aglomerações em transportes públicos — agradecendo a parceria em prol do contágio livre e democrático.

Gente ferrada se espremendo para ir trabalhar não incomoda. O que incomoda mesmo é a liberdade

Uns boçais fardados também fizeram história invadindo o quarto de uma bailarina, em Santa Catarina. Ela estava recebendo amigos em casa, o que justifica o arrombamento da sua porta em qualquer ditadura que se preze. Os humanistas de plantão estão de férias e não veem nada disso. Todos aninhados direitinho em seus confinamentos vip, engajados no compartilhamento remoto de música, poesia e filosofia a 1,99 (a tecnologia barateou muito o ser humano) e sem nenhuma janelinha aberta para a paisagem incômoda dos ônibus lotados.

O que os olhos não veem, o coração não mente.

Hoje em dia, os humanistas de Zoom só têm olhos para dedurar banhista e boêmio. Gente ferrada se espremendo para ir trabalhar não incomoda. O que incomoda mesmo é a liberdade. Isso eles não toleram. Tome um gole de chope na calçada ou dê um mergulho no mar para ver o que é bom. Eles vão fotografar você — e expor o pecado mortal da sua cara limpa. Pelas novas regras de empatia, sorriso só é permitido no pombal do Zoom. Você já tinha notado que para eles empatia é empatar a vida alheia.

Nunca mais será ético viver enquanto houver alguém podendo morrer

O Flamengo foi jogar no Maracanã e virou escândalo. Segundo a patrulha viral, com total apoio do estado-maior epidêmico, o time que leva alegria e colore a vida do maior número de pessoas no país estava pondo vidas em risco. O clube respondeu apresentando seu protocolo completo de segurança sanitária, com todos os atletas devidamente testados e evidenciando que aquele grupo era, na verdade, um modelo de conduta social na epidemia.

Mas a brigada corona nem ouviu. Ela não tem tempo para protocolo, só para slogan. E alegou que o jogo do Flamengo no Maracanã “desrespeitava” os pacientes do hospital de campanha no mesmo bairro. Ainda não entendeu a lógica? Explicamos para você: nunca mais será ético viver enquanto houver alguém podendo morrer.

Aí o campeonato de São Paulo começou e o escândalo não se repetiu. Mistério. Será que a vacina chinesa já está funcionando e o perigo passou? Por que o Corinthians jogar com o Palmeiras não é pecado, se até a semana retrasada o Flamengo era o vilão da falta de empatia? Será que o pecado do Flamengo foi ignorar os porta-vozes da covid?

Vamos esperar para ver se sai uma nota oficial do estado-maior epidêmico esclarecendo tudo.

Título e Texto: Guilherme Fiuza, revista Oeste, 24-7-2020, 8h05

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