Pálidos, gratos e felizes, os sobreviventes da mina não querem ser tratados como artistas
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O momento é de festa. O regresso à superfície trará novos problemas Hugo Infante/AFP |
Um por um, hora a hora, num processo metódico que levou todo o dia de ontem e só terminava hoje, os 33 novos heróis do Chile foram abandonando a húmida e insalubre prisão de granito a 700 metros de profundidade onde sobreviveram nos últimos 69 dias.
Uma cápsula metálica com o formato de um míssil e a largura de uma roda de bicicleta, a Fénix, mergulhou mais de 40 vezes até ao interior da terra para trazer de volta à superfície os 33 mineiros soterrados na mina de ouro e cobre de San José durante dois meses. Sãos e salvos, barbeados, sorridentes, numa espantosa condição física e impressionante estado de espírito, tendo em conta o pesadelo que viveram.
O dia 5 de Agosto foi a última vez que viram a paisagem do deserto de Atacama, o impressionante cenário de uma saga absolutamente inédita que prendeu as atenções de todo o mundo. Nunca na história alguém resistiu tanto tempo em situação tão extrema. Os homens ficaram presos quando um muro de sustentação ruiu, atirando 700 toneladas de rocha para cima da galeria onde trabalhavam.
O regresso à superfície não estava isento de riscos: a ascensão das profundezas sombrias e escaldantes da mina implicava um esforço de descompressão e um reajustamento térmico que podia deixar qualquer um em choque.
À chegada, os homens foram submetidos a um exame médico preliminar num hospital de campanha. Nenhum deles exibiu sintomas preocupantes, informou o ministro da Saúde chileno, Jaime Manalich. Mas continuariam sob observação, internados no hospital da cidade de Copiapó por pelo menos 48 horas.
O pior, avisaram todos os especialistas, está para vir. Stress pós-traumático, pesadelos, alucinações, irritabilidade, depressão, os técnicos de saúde mental enumeraram uma série de maleitas que podem pairar no seu futuro. Inevitavelmente, alertavam, a euforia esmorecerá, e é possível que no seu lugar surja o desespero. A normalidade, diziam, é um conceito que estes homens não deverão voltar a conhecer.
Pela televisão, o Chile e o resto do mundo puderam ver os homens escapar do seu involuntário cativeiro - pálidos, gratos e felizes. Florencio Avalos, o primeiro a escapar, fora o narrador dos vídeos que transformaram os mineiros numa sensação mundial. "Acabou. Acabou finalmente", balbuciou.O sindicalista que veio em segundo, Mário Sepúlveda, foi o mais efusivo: saltou da Fénix carregado com uma saca de pedras, que imediatamente começou a distribuir pelas equipas envolvidas no resgate. "Estive com Deus e o diabo. Agarrei-me à melhor mão", contou.
Juan Ilanes Palma levantou os braços ao céu; Mário Gomez, o mais velho do grupo, ajoelhou-se a rezar - um gesto repetido por tantos outros companheiros, Alex Vega, Omar Reygadas, Esteban Rojas... As mulheres e filhos abraçavam-nos por segundos, sob o olhar emocionado dos dirigentes políticos e do pessoal técnico.
O sucesso e alegria do dia do salvamento esconderam temporariamente a realidade bem menos efusiva que os espera. Os mineiros soterrados juntaram-se numa acção judicial contra o Governo chileno, ao qual pedem responsabilidades pelas frágeis condições de segurança na mina, cuja laboração fora suspensa por duas vezes na sequência de outros acidentes.
"Não nos tratem como artistas, tratem-nos como mineiros", pediu Sepúlveda, que não esperou nem um minuto para exigir reformas na regulação e supervisão da indústria e nas condições de trabalho dos mineiros. "Estou contente por ter chegado este momento, mas este país deve entender que são precisas mudanças no mundo laboral", declarou.
Os seus colegas, que conseguiram escapar da mina no dia do desastre, enfrentam um futuro tão ou mais incerto do que o dele. Impedidos de trabalhar há mais de dois meses, estes mineiros não terão acesso às indemnizações que garantem a subsistência financeira dos 33 mineiros soterrados.
A operação de resgate, minuciosamente coreografada e apresentada com dramatismo pelos milhares de jornalistas reunidos no Campo Esperança, que nasceu à porta da mina, decorreu sem sobressaltos. "Não há nenhuma contingência que não tenha sido antecipada e para a qual não exista alternativa", assegurou o ministro das Minas, Laurence Golborne, antes do início do resgate.
A meio da tarde (final do dia em Lisboa), já com mais de metade dos mineiros fora do buraco, o governante anunciava que os restantes sairiam ainda antes do fim do dia. "Resgatámos o número 17, situação que nos satisfaz muito. Não ocorreu nenhum contratempo e avançámos mais depressa que o esperado. Isso faz-nos prever que a operação de resgate pode ficar concluída esta noite."
O regresso dos mineiros à superfície foi originalmente estimado para o Natal. O prazo foi encurtado assim que entraram em acção as duas tuneladoras - Plano A e Plano B - e de novo revisto na semana passada, quando a Schramm T-130 venceu a última barreira rochosa e encontrou a galeria onde os mineiros ansiavam por auxílio.
O Presidente do Chile, Sebastian Piñera, garantiu que a vetusta mina de San José, em actividade desde 1885, permanecerá selada enquanto decorrer o inquérito às causas do acidente - e, adiantou, deverá ser reconvertida em monumento nacional, "um reflexo de esperança para as gerações futuras".
Os canais de todo o mundo mantiveram as operações de resgate a correr em directo ao longo do dia - o canal público chileno TVN, que disponibilizou as imagens, calculou que mais de mil milhões de pessoas tenham seguido a emissão. A televisão estatal do Irão só interrompeu a transmissão para mostrar a chegada do Presidente Mahmoud Ahmadinejad ao Líbano. Também na China, onde se supõe que mais de 1500 mineiros morram a cada ano, o salvamento foi acompanhado ao minuto. "Esta é uma operação tão maravilhosa, tão limpa, tão emocionante, que os olhos do mundo não podem deixar de acompanhar cada segundo", elogiava Piñera.
Rita Sisa, Público,14-10-2010
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