A hora é boa para analisar com visão estratégica a relação com os Estados Unidos, deixando de lado as birras do último governo e tendo uma atitude mais madura. Eles são e por muito tempo serão o maior mercado do mundo. Em quatro anos, o Brasil saiu de um superávit comercial de US$ 10 bilhões para um déficit de US$ 7,7 bilhões com os americanos. O que aconteceu?
Alguém pode dizer que é o câmbio valorizado do Brasil. Resposta insuficiente, por várias razões. O mundo tem superávit com os Estados Unidos e nós um déficit crescente. Eles eram, anos atrás, perto de um quarto da nossa corrente de comércio; hoje, representam menos de 10%. A boa razão dessa queda é que o Brasil aumentou a venda para outros mercados do mundo, diversificando mais o destino de nossas exportações. Mas esse encolhimento é também fruto do descaso — e até implicância ideológica — que o Brasil dedicou aos Estados Unidos nos últimos anos.
É boa hora para analisar toda a relação com os norte-americanos porque o presidente Barack Obama está vindo, o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, acabou de vir em viagem preparatória, um novo governo começa no Brasil, e a virada da balança comercial tem números expressivos demais para serem ignorados.
Anos atrás, os Estados Unidos propuseram a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Se aquele bloco seria bom ou não, é difícil dizer hoje, porque é uma espécie de acordo Porcina — foi, sem nunca ter sido. Só se saberia se ele seria bom se tivesse havido uma negociação. O Brasil, copresidente da negociação com os EUA de um acordo, fez o que pôde, e com maus modos, para bloquear a negociação bem no seu início.
A ideia de nos amarrar numa região de livre comércio com a maior economia do mundo talvez fosse mesmo uma má proposta, mas o Brasil teria que saber qual era o lance seguinte. E não soube. Poderia ter tentado um acordo bilateral de comércio que fosse bom para as duas maiores economias das Américas. Em algumas áreas, as economias competem entre si, como na produção de certas commodities, em outras, são complementares.
O desleixo com que foi deixada a relação com os Estados Unidos tinha um elemento estranho à diplomacia brasileira. Ela sempre foi, com raras exceções, independente e altiva. Sempre soube quando dizer “não” às pressões de Washington, mesmo no governo militar. Mas nos últimos anos entramos em brigas inúteis.
De que nos serve, por exemplo, ecoar os gritos demagógicos de Hugo Chávez contra o “imperialismo” americano, se a Venezuela continua tendo nos Estados Unidos um enorme parceiro comercial? De que nos serve apoiar o programa nuclear com o Irã, afiançando que ele é pacífico como o nosso, passando um recibo de ingenuidade ao mundo? Bastava no caso do Irã manter uma boa relação, já que ele é nosso parceiro comercial, mas avalizar uma política nuclear cheia de perigosas ambiguidades é um equívoco. De que nos serve embirrar contra a solução encontrada para o impasse de Honduras? O Brasil estava certo quando ficou contra o golpe, errou quando passou a ser o protetor de Manuel Zelaya e deixou que a embaixada fosse usada como seu escritório político. De qualquer maneira, quando houve a eleição, o período presidencial de Zelaya já havia terminado. Mas o Brasil ainda não reconhece o governo de Honduras e com isso criamos situações embaraçosas do tipo “ou ele ou nós”, cada vez que se pensa em uma reunião dos países das Américas.
Está na hora de avaliar todo o comércio com os Estados Unidos, passando raios X sobre oportunidades, contenciosos, cooperação e interesses para saber o que vamos propor nestas semanas em que se prepara a vinda do presidente americano. Na diplomacia, quase tudo se conversa de véspera, por isso, a hora é esta.
Na política internacional, temos que avaliar melhor onde os conflitos com os Estados Unidos são inevitáveis e quais as brigas que eram apenas demonstrações infantis de independência. Não precisamos provar independência; sempre fomos independentes. Nossa política externa nunca foi caudatária. A diplomacia brasileira tem habilidade e esperteza suficientes para saber a diferença de uma briga realmente boa e as que são inúteis.
O Brasil quer e merece ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, mas não deve depositar tudo nesse altar. Essa é uma grande divergência com os Estados Unidos. A eles, interessa manter o mesmo núcleo de países no Conselho formatado para um mundo que já foi transformado pela emergência de potências médias importantes, entre elas, o Brasil. O tempo corre a nosso favor, mas atitudes estouvadas enfraqueceram a nossa posição.
Na diplomacia, o parceiro estratégico muda dependendo do tema. Brasil e Estados Unidos estão mais próximos em alguns temas e em posições opostas em outros. Portanto, é preciso reencontrar o caminho desse diálogo nos pontos em que os dois países se aproximam. A ideia de que o Brasil deve se alinhar à China contra os países desenvolvidos não faz sentido em várias questões. Na guerra cambial, tanto o dólar quanto o iuan estão desvalorizados, com a diferença de que a moeda chinesa é controlada, e o dólar reage a um excesso de emissão. Mas os dois países criam problemas para ao Brasil. Na luta contra as emissões dos gases de efeito estufa, nosso maior parceiro deveria ser a Europa, que há anos persegue seus cortes de emissão, e não a China, que é a maior emissora, ou os Estados Unidos, o maior emissor per capita e que não assinou o Protocolo de Kioto. É esse pragmatismo inteligente que precisa voltar a vigorar na diplomacia brasileira.
Miriam Leitão, O Globo, 13-02-2011
Enviado por Janda Mendez
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