O procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, encaminha amanhã à seção paulista do Ministério
Público Federal as acusações que o empresário Marcos Valério, principal
operador do mensalão, faz a Lula. Não é pouca coisa. Valério não só diz que o
Apedeuta sabia de tudo e sempre esteve no controle do mensalão como sustenta
que foi um dos seus beneficiários. O dinheiro para seu uso pessoal teria sido
depositado na conta do faz-tudo Freud Godoy. Com efeito, a CPI dos Correios
encontrou repasse da agência de Valério para o carregados de malas.
Muito bem! O procurador que
receber o papelório vai decidir se abre investigação ou se pede o arquivamento
do caso. Os petistas tratam como um atentado à democracia a possibilidade de
Lula vir a ser investigado e se tornar réu numa ação criminal.
Há nisso muito de politicagem
vulgar, mas também há uma espécie de crença, em vários setores do PT, na
infalibilidade de Lula, quem sabe na sua divindade. E ele não faz por menos,
como é sabido: expõe-se à adoração. Tivesse atravessado o Mar Vermelho com
Moisés, não duvidem: teria liderado a turba contestadora, impaciente com a
demora do Patriarca, e seria o primeiro a propor um de ídolo de ouro: em vez do
bezerro, ofereceria a si mesmo como modelo. Se não conseguisse destituir Deus,
daria um jeito de, quando menos, tirar Moisés da história…
Não pensem que isso começou
com o, como chamarei?, “petismo popular”. De jeito nenhum! O povo é muito menos
mistificador do que aqueles que se dizem “intelectuais petistas”, essa
contradição dada pelos termos. Contradição? Não pode haver petista culto? Claro
que sim! Eu me refiro a “intelectuais” como pessoas comprometidas com a ciência
e com o pensamento. Ou bem se busca servir à verdade ou bem se busca servir a
um partido.
Muito bem! Em julho de 2003,
Marilena Chaui — uma das inventoras da tese vigarista de que a denúncia do
mensalão era uma tentativa de golpe — concedeu uma entrevista à revista
Primeira Leitura, que eu dirigia. Conversou com o jornalista Fernando
Eichenberg, em Paris. Ele lhe dirigiu, então a seguinte pergunta:
A sra. não acha que Lula
despolitiza talvez em demasia sua própria trajetória, repisando o mito do homem
milagreiro, do político milagreiro, do evento milagreiro, mais ou menos nos
termos pela sra. apontados no livro “Brasil, Mito Fundador e Sociedade
Autoritária”?
A resposta de Marilena, aquela
que já afirmou que, quando Lula fala, o mundo se ilumina, foi fabulosa. Ela
comparou seu líder à deusa grega Métis (vocês saberão detalhes). Vale a pena ler a íntegra da
resposta. Volto depois.
Há no Lula um traço que é a marca ocidental do homem político. Há um trabalho
feito nos anos 80, pelo Jean Pierre Vernant, sobre um aspecto da cultura grega
clássica, segundo o qual os gregos consideravam a prática, contraposta à
inteligência teórica. Essa inteligência prática ficava sob a proteção de uma deusa
chamada Métis. As características da pessoa dotada de Métis, ou dessa
inteligência prática, eram as seguintes: golpe de vista certeiro, ou seja, ela
era capaz de, num único golpe de vista, perceber o todo; tinha o senso da
oportunidade, ou o sentimento do kairós, do momento oportuno, em que
momento intervir, em que a ação seria eficaz; tinha a capacidade de encontrar
ou de criar um caminho onde não havia caminho: diante da aporia, do aporós,
abre um caminho; e era dotada da capacidade da espreita, de saber observar de
longe, de espreitar e de produzir uma estratégia para intervir.
![]() |
Métis e Zeus. Imagem: AD |
Os gregos consideravam que
havia alguns tipos sociais que eram dotados de Métis: os capitães de navio, os
médicos, os caçadores e os estrategistas militares. Mas a figura que reunia
todos os traços da Métis, que era a Métis praticamente encarnada, era o
político. O homem político grego era dotado dessas características da Métis. Eu
considero o Lula um animal político. Na medida em que ele é dotado dessas
características que são constitutivas da figura ocidental do político, ele não
pode despolitizar, mesmo que ele queira, porque o modo de ver o mundo é um modo
político. É vê-lo como totalidade, como tempo aberto, como conjunto de
dificuldades e de aporias, como aquilo que se tem de observar e sobre o que se
tem de intervir.
Em relação ao discurso do
Lula, alguns dizem que é um discurso populista. Ora, o líder populista é aquele
que pertence ou à classe dominante ou ao setor aliado da classe dominante. E é
aquele que se apresenta para o povo como o protetor, o guardião, como se esse
povo fosse imaturo, vivesse na minoridade, incapaz de se conduzir a si mesmo.
Isso é o populismo. Nenhuma dessas características se pode atribuir ao Lula.
Ele não vem da classe dominante; ele não se dirige a um povo imaturo e incapaz
de se dirigir; ele não se propõe a ensinar a esse povo esse bom caminho,
porque, se ele tivesse de fazer isso, não teria sido eleito presidente, na
medida em que ele é a expressão desse povo. Então, há uma impossibilidade lógica,
para usar uma expressão do Paulo Arantes, de que ele seja um líder populista. É
dito também que ele é um líder messiânico. O messianismo possui duas grandes
características no Brasil. Primeiro, é milenarista, coisa ausente do discurso
ou da ação do Lula. A segunda característica é a componente teológico-política,
ou seja, de que o governante é um representante de Deus, que ele transcende a
sociedade e a controla por mandato divino, o que Lula também não diz.
O fato de que, no discurso,
Lula invoque Deus, é porque ele é um homem religioso. Nem é uma invocação ao
reino de mil anos de felicidade, produzido pela ação justiceira dos santos, nem
é ele representante de Deus na Terra. É má-fé dizer que ele é messiânico, sobretudo
porque é chamado de messiânico por quem faz ciências sociais e que, portanto,
sabe o que é o messianismo. O Lula tem uma estrutura discursiva que vi sendo
empregada por ele desde 1978. É a maneira que tem de se exprimir. Sobretudo,
quando se diz que ele improvisa, não lê, vai falando qualquer coisa. Uma vez,
conversei com ele, e ele me disse que, para poder realmente se dirigir a um
interlocutor, precisa perceber o que o está pensando, sentindo, precisa do
olhar do interlocutor. A escrita rompe a relação. Isso é uma das coisas mais
definidoras do discurso político, porque é aquele que se dirige diretamente ao
outro; não é à toa que a política nasceu na assembleia democrática. O Lula fala
a interlocutores determinados, estabelece o vínculo típico de quem fez
aprendizado na assembleia, porque é assim que ela funciona. Isso é uma
característica muito marcante dele.
Outra coisa é o fato de ele
usar metáforas e provérbios. Qualquer um de nós que tenha nascido e vivido no
interior do país sabe que o homem do interior, seja o sertanejo ou o caipira
paulista, por exemplo, fala por provérbios. A minha bisavó, que era baiana,
falava por provérbios e metáforas. O [Monteiro] Lobato, falando do caipira
paulista, fala por provérbios. Peguem-se as grandes personagens do Guimarães
Rosa, elas falam por sentenças, máximas e provérbios. Isso é constitutivo da
cultura popular brasileira. Quando eu era ainda adolescente, li, em algum
lugar, o [Jean-Paul] Sartre dizendo que sempre ficou muito impressionado com os
provérbios e as máximas populares porque exprimem uma sabedoria pessimista
sobre o ser humano. Não necessariamente, mas, de um modo geral, sim. Vou usar
um provérbio. O provérbio “é confiar desconfiando”. Há uma maneira popular de
se exprimir, universal, e é por provérbios e por máximas. Depois, essa é uma
maneira pela qual a cultura popular no Brasil se exprime. Então, tem-se um
nordestino, do interior do país, que é formado nessa cultura e exprime por meio
dessa cultura. Portanto, dizer que é um discurso imbecilizante, paralisante,
estúpido, ignorante, é repetir o preconceito, a exclusão e a divisão levada ao
seu extremo. O que se exige dele é que se desfaça do direito de se exprimir a
partir de onde se formou. Penso que, das críticas preconceituosas feitas ao
Lula, essa tem sido para mim a mais chocante, porque ignora de onde ele veio.
Como ele não produz uma frase em francês, um conceito em inglês ou boutade
em alemão, diz-se que é um inculto que diz coisas imbecis, quando, na verdade,
é uma maneira de organizar o mundo.
É interessantíssimo, porque
Guimarães Rosa é valorizadíssimo por ter sabido operar com isso. Aquele mesmo
que se desvanece diante do trabalho que Guimarães fez sobre esse modo de falar
fica horrorizado quando encontra alguém que fala como o Riobaldo. Acho isso
inacreditável. Uma pesquisadora portuguesa fez um estudo sobre as
discriminações sociais no Brasil pelo uso dos provérbios, das sentenças e das
máximas. Ela diz que a classe dominante se dá o direito de produzir máximas,
mas não admite a produção nem de máximas nem de sentenças pelos dominados e
repudia os provérbios. Quando se ouve intelectuais de esquerda a dizer isso,
dói. Dói no estômago.
Voltei
Marilena, a douta professora de filosofia, como se vê, transforma, literalmente, Lula numa divindade, dotado de um saber natural, que ele extrai das pessoas. Não tendo como negar os aspectos obscurantistas da fala do seu líder, ela os atribui, então, ao “povo”. Tem-se, pois, como corolário, e isto está mais do que sugerido na resposta, que criticar Lula corresponde a rejeitar o próprio povo.
Escrevi, à época, um textinho
na revista explicando quem era, afinal, a tal Métis. Reproduzo em azul:
Há algo de curioso, até
engraçado, na associação que a professora Marilena Chaui faz entre a deusa
Métis e Lula. Talvez seja preciso cavoucar um pouco os simbolismos. Métis é o
nome grego de Prudência, a versão latina da deusa que foi a primeira mulher de
Zeus (Júpiter). Foi ela quem deu uma poção a Cronos (Saturno), que o fez
vomitar, junto com uma pedra, todos os filhos que houvera engolido. Zeus a
seduziu. Ao saber que estava grávida e que estava destinada a ter um filho que
seria rei dos deuses e dos homens, ele não teve dúvida: engoliu a mulher
grávida. Passou mal, com uma terrível dor de cabeça. Pediu a Hefestos (Vulcano)
que lhe abrisse o cérebro, e, de dentro, brotou Palas Atena (Minerva), deusa da
sabedoria, da guerra, da ciência e das artes, que tomou assento no conselho dos
deuses e passou a ser a principal conselheira do pai. O pássaro predileto de
Palas Atena é a coruja. Assim como a inteligência ilumina os problemas, os
olhos da ave atravessam a escuridão. Se Lula é mesmo Métis, tomara que se deixe
“engolir”, no melhor sentido possível, pelas instituições e que seja a
democracia o resultado dessa fusão. Por enquanto, o risco de que se torne mero
petisco dos antigos vícios políticos parece grande. Por enquanto, como Cronos,
Lula só engole os próprios filhos — no pior sentido possível.
Concluindo
Era julho de 2003. Lula estava no poder havia apenas sete meses, e a maquinaria ideológica que tentaria transformá-lo num ente acima da política e das paixões humanas já estava em curso — Primeira Leitura estava atenta a ela. Naquele primeiro ano de governo, o Apedeuta enfrentava mesmo era a oposição do petismo, e os principais esteios de Antonio Palocci no Congresso, acreditem!, eram o PSDB e o PFL… Não sem certa razão: os dois partidos resistiam ao PT mais rombudo, que queria fazer bobagem na economia. A oposição fazia bem em dar apoio ao que, afinal, era o mais racional em economia, mas já errava brutalmente ao não politizar as promessas que Lula, felizmente, ia quebrando.
Mas volto a Marilena e ao
mito. Aquele que a petista vê como uma divindade está associado ao que há de
pior na política brasileira e é, em último caso, o arquiteto da chegada de
Renan Calheiros à Presidência do Senado. Vamos ver se o Ministério Público e a
Justiça lhe devolvem a humanidade e o confrontam, finalmente, com parte de sua
obra.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 03-02-2013
Acabo de ler o texto do Reinaldo Azevedo acima.
ResponderExcluirPosso estar muito equivocado, mas se você não tem o poder dos reis de antigamente de mantar prender ou matar na guilhotina alguém, melhor é ignorá-lo. Qualquer menção que você faça a esse ou aquele, estará ajudando a dar cartaz. Melhor é vê-los morrerem do próprio veneno, se enforcarem na própria corda. Eu sempre tive a Professora Marilena Chauí em altíssima conta, sua inteligência e conhecimento, a facilidade que tinha em entender o que não conseguia vindo de outros palestrantes me inebriavam. Sei que é pessoa intratável no convívio, mas, quando fala em palestras em entrevistas não há quem não se encante. Não sei se ainda continua achando as mesmas coisas sobre o apedeuta dez anos depois. Gostaria de acreditar que não. Se continua, penso então que me enganei com ela também. PFdeM
Sinto dizer, mas você se enganou em relação a ela. É intratável, arrogante e petista roxa, e falo isso porque tenho alguém na família que trabalha com ela há anos.
ResponderExcluir