Luiz Inácio Lula da Silva,
quem diria?, recorreu a Lincoln para justificar as safadezas e a sem-vergonhice
do mensalão. O que há de mais interessante nisso? Trata-se, pela primeira vez,
de uma confissão, ainda que feita de alusões e silêncios. Vamos lá.
O Apedeuta compareceu nesta
quarta a um evento em comemoração aos 30 anos da CUT. E, como é de seu feitio,
jogou palavras no ventilador. O homem que já se comparou a Jesus Cristo — a
parte da cruz, é evidente, ele dispensa porque até greve de fome ele furava
chupando escondido balas Juquinha — anda com inveja da notoriedade que Lincoln
voltou a adquirir nos últimos tempos… Que coisa! Quando Barack Obama foi eleito
presidente dos EUA, em 2008, o Babalorixá de Banânia torceu o nariz. Não viu
nada de especial naquilo, não. Grande coisa um negro na Casa Branca! Ele queria
era ver um operário sentar naquela cadeira. Não sei se vocês entenderam a
sutileza do pensamento…
No discurso que fez no
aniversário da central sindical que responde hoje por boa parte do que há de
mais atrasado no Brasil em matéria de corporativismo, que infelicita a vida de
milhões de brasileiros, abusando daquele estilo informal que alça a tolice à
condição de categoria de pensamento, Lula afirmou:
“Nós sabemos o time que temos, sabemos o time dos adversários e sabemos o que eles estão querendo fazer conosco. Acho que a bronca que eles tinham de mim é o meu sucesso e agora é o sucesso da Dilma. Eles não admitem que uma mulher que veio de onde ela veio dê certo porque a onda pega. Daqui a pouco, qualquer um de vocês vai querer ser presidente da República. Essa gente nunca quis que eu ganhasse as eleições. Nunca quis que a Dilma ganhasse as eleições. Aliás, essa gente não gosta de gente progressista. Esses dias eu estava lendo, eu ando lendo muito agora, viu, Gilberto [referia-se a Gilberto Carvalho], o livro do Lincoln e fiquei impressionado como a imprensa batia no Lincoln em 1860. Igualzinho bate em mim. E o coitado não tinha computador. Ele ia para o telégrafo, esperando tic tic tic. Nós aqui podemos xingar o outro em tempo real. (…)”
“Nós sabemos o time que temos, sabemos o time dos adversários e sabemos o que eles estão querendo fazer conosco. Acho que a bronca que eles tinham de mim é o meu sucesso e agora é o sucesso da Dilma. Eles não admitem que uma mulher que veio de onde ela veio dê certo porque a onda pega. Daqui a pouco, qualquer um de vocês vai querer ser presidente da República. Essa gente nunca quis que eu ganhasse as eleições. Nunca quis que a Dilma ganhasse as eleições. Aliás, essa gente não gosta de gente progressista. Esses dias eu estava lendo, eu ando lendo muito agora, viu, Gilberto [referia-se a Gilberto Carvalho], o livro do Lincoln e fiquei impressionado como a imprensa batia no Lincoln em 1860. Igualzinho bate em mim. E o coitado não tinha computador. Ele ia para o telégrafo, esperando tic tic tic. Nós aqui podemos xingar o outro em tempo real. (…)”
Lula já declarou que detesta
ler. Não conseguiu enfrentar sem dormir, segundo confessou, um romance curtinho
de Chico Buarque. Faz sentido. Terá encarado a pedreira de “Lincoln”? Talvez
tenha assistido ao filme de Steven Spielberg, de uma chatice que chega a ser
comovente!!!, e olhem lá… O vocabulário a que recorreu me faz supor que andou
mesmo é lendo briefing de assessoria. Há anos, muitos anos mesmo!, divirto-me
identificando dedicação metódica nas bobagens que diz. Em muitos aspectos, Lula
é a personagem mais “fake” da política brasileira. Todas as coisas estúpidas
que solta ao vento nascem de um cálculo.
A facilidade com que as
asneiras vão brotando de sua boca faz supor uma personagem algo ingênua, que
conserva a autenticidade popular e o frescor natural do povo. Huuummm… Isso
pode agradar a alguns subintelectuais do Complexo PUCUSP, que sonham com esse
misto de torneiro mecânico e Tirano de Siracusa, uma coisa assim de “rei
filósofo que veio da graxa”… Trata-se de uma fantasia! Lula é chefe de uma
máquina que se apoderou do estado brasileiro — e parte considerável dessa
máquina, a sua ala, digamos, heavy metal, é justamente a CUT. Ali
se concentra, reitero, boa parte do atraso brasileiro. Mas retomo o fio.
O vocabulário a que Lula
recorreu é coisa de assessoria mesmo, de briefing. Dinheiro não falta a seu
instituto para contratar sabidos. O livro “Lincoln” a que ele se refere, base
do filme de Spielberg, certamente é a biografia escrita por Doris Kearns
Goodwin, cujo título em inglês é “Team of Rivals: The political Genius
of Abraham Lincoln”. Agora voltemos lá à sua fala. O “team” do presidente
americano era uma “equipe”, mas Lula preferiu a outra acepção, que também serve
para uma disputa futebolística, jogo metafórico em que ele é mesmo imbatível.
No fim das contas, faz tudo parecer uma pelada. Vejam lá: ele diz saber o que
os adversários querem fazer com “eles”, os petistas… Muito provavelmente,
querem ganhar o “jogo”, também entendido, em sua monomania metafórica, por
“eleição”. O nosso “Lincoln” de Garanhuns transforma a pretensão legítima dos
adversários numa espécie de conspiração e ato criminoso. Não por acaso, no dia
anterior, recomendou a FHC que, “no mínimo”, ficasse quieto e colaborasse para
que Dilma fizesse um bom governo. O nosso grande patriarca criminaliza a ação
política de seus oponentes. Ela se confunde com sabotagem.
No discurso, também sobraram
críticas à imprensa, como de hábito. Embora os petistas deem hoje as cartas em
boa parte das redações do país — quando não estão no comando, compõem o caldo
de cultura que transforma bandidos em heróis e, se preciso, heróis em bandidos
—, o nosso o Lincoln de São Bernardo ainda não está contente com a sujeição.
Quer mais. Enquanto restar um texto independente no país, ele continuará a
vociferar contra a “mídia”. Adicionalmente, os petistas contam ainda com a
súcia financiada por estatais que faz seu trabalho criminoso passar por
jornalismo. Vamos ao ponto.
Assumindo o mensalão
O Babalorixá de Banânia comparou-se a Lincoln — a exemplo do que se deu com Cristo, ele também dispensa a parte sacrificial… — no suposto tratamento que a imprensa dispensaria a ambos. Besteira! Parte da imprensa americana apoiava Lincoln, parte não. A geografia da guerra civil, é evidente, pautava em boa medida críticas e elogios. Uma coisa é certa: jamais ocorreu ao presidente americano tentar censurá-la, como fez Lula no Brasil mais de uma vez. Até porque não conseguiria. Estava empenhado na aprovação da 13ª Emenda, a que proíbe a escravidão nos EUA, mas subordinado à Primeira Emenda, a que impede a censura do Estado. O Congresso não pode nem mesmo legislar a respeito de limites à liberdade de expressão.
A alusão a Lincoln, de fato,
remete a outra coisa, bem mais dolosa do ponto de vista intelectual, ético,
moral, político e histórico. A relação de Lula e dos petistas com o mensalão
passou por diversas fases. Houve a primeira, a da admissão do erro, com pedido
de desculpas. Durou pouco. Veio em seguida a acusação de “golpe das elites”,
forjada por um oximoro reluzente: “intelectuais petistas”. Depois, chegou a da
negação: “O mensalão nunca existiu”. E agora estamos diante da quarta, e é
neste ponto que Lula decidiu pegar carona na vida de Lincoln: os crimes dos
mensaleiros teriam sido atos heroicos.
Como assim?
O republicano Lincoln, e o
filme dá grande destaque a essa passagem, retardou o fim da guerra civil para
poder aprovar a 13ª emenda, que proibiu a escravidão no país, e, sim,
literalmente comprou o apoio de alguns democratas, especialmente de
congressistas que não tinham sido reeleitos. A moeda principal foram cargos no
governo federal, mas também houve dinheiro. Eis aí: é precisamente nesse ponto
que Lula pretende, no que me parece uma forma de confissão, colar a sua
biografia à do presidente americano.
Eis um debate interessante,
que remete a fundamentos da moral individual e da ética pública: a transgressão
de um princípio para pôr fim a uma ignomínia, como a escravidão, é aceitável?
Ao comprar o voto daqueles parlamentares com um propósito específico, de que
outros males — imaginem aí — Lincoln estava livrando os EUA? No mínimo, pode-se
supor que o fim do conflito poria termo apenas ao primeiro ciclo da guerra
civil, porque outro estaria sendo contratado. Um fundamento ético ou moral, que
é sempre abstrato, revela a sua força quando aplicado. Vamos ao exemplo mais
elementar: todos sabemos que é errado matar como princípio geral, mas nem por
isso cabe hesitação quando há apenas duas alternativas: matar ou morrer. Se não
matar vira sinônimo de morrer, matar, então, é a única alternativa de que
dispõe a vida. Nesse caso, anula-se a diferença moral entre não matar e matar.
É por isso que a ética da guerra — e ela existe —, por mais que pareça funesta
(e, em certa medida, é mesmo), modula os modos da morte.
A política não é, e nunca foi,
um exercício de santos. Com frequência, governantes os mais virtuosos tiveram
de recorrer a expedientes que nem sempre foram de seu agrado para realizar
tarefas necessárias que, de outra sorte, não se realizariam. No mundo da ética
e da moral aplicadas, muitas vezes somos obrigados — e o governante mais do que
do que qualquer um de nós — a escolher o mal menor porque o nosso princípio
abstrato já não encontra lugar na realidade corrompida. Apelando a uma
dicotomia conhecida, de Max Weber, nem sempre a ética da responsabilidade, que
é a do homem público, atende a todas as exigências da ética da convicção, que é
a do indivíduo.
Voltemos a Lula. Por que mesmo
o seu partido fez o mensalão? Com que propósito? Se o ato de Lincoln não era,
em si (e não era!), um exemplo de pureza e não poderia, pois, aspirar à
condição de uma norma abstrata (“compre parlamentares sempre que precisar”),
seu desdobramento prático livrou os EUA de diabólicos azares — além,
evidentemente, de conferir mais dignidade a milhões de pessoas submetidas à
ignomínia da escravidão. O peculatário que enfiou a mão em quase R$ 80 milhões
do Banco do Brasil pretendia o que mesmo? Aquela súcia de vagabundos que roubou
dinheiro público estava a serviço de que causa?
Lincoln tinha em mente um
país, e não foi sem grande sofrimento pessoal — até o sacrifício final — que
levou adiante o seu intento. Estava, efetivamente, consolidando uma república
federativa. O mensalão, ao contrário, os fatos falam de forma eloquente, foi
uma tentativa de golpear as instituições e de transformar a compra de votos
numa rotina. Estava em curso a formação de um Congresso paralelo e de uma República
das sombras.
Não deixa de ser interessante
que Lula tenha feito esse discurso asqueroso na CUT. Não se esqueçam de que,
nas lambanças do mensalão, ficamos sabendo que a turma queria usar a central
sindical para criar um… banco dos companheiros! Eis o nosso Lincoln! Aquele
atuou para pôr fim à vergonha da escravidão. O nosso, para criar um modelo que
eternizasse o seu partido no poder.
Lula deveria, no mínimo, ficar
de boca fechada.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 28-02-2013
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