Já tivemos as gravuras de Foz Côa que não sabiam nadar e o cinema São
Jorge que de modo algum podia ser palco das orações da IURD.
Agora temos os Miró e a
cruzada pelo cinema Londres. Nada disto tem a ver com cultura. Tem muito a ver
com política e naturalmente com incultura. Ou melhor dizendo com ignorância
pois é necessária uma forte dose de ignorância para acreditar nas patranhas com
que alguns dos auto-denominados defensores da cultura nos atazanam os dias.
Com aquele tom algures entre o
beato e o activista os defensores da cultura caracterizam-se por naturalmente
se considerarem mais cultos que os outros e sobretudo por não terem qualquer
pejo em invocar razões que noutro contexto causariam escândalo - o cinema
Londres não pode ser loja de produtos chineses porque as lojas de produtos
chineses são pirosas tal como no São Jorge não podia entrar aquela gente sem cachet que frequenta a IURD. Do cinema
Londres não se sabe como acabará o caso embora seja garantido que toda a
artilharia burocrática será usada pela CML para manter o cinema Londres como
está: uma sala fechada ou, pior ainda, fazer dele um novo São Jorge.
Ou seja, torna-se propriedade
da CML e continuou a ser sala de cinema se por tal se entender existir a sala e
contratarem-se serviços e equipamentos para a sala. Só é pena é que não haja
cinema propriamente dito. À excepção de uns festivais que podiam ser realizados
em qualquer outro espaço, a frase "Não existem filmes em cartaz neste
cinema" é a que mais se encontra quando se procura saber que filme pode
ser visto no S. Jorge. Mas, como dirá a brigada da cultura, ainda bem que
salvámos o S. Jorge para a cidade!
No mundo dos activistas da
cultura, salvar significa criar legislação que mumifica o que se pretende
preservar. Simultaneamente criar-se uma equipa multidisciplinar com vista a
gerir o bem protegido. Depois vêm os estatutos do parque, museu, empresa
pública... com vista a tratar da coisa protegida. Também se tem de nomear um
presidente e respectiva equipa e manda-se fazer papel timbrado. Por fim
descobre-se que não há público e reivindica-se mais dinheiro para atrair e
formar novos públicos. E assim com a coisa já institucionalizada, ou seja
reduzida a uma vida orçamental que é a verdadeira vida cultural da maior parte
dos espaços ditos culturais deste país, lá partem os frenéticos activistas para
mais uma cruzada pela cultura.
![]() |
Imagem: Henrique Matos |
De tão banal nada disto
espanta. O que espanta ou devia espantar é a candura com que a cada agitação da
brigada cultural o País cai invariavelmente no conto do vigário, ou mais
culturalmente falando na fantasia constituída pelos amanhãs culturalmente
cantantes desenhados pelos brigadistas: a Foz Côa viriam 300 mil turistas por ano. E esses 300 mil turistas iam animar
hotéis, restaurantes, centros culturais e lojas que por sua vez criariam
milhares de postos de trabalho. Daí resultaria uma espécie de revolução no
interior... Enfim só pessoas muito estúpidas, muito ignorantes e, claro, muito
reaccionárias, porque as pessoas progressistas nunca são estúpidas nem ignorantes,
podiam defender a construção da barragem e impedir esta viragem. Como se sabe
os turistas não vieram (e os que vieram juraram não voltar!) e tudo não
passaria de uma poética e cultural bola de sabão desfeita no ar caso não se
tivesse atirado para o lixo o investimento já feito na barragem e optado fazer
outra - achavam por acaso que ela não seria construída? - num outro rio, o
Sabor, cujo património ambiental era esse sim muito relevante.
(Em 2007, cerca de 16 500
pessoas visitaram o Parque Arqueológico do Vale do Coa.)
Esta mesma contabilidade
feérica dos aviões cheios de visitantes chega-nos agora a propósito dos quadros
de Miró da colecção BPN. Só mesmo quem não entra num museu em Portugal há muito
tempo e vive em completo desinteresse - sim desinteresse - pela pintura pode
acreditar naquelas miragens do público em fila para ver 85 quadros de Miró.
Enfim, a sem razão do assunto
é por demais evidente mas creio contudo que continuaremos a pagar barragens
começadas que depois têm de ser abandonadas por causa de umas gravuras que
afinal não eram o que se julgava ser, a sustentar salas que foram de cinema e
agora não são de coisa alguma, a fazer espaços culturais sem outro interesse
que o de alimentar clientelas partidárias... Afinal os brigadistas culturais,
tal como os especuladores financeiros, vivem do mesmo negócio: atribuem um
valor especulativo a um bem e os outros que o paguem. É o chamado negócio
perfeito. Para eles, claro.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 11-02-2014
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