terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Almas gémeas

Helena Matos
Já tivemos as gravuras de Foz Côa que não sabiam nadar e o cinema São Jorge que de modo algum podia ser palco das orações da IURD.

Agora temos os Miró e a cruzada pelo cinema Londres. Nada disto tem a ver com cultura. Tem muito a ver com política e naturalmente com incultura. Ou melhor dizendo com ignorância pois é necessária uma forte dose de ignorância para acreditar nas patranhas com que alguns dos auto-denominados defensores da cultura nos atazanam os dias.

Com aquele tom algures entre o beato e o activista os defensores da cultura caracterizam-se por naturalmente se considerarem mais cultos que os outros e sobretudo por não terem qualquer pejo em invocar razões que noutro contexto causariam escândalo - o cinema Londres não pode ser loja de produtos chineses porque as lojas de produtos chineses são pirosas tal como no São Jorge não podia entrar aquela gente sem cachet que frequenta a IURD. Do cinema Londres não se sabe como acabará o caso embora seja garantido que toda a artilharia burocrática será usada pela CML para manter o cinema Londres como está: uma sala fechada ou, pior ainda, fazer dele um novo São Jorge.


Ou seja, torna-se propriedade da CML e continuou a ser sala de cinema se por tal se entender existir a sala e contratarem-se serviços e equipamentos para a sala. Só é pena é que não haja cinema propriamente dito. À excepção de uns festivais que podiam ser realizados em qualquer outro espaço, a frase "Não existem filmes em cartaz neste cinema" é a que mais se encontra quando se procura saber que filme pode ser visto no S. Jorge. Mas, como dirá a brigada da cultura, ainda bem que salvámos o S. Jorge para a cidade!

No mundo dos activistas da cultura, salvar significa criar legislação que mumifica o que se pretende preservar. Simultaneamente criar-se uma equipa multidisciplinar com vista a gerir o bem protegido. Depois vêm os estatutos do parque, museu, empresa pública... com vista a tratar da coisa protegida. Também se tem de nomear um presidente e respectiva equipa e manda-se fazer papel timbrado. Por fim descobre-se que não há público e reivindica-se mais dinheiro para atrair e formar novos públicos. E assim com a coisa já institucionalizada, ou seja reduzida a uma vida orçamental que é a verdadeira vida cultural da maior parte dos espaços ditos culturais deste país, lá partem os frenéticos activistas para mais uma cruzada pela cultura.

Imagem: Henrique Matos
De tão banal nada disto espanta. O que espanta ou devia espantar é a candura com que a cada agitação da brigada cultural o País cai invariavelmente no conto do vigário, ou mais culturalmente falando na fantasia constituída pelos amanhãs culturalmente cantantes desenhados pelos brigadistas: a Foz Côa viriam 300 mil turistas por ano. E esses 300 mil turistas iam animar hotéis, restaurantes, centros culturais e lojas que por sua vez criariam milhares de postos de trabalho. Daí resultaria uma espécie de revolução no interior... Enfim só pessoas muito estúpidas, muito ignorantes e, claro, muito reaccionárias, porque as pessoas progressistas nunca são estúpidas nem ignorantes, podiam defender a construção da barragem e impedir esta viragem. Como se sabe os turistas não vieram (e os que vieram juraram não voltar!) e tudo não passaria de uma poética e cultural bola de sabão desfeita no ar caso não se tivesse atirado para o lixo o investimento já feito na barragem e optado fazer outra - achavam por acaso que ela não seria construída? - num outro rio, o Sabor, cujo património ambiental era esse sim muito relevante.
(Em 2007, cerca de 16 500 pessoas visitaram o Parque Arqueológico do Vale do Coa.)

Esta mesma contabilidade feérica dos aviões cheios de visitantes chega-nos agora a propósito dos quadros de Miró da colecção BPN. Só mesmo quem não entra num museu em Portugal há muito tempo e vive em completo desinteresse - sim desinteresse - pela pintura pode acreditar naquelas miragens do público em fila para ver 85 quadros de Miró.

Enfim, a sem razão do assunto é por demais evidente mas creio contudo que continuaremos a pagar barragens começadas que depois têm de ser abandonadas por causa de umas gravuras que afinal não eram o que se julgava ser, a sustentar salas que foram de cinema e agora não são de coisa alguma, a fazer espaços culturais sem outro interesse que o de alimentar clientelas partidárias... Afinal os brigadistas culturais, tal como os especuladores financeiros, vivem do mesmo negócio: atribuem um valor especulativo a um bem e os outros que o paguem. É o chamado negócio perfeito. Para eles, claro.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 11-02-2014

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