As quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião
para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras
realizadas em seu nome
A Constituição de 1988 tem 250
artigos e já sofreu 99 emendas. Por sua vez, a Constituição dos EUA, que tem 7
artigos, recebeu apenas 27 emendas ao longo de 230 anos. A comparação foi feita
pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor de Direito da
USP, Eros Grau, durante o primeiro Fórum Estadão – A Reconstrução do Brasil.
Também participaram do debate sobre a Constituição o professor de Direito da
FGV-RJ Joaquim Falcão e o ex-presidente do STF Nelson Jobim.
No debate, foram discutidas
algumas consequências da excessiva amplidão da Constituição de 1988. Como
exemplo, Joaquim Falcão mencionou o fato de a Carta Magna ter 32 artigos
relativos ao funcionalismo público e apenas 1 referente ao trabalhador privado.
Com isso, o funcionário público tem 16 vezes mais chances de levar suas
demandas para julgamento pelo STF em comparação com o trabalhador do setor
privado. “Os funcionários públicos constitucionalizaram todas as suas pretensões
durante a Constituinte”, disse Falcão.
“Precisamos fazer uma
lipoaspiração na Constituição”, disse Jobim. Para ele, o excesso de regras
constitucionais dificulta a governabilidade, alimentando o presidencialismo de
coalizão, que torna o Poder Executivo refém do Congresso e abre caminho para a
corrupção. Sendo a Constituição muito ampla, com frequência o governo precisa
fazer emendas constitucionais, o que requer maioria de três quintos no
Congresso.
Nelson Jobim lembrou que as
dificuldades para compor a maioria durante a Assembleia Constituinte levaram à
redação ambígua de muitos artigos, já que assim era mais fácil obter a sua
aprovação. No entanto, essa solução, que apenas adiou o problema, foi ocasião
para que o Judiciário fizesse interpretações muito além do conteúdo aprovado em
1988.
O debate possibilitou evidenciar, uma vez mais, que os principais problemas da Constituição de 1988 não são decorrência apenas das deficiências do seu texto. Eles deixaram claro que o Poder Judiciário vem aplicando mal a Constituição, com criações interpretativas que não têm fundamento no texto votado pela Constituinte.
Joaquim Falcão lembrou que o
cumprimento da Carta Magna é tarefa dos Três Poderes, não apenas do Judiciário.
“O poder moderador não é o Supremo”, disse. “O Legislativo interpreta a
Constituição para fazer suas leis e o Executivo interpreta a Constituição ao
regulá-la através das agências. A Constituição é sua aplicação.” Ou seja, o STF
não é o proprietário da Constituição.
Eros Grau avaliou que “o STF
se transformou num grande espetáculo televisivo”, em contraste com o que se vê
em outros países. O professor do Largo São Francisco citou como exemplo a
França, onde os integrantes da Corte constitucional não desfrutam de qualquer
protagonismo perante a opinião pública.
“O Supremo tem que ser um
órgão plenário, e não um órgão de soma de vontades e conflitos individuais,
como está acontecendo”, disse Nelson Jobim. Ele defendeu que o Judiciário deve
apenas aplicar a lei. “Ele não pode ser o elemento arbitrador dos interesses da
sociedade”, afirmou.
Como comentou Joaquim Falcão,
integrantes do Supremo têm desrespeitado o processo decisório, descumprindo,
por exemplo, o prazo para a devolução das vistas de um processo. Tais descuidos
procedimentais têm graves consequências. Com isso, decisões liminares, que são
monocráticas, ganham uma perenidade que não deveriam ter, aumentando, fora da
lei, o poder discricionário de cada ministro. É o caso das liminares do ministro
Luiz Fux concedendo auxílio-moradia a juízes e procuradores. Poucas vezes se
viu tamanho prejuízo aos cofres públicos por força de uma única canetada. A
atuação de integrantes do STF fora dos cânones regimentais, tardando o fim do
processo, também alimenta a imprevisibilidade. O Supremo, que deveria ser a
segurança da lei, passa a ser, assim, causa de insegurança jurídica.
As quase três décadas da
Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua
aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome. Por ser fundamento
do Estado Democrático de Direito, ela impõe que o poder estatal seja sempre
exercido com responsabilidade e controle. É, por isso, que a última palavra
deve ser sempre dela.
Título e Texto: Editorial, O Estado de S.Paulo, 3-3-2018
Título e Texto: Editorial, O Estado de S.Paulo, 3-3-2018
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