segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Os caça-fantasmas

Helena Matos

Portugal não tem fascistas que cheguem para encher uma pequena praça ou até a Rua da Betesga, mas tem cada vez mais dependentes do fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos caça-fantasmas

A reação à ida de Mário Machado ao programa de Manuel Luís Goucha veio lembrar-nos o óbvio: o fim da censura prévia em abril de 1974 não encerrou de modo algum, em Portugal, o capítulo do controlo das ideias e das opiniões. Entre nós, tudo é censurável desde que essa censura seja feita em nome do antifascismo. Daí que, sem nos alongarmos muito, a lista de tudo aquilo que em determinado momento foi arredado do écran em nome do combate ao fascismo se assemelhe a uma programação de fim-de-semana: o fado foi fascista, o Festival da Canção idem e até a decisão da RTP, em 1976, de exibir a “Aldeia da Roupa Branca” e o “Pátio das Cantigas” motivou sérios receios de regresso ao fascismo. Debater a Reforma Agrária era dar a mão ao fascismo. Informar simplesmente que os retornados existiam foi durante vários meses sinónimo de fascismo, racismo e colonialismo…

Portugal, ironia das ironias, não tem fascistas que cheguem para encher uma pequena praça ou até a Rua da Betesga, mas tem cada vez mais dependentes do fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos caça-fantasmas. Sem a capa do antifascismo revelar-se-ia o que de facto são: uns querem ser ditadores, outros servi-los. Para uns o antifascismo remete-os para um passado que os preserva de se confrontarem com aquilo em que se transformaram no presente. Para outros, o antifascismo é uma táctica de exercício de poder. E para outros, de ideais tão ou mais ditatoriais que os do fascismo propriamente dito, o antifascismo é uma peça na sua estratégia de controlo sobre as sociedades, independentemente dos votos que obtiveram e vierem a obter. Por isso, todos os dias, várias vezes por dia, todos eles, por necessidade e interesse, aí andam à caça de fascistas, vasculhando fascistas, inventando fascistas, combatendo fascistas. E para o caso tanto dá que Mário Machado se diga ou não fascista, ou saiba sequer o que foi o fascismo, que já agora, acrescente-se, não é sinónimo de salazarismo. O espantalho do fascismo grosseiramente confundido com salazarismo, tornou-se a saída ideológica de emergência para um regime que depois do discurso sobre a “longa noite” e da riqueza que havia de vir da CEE ficou sem outro projeto para Portugal que não seja o do desenrascanço imediato frequentemente na sua versão mais grotesca.

Os mais vulgares são os antifascistas por escape ou transferência. São aqueles que quanto mais dobram a espinha, perante o comportamento anómalo dos chefes, candidatos a chefes, líderes que se dizem animais ferozes e outros espécimes do poder pós-74, mais se fixam na figura de Salazar. Precisam de Salazar e das histórias sobre a estupidez dos censores do Estado Novo para não se confrontarem com o que agora calam. Vivem como se tivessem engolido o lápis outrora azul, mas que nos meandros do seu corpo passou a vermelho. O antifascismo é neles uma necessidade algures entre a ética e a oftalmologia: enquanto falam de Salazar, de cada vez que procuram criar empatia pronunciando “salazarento”, evitam confrontar-se com o seu rosto no espelho e sobretudo evitam pronunciar-se sobre o pântano, no sentido guterriano do termo, em que a sua falta de coragem e alguma avidez transformaram o regime democrático.

Depois temos os antifascistas por táctica: roubam-se armas em quartéis, a Lei de Programação Militar vai ser discutida em menos de uma hora no parlamento e sobre o que se pronuncia o ministro da Defesa? Sobre o programa de Manuel Luís Goucha! O ministro João Gomes Cravinho até achou por bem no país que viveu os incêndios de 2017 – aqueles em que o governo de que faz parte teve um desempenho miserável – comparar o convite a Mário Machado por parte da TVI com a atitude “de quem ateia incêndios pelo prazer de ver a labaredas”. Tocante, não foi?

É precisamente esta ausência de memória e de senso, que quase nos faz acreditar que estamos num mundo de absurdos, uma das característica do antifascismo táctico: arma-se um escândalo porque Mário Machado, defensor de ideais não democráticos pelos quais os portugueses mostram um enorme desinteresse, vai a um programa televisivo, mas mal se ouve uma palavra contra decisões autoritárias do Governo que agora, por exemplo, pressiona OCDE a mudar capítulo sobre corrupção (tão fofinhos os títulos que dizem estar Governo e OCDE “às turras” por causa da corrupção, como se tudo não passasse de uma birrinha infantil).

Muito menos se sussurra uma ligeira perplexidade pelo facto de o mesmo governo ter recusado os nomes selecionados pela Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) para o cargo de Director-Geral da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, com o argumento expresso em despacho da secretária de Estado da Administração Pública, Fátima Fonseca, de que entre os não indicados pela CRESAP fora identificado “um candidato com um perfil mais compatível com as orientações estratégicas definidas”. Que interessante. E já agora o “candidato com um perfil mais compatível” foi identificado por quem?

Pela CRESAP não, certamente, que não o selecionou. Terá sido pela secretária de Estado da Administração Pública, Fátima Fonseca? Em conclusão, ou os preteridos no concurso conseguem que alguém acuse de fascismo o “candidato com um perfil mais compatível com as orientações estratégicas definidas” ou nada feito! Mas sejamos realistas: o que é a opacidade em torno da escolha do futuro diretor-geral da Direção-geral da Administração e do Emprego Público ao pé da seleção dos convidados para o programa de Manuel Luís Goucha?! Nada! Nadinha. (Aliás o problema de Mário Machado não são as tolices que diz, mas tão só o facto de as suas tolices não se enquadrarem nas “orientações estratégicas definidas”.)

Por fim, mas não por último, temos os antifascistas por estratégia. Gente que usa a expressão antifascista como um colete à prova de perguntas. Muitos deles, a maior parte, mostra uma extraordinária simpatia pelos autoritarismos marxistas. A sua estratégia é simples: impõem o seu poder através da diabolização da divergência. Por isso eles não debatem, em vez disso adjetivam e compõem um mundo pejado de fascistas, racistas, homofóbicos (conhecendo o que esta gente disse e fez nesta matéria é caso para rir e chorar ao mesmo tempo), machistas… discordar deles implica ser passado automaticamente para o paradigma do odioso do momento.

Podia pensar-se que anos e anos de democracia nos tinham libertado do fascismo. Nada mais falso. Cada vez mais o fascismo – enquanto espantalho – se torna indispensável. Não duvido que o número de fascistas vai crescer exponencialmente nos próximos tempos. Não porque o senhor Mário Machado obtenha mais votos, mas sim porque, numa irrefutável prova de que Deus escreve direito por linhas tortas, o PS terá maioria absoluta nas próximas eleições e, portanto, os estalinistas, trotskistas e maoístas de cujo apoio o PS agora depende, vão dedicar-se a recuperar os votos perdidos. Como? Combatendo o fascismo. O do governo, naturalmente.

P.S.: Em Portugal, passam pelas televisões, rádios e jornais vários acusados, suspeitos e condenados por crimes de violência, terrorismo, sequestro. O Sindicato dos Jornalistas não se manifesta contra, nem aliás deveria fazê-lo. Que o faça a propósito de Mário Machado é o viés habitual. Mas ideologia à parte sempre podia o SJ aproveitar para tirar algo de proveitoso deste caso. Como? Mostrando a muitos jornalistas como Manuel Luís Goucha se prepara para as entrevistas que faz e como de facto conhece os livros de que fala. Preparação essa que falta a inúmeros jornalistas.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 6-1-2019

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