sábado, 11 de setembro de 2010

Nova Iorque e a América divididas nove anos depois do 11 de Setembro

Kathleen Gomes, Público, em Nova Iorque, 11-09-2010

A perspectiva de abrir uma "mesquita" junto do Ground Zero trouxe as emoções à flor da pele

"Guerra santa em torno do 11 de Setembro", era ontem o título do tablóide New York Post. A perspectiva de ter um centro islâmico a dois quarteirões do Ground Zero, em Nova Iorque, está a dividir a América, não necessariamente em partes iguais.

Ground zero 15 dias depois do atentado. 
O 11 de Setembro é hoje ainda uma ferida aberta
 no coração de Nova Iorque e dos americanos (Reuters)
Emoções à flor da pele, a favor ou contra "a mesquita", como se tornou comum designar o projecto, a bem da simplificação ou de uma rejeição mais imediata. Onze de Setembro costumava ser uma data de reconciliação em que os americanos, incluindo os políticos, punham de lado as suas divergências por um dia, escrevia anteontem a revista alemã Der Spiegel, mas não este ano. Este ano o ar é pesado como o cheiro a gasolina e o fervor cristão é distribuído em panfletos à multidão compacta que atravessa as ruas adjacentes ao Ground Zero: "Você tem esperança em Cristo hoje?" Um homem de sotaque irlandês, pintor de casas, desenhou o seu próprio projecto para o Ground Zero, um perímetro onde cada religião teria o seu espaço de oração - budistas, hindus, sikhs, confucionistas, muçulmanos, judeus, etc. -, fez fotocópias e está a distribuí-las a quem passa. Os nova-iorquinos discutem à mesa dos cafés e descobrem que os amigos e familiares não estão do mesmo lado no debate.
Nem toda a gente está onde se espera na cadeia de reacção ao centro islâmico. Como a mãe que perdeu a filha, grávida de quatro meses, no World Trade Center, há nove anos. "É a única coisa na minha vida que não posso corrigir", diz Donna Marsh O"Connor, porta-voz de um grupo de famílias de vítimas do 11 de Setembro, 9/11 Families for Peaceful Tomorrows. "Perdi a minha filha numa pilha de detritos e cinzas e, independentemente do que nos dizem sobre quem é culpável, quando se é pai ou mãe e uma coisa destas acontece, sentimos que abandonámos o nosso filho ou filha ali."
Donna O"Connor tem aparecido publicamente a defender a construção do centro islâmico junto ao Ground Zero. Quando a controvérsia começou, um dos argumentos invocados na oposição ao projecto foi o respeito pela sensibilidade das famílias das vítimas do 11 de Setembro. "Senti que tínhamos absolutamente de tomar uma posição pública quando outra organização de famílias do 11 de Setembro emitiu um comunicado cheio de retórica inflamatória e factos não-confirmados. Nós achámos que era nossa responsabilidade dizer: "Vocês não representam todas as famílias do 11 de Setembro. Não concordamos."Professora de Retórica na Universidade de Syracuse, Donna defende o centro islâmico porque, como escreveu num artigo de opinião no Huffington Post, "isso é americano". "Este não é um debate sem importância, porque o que está em causa é a natureza do que é ser americano", explica ao PÚBLICO. "Será que estamos à altura dos nossos princípios e dos mitos que enformam a concepção que temos de nós próprios? Não é fácil viver num país que procura co-existir. E eu acho que a América é fundamentalmente isso. Recordo-me de uma das minhas alunas dizer, há uns anos: "O que a América tem de interessante está na lista telefónica. Se há uma coisa em que concordamos é que não nos percebemos uns aos outros porque vimos dos sítios mais diferentes." E ela achava que isso era uma coisa maravilhosa. Isto passou-se muito antes do 11 de Setembro, quando ainda podíamos falar de raça e etnia e ter conversas sem nos atirarmos logo à jugular."
No clima já particularmente dividido em que a América vive por estes dias - agravado pelo estado da economia, pela retórica "nós contra eles" que existe entre conservadores e liberais, por uns media altamente comprometidos com um lado ou o outro e por um descontentamento crescente com a presidência de Obama -, o centro islâmico junto ao Ground Zero tornou-se o mais recente tema de uma conversa de surdos. "Encaremos os factos: nós somos uma nação relativamente jovem", diz Donna. "Duzentos anos é pouco tempo para um país. E temos discutido com os padrões retóricos do típico adolescente. Agarramo-nos às nossas posições fixas e procuramos dados para fundamentar essas posições, em vez de verdadeiramente ler informação e só depois tirar conclusões."
Enquanto familiares de vítimas dos ataques do 11 de Setembro, espera-se naturalmente que pessoas como Donna Marsh O"Connor tenham outra opinião."No dia em que comunicámos publicamente a nossa posição pela primeira vez, recebi oito e-mails de familiares das vítimas que não concordavam connosco. E recebi um telefonema duro de uma mulher que me perguntou se eu era ateia. Um dos nossos membros é uma muçulmana americana e ela recebeu ameaças de morte. Mas devo dizer que ninguém deixou o nosso grupo por causa da nossa posição. Pelo contrário, várias pessoas juntaram-se a nós devido a ela."

Estados Desunidos
A rabina Bonnie Steinberg, directora dos serviços religiosos de um lar e centro hospitalar para idosos no Bronx - "Tem a certeza de que quer vir ao Bronx?", pergunta Bonnie, como se o Bronx, predominantemente negro e latino, fosse o fim do mundo -, talvez seja também dessas pessoas que se encontra do lado inesperado da controvérsia. Várias organizações judaicas em Nova Iorque manifestaram-se a favor da construção do centro islâmico, e Bonnie trouxe o recorte do Washington Post em que dois influentes rabis explicam "Por que devem os judeus apoiar a mesquita junto do Ground Zero" (título do artigo). "A Primeira Emenda [da Constituição americana], que estabelece a separação entre Igreja e Estado, beneficiou a comunidade judaica ao longo das décadas que temos vivido aqui." Os imigrantes judeus também foram vítimas de perseguição e de discriminação nos Estados Unidos até ao fim da II Guerra Mundial. "Para mim, basta isso para apoiar o desenvolvimento deste centro cultural e religioso [islâmico], porque eu sei quão importante ele tem sido para a comunidade judaica."
Para cada argumento contra o estabelecimento do centro islâmico próximo do Ground Zero tem havido um argumento a favor. Se alguém diz que é no Ground Zero, há sempre alguém que diz que não é no Ground Zero. Se alguém diz que é uma mesquita, há quem reforce que é um centro islâmico e inter-religioso. 
Para Gary Marlon Suson, que faz parte de uma associação de bombeiros e que foi o único fotógrafo oficial que documentou os trabalhos de limpeza e recuperação do Ground Zero nos meses que se seguiram aos ataques, os media têm enquadrado a discussão "em termos de preto e branco", quando na verdade é "uma área cinzenta". Para ele, que fundou uma espécie de museu amador no bairro de Chelsea, em Nova Iorque, com artefactos recolhidos no Ground Zero e as fotografias que tirou no local, o que interessa é o que as famílias das vítimas pensam. "Se ter uma mesquita naquela zona vai perturbar os familiares, penso que é uma má ideia. Se eles estiverem de acordo, então eu também estou de acordo."
Mas não existe um só grupo de famílias das vítimas nem uma posição uniforme. Para Tim Sumner, co-fundador da organização 9/11 Families for Safe & Strong America, que esteve por trás do protesto de há duas semanas em Nova Iorque contra "a mesquita", "isto é o mesmo que plantar uma bandeira do islão num lugar onde os muçulmanos mataram 2976 pessoas". Para Sumner, que perdeu o cunhado, um bombeiro, no ataque às Torres Gémeas, a área projectada para "a mesquita" faz parte do Ground Zero. "Houve restos humanos que foram encontrados em vários telhados à volta, e tão longe quanto o East River." E o edifício em causa, a dois quarteirões do perímetro geográfico do Ground Zero, foi atingido pelo trem de aterragem de um dos aviões, que destruiu dois pisos, lembra. 
Mas, para este antigo sargento do exército americano, a questão é mais lata. "A nossa Constituição tem como base a liberdade religiosa, tanto quanto a protecção de qualquer religião. Dito de outro modo, nenhum governo pode impor-nos uma religião. Nenhuma religião pode ter preponderância sobre outra. Mas veja o que se está a passar em Inglaterra: as escolas públicas começaram por servir refeições halal, de acordo com os preceitos islâmicos, como opção, e agora elas estão a tornar-se obrigatórias para todos os alunos, quer sejam muçulmanos quer não. E estamos a começar a ver essas mesmas exigências serem feitas nas escolas americanas."Natural da Indonésia, Mohammed Shamsu Ali, um homem pequeno num fato cinzento, é o imã da maior mesquita de Nova Iorque, no Upper East Side, que congrega entre três a quatro mil muçulmanos. Doutorado em Ciência Política, Shamsu Ali tem um trabalho em part-time nas Nações Unidas como especialista em questões relacionadas com o Médio Oriente. Ele desvia o olhar quase sempre que fala connosco. "As consequências do 11 de Setembro foram enormes para a comunidade muçulmana. Temos sido alvo de suspeita, as nossas comunidades têm estado sob vigilância de muitas maneiras e existem várias leis destinadas a limitar os movimentos dos muçulmanos - por vezes, por causa dos nossos nomes, não é muito fácil viajar. Portanto, nós temos sido as vítimas do 11 de Setembro, mais do que quaisquer outras pessoas. Nós percebemos os sentimentos e as emoções das famílias das vítimas, mas acreditamos que este centro terá um importante papel na cura dessas feridas."
Apesar de tudo, Shamsu Ali acredita que a polémica é temporária. "Isto tem a ver com a aproximação das eleições [para o Congresso americano]. Muitos conservadores estão a tentar ganhar o apoio dos americanos que não sabem nada sobre os muçulmanos. Michael Bloomberg [presidente da Câmara de Nova Iorque] disse-me no outro dia: "Espere até ao dia das eleições, 3 de Novembro, e tudo ficará mais calmo."
Regresso a  Ground  Zero
Nova Iorque não recuperou dos ataques de 11 de Setembro? "Eu pensava que sim - até agora", diz Thomas McKean, no seu apartamento na boémia East Village. Artista e escritor, Tom é um desses raros nova-iorquinos nascidos na cidade. E que continua a acreditar nas características únicas de Nova Iorque, numa diversidade étnica, religiosa e linguística que diariamente convive no aperto do metro e dos autocarros da cidade. Voltando ao 11 de Setembro: "Os ossos estão curados. Pode não saltar com esse pé, mas consegue andar em frente. As feridas ficam sempre mais vulneráveis quando o aniversário está perto. Acho que, se este furor tivesse surgido em Janeiro, por exemplo, as pessoas estariam menos angustiadas com o assunto."
Tom viu as torres caírem do terraço do edifício onde mora. "Foi uma coisa inacreditavelmente horrível. Até morrer, acho que vou lembrá-lo todos os dias. Por isso, não é para mim uma questão ligeira. Mas estar tão activamente contra esta mesquita ou centro, ou lá como se chama, é uma coisa que nos faz olhar para trás. E acho que esta era uma oportunidade para mostrarmos - suponho que sou muito patriótico quando se trata de Nova Iorque - que somos melhores do que muitos outros lugares."
Donna Marsh O'Connor não vai estar hoje no Ground Zero, na cerimónia de aniversário do 11 de Setembro, em que participam famílias das vítimas. Diz que não foi convidada e, mesmo que tivesse sido, não iria. "Quando volto àquele lugar consigo sentir o cheiro. Qualquer pessoa que tenha lá estado [a seguir aos ataques] fala do cheiro. Um cheiro amargo, salgado, a queimado. Um cheiro que perdurou meses. Nunca gostei da Baixa de Manhattan. Não gosto de partes da cidade onde os arranha-céus eclipsam os seres humanos. Nunca adorei o World Trade Center, sempre senti que era demasiado quente no Verão e demasiado brutal no Inverno. A Venessa [filha de Donna, que trabalhava no World Trade Center] adorava, e adorava a altura dos edifícios, e o Windows on the World [restaurante no topo de uma das torres]. Ela acreditava que podia ver o mundo inteiro dali, tinha um peso mítico para ela. E ambos nasceram juntos, em 1971."

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