domingo, 26 de setembro de 2010

Um milagre chamado Brasil (revista Visão)

Publicado em 1972

Com uma economia imune à crise mundial, e depois da investida das companhias portuguesas, é agora a vez de as empresas brasileiras virem às compras em terras lusas. A maré alta não vai durar para sempre...

O que é que o Brasil tem? A pergunta pode ser feita de outra forma: Afinal, o que é que o Brasil não tem? A economia que acaba de se tornar na oitava maior do mundo, destronando a da Espanha, tem tudo, ao que parece. Petróleo, minérios, commodities, empresas e bancos sólidos e uma classe média que acolheu 30 milhões de novos membros, durante os dois mandatos do Presidente Luís Inácio "Lula" da Silva. Para os seus apoiantes, a pujança da economia brasileira deve-se a Lula e ao seu Governo trabalhista, que tirou milhões de cidadãos da pobreza, criou um grande mercado interno e pôs o país na rota do grande capital. Mas, para os seus críticos, Lula teve "uma sorte desgraçada". "Muita coisa foi 'plantada' pelo anterior Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que controlou a inflação, criou agências de regulação, privatizou empresas e lançou as bases para que o Brasil pudesse crescerl", advoga Carlos Vieira, ex-jornalista e assessor de comunicação em São Paulo, recordando a modernização das telecomunicações e da energia e o saneamento da banca.
Quais os segredos que estão por detrás deste "crescimento à chinesa" da economia brasileira, que, nos dois primeiros trimestres do ano, disparou cerca de 9 por cento? Como se explica que, quase de um dia para o outro, grandes grupos tenham começado a comprar empresas portuguesas, como a Cimpor? António Bustorff, presidente da Câmara de Comércio Luso-Brasileira, explica esta atitude com a força da moeda brasileira.
"O real está tão valorizado que im pele as empresas brasileiras a olhar para as oportunidades no exterior e, também, a procurar alternativas de financiamento a juros mais baixos", diz o também presidente da gestora de fortunas BMF. Mas como a inflação parece controlada e a notação de risco do país tem vindo a diminuir, existe a noção de que as coisas não vão durar muito tempo. Quando as taxas de juro que se mantém nos 10% ao ano, um dos mais altos do mundo caírem, o real perderá valor. Até lá, o alvo serão "os grupos ibéricos com ativos no Brasil ou na América Latina. Não tenho dúvidas de que também há empresas brasileiras a estudar aquisições em Espanha", sintetiza.

CONJUNTURA VIRTUOSA
Na hora da despedida, o presidente Lula pode acenar com "obra feita" na economia.
Ainda no ano passado, o PIB brasileiro recuava 0,2 por cento. Mas, no final de 2010, terá engordado entre 7% e 7,5%, de acordo com as últimas projeções do banco central. "Entre 2003 e 2007, entrámos numa trajetória de crescimento ímpar, só interrompida pela crise financeira ", salienta Márcio Holland, professor e coordenador do programa de pós-graduações, na Fundação Getúlio Vargas. Como é que o Brasil chegou até aqui? "Inflação controlada, aumento real do rendimento médio dos trabalhadores e um enorme mercado consumidor interno que acaba de ser 'descoberto'", enumera. Para a formação desse mercado, os apoios sociais, como o programa Bolsa Família, que abrange 12 milhões de famílias, deram o seu contributo, ao permitirem uma maior transferência de rendimento para as camadas mais desfavorecidas.
E a expansão do mercado do crédito, apesar dos juros ainda elevados, fez o resto. "Comprar casa e carro novo ficou ao alcance de muitos brasileiros", afirma o economista. O povo brasileiro parece ter dado ouvidos a Maria da Conceição Tavares, prestigiada economista de origem portuguesa: "Não adianta dizer que temos as maiores taxas de juro do mundo. São assim há mais de 50 anos. E agora estão abaixo da média histórica das últimas duas, três décadas." 
APOSTA NA CONTINUIDADE
Para Márcio Holland, um dos méritos de Lula da Silva foi o de ter "pegado, aprofundado e dado continuidade às políticas monetárias e orçamentais de FHC. Não só não as abandonou como até as melhorou. Foi mais ousado nos programas sociais".
A conjuntura virtuosa fez o resto. "Nos seus oito anos de governação, o mundo estava bem melhor", salienta. Numa entrevista recente a um jornal universitário, Maria da Conceição Tavares sustenta este pensamento: "É a primeira vez que assistimos a uma crise sem ficar de cócoras. Antes, os Estados Unidos davam um espirro e a gente pegava uma pneumonia. Agora eles pegam uma pneumonia dupla e a gente se recupera rapidamente." Com Lula, o Brasil conquistou por duas vezes um lugar no mapa dos grandes eventos mundiais, com o Mundial de Futebol, em 12 cidades anfitriãs, em 2014, e as Olimpíadas, no Rio de Janeiro, em 2016. O futuro é risonho, pelo menos para a construção civil, infraestruturas, siderurgia e cimentos. Além dos estádios e equipamentos desportivos que serão construídos ou remodelados nos próximos anos, há muita obra por fazer. Num artigo recente, a revista Veja fez uma vistoria ao estado de algumas infraestruturas no Brasil, como os aeroportos das principais cidades. Recordando que, em 2009, passaram 128 milhões de passageiros pelas sobrelotados e caóticas gares aéreas brasileiras, afirmava que as projeções para 2016 apontam para 202 milhões, o que exige ampliação dos terminais existentes.
Só neste ano, deverão passar pelo principal aeroporto paulista mais 25% de passageiros do que aqueles que ele comporta. Em terra, a situação não é melhor. O Brasil tem a terceira maior rede de estradas do mundo, depois dos EUA e da Índia, mas só 12% estarão alcatroadas.
Basta olhar para os resultados da última PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, para se perceber o país de contrastes que o Brasil continua a ser. Em Julho, existiam quase tantos telemóveis (187 milhões) quanto o número de habitantes do Brasil (198 milhões), mas apenas 60% dos lares estavam ligados à rede de esgotos. Um em cada cinco cidadãos com mais de 15 anos é analfabeto funcional. E os licenciados são apenas metade. 
NA ROTA DO CAPITAL
Mas é esta a nação que entrou na rota do capital internacional. Inflação galopante, moeda deslizante, dívida externa descontrolada era assim que se fazia o retrato do Brasil, na reta final do século XX.
Nesta década, tudo mudou. Lula soube afastar os receios em relação ao risco do país. Alguns dos fundos de investimento que maiores valorizações registam, em Portugal mas também na Europa e EUA, têm as suas carteiras forradas com ativos do país do samba. "Uma boa aplicação em reais rende 9% a 10%, líquidos, ao ano", reconhece António Bustorff.
O comportamento do índice bolsista Bovespa não tem sido muito distinto do dos seus congéneres europeus ou norte-americanos mas, ainda assim, é destino quase obrigatório do investimento.
A Petrobrás, animada com as gigantescas reservas de petróleo descobertas no fundo do mar, está por estes dias a realizar uma das maiores operações de aumento de capital da história, no valor de 150 mil milhões de reais (cerca de 69 mil milhões de euros).
Durante os oito anos do mandato de Lula, a economia brasileira tornou-se o 10.º maior destino do investimento direto estrangeiro mundial e o maior da América Latina. Nos anos da "chegada" das empresas lusas ao Brasil, Portugal figurou no top 5 dos maiores investidores naquele país, "uma posição insustentável, dada a dimensão do mercado brasileiro", como recorda André Magrinho, adjunto do presidente da AIP e docente universitário. Hoje, apesar de muitos grupos nacionais que responderam ao "chamamento" de 1995 terem já abandonado o Brasil (Sonae, Jerónimo Martins, Brisa ...) ou redirecionado os seus investimentos (como a Portugal Telecom, que está a trocar a Vivo pela Oi), Portugal ainda consegue posicionar-se no top 10 da tabela.
Mas a novidade é o surgimento do Brasil como o 21.º maior emissor de investimento a nível mundial, segundo da dos de 2009 das Nações Unidas. A esse ritmo, cruzou o oceano num ápice e chegou à Europa. "O foco não é Portugal, mas sim as oportunidades estratégicas representadas pelas empresas com ativos apreciados na América Latina", contrapõe o presidente da Câmara de Comércio Luso-Brasileira. Já André Magrinho, afirma: "É bom que exista investimento brasileiro cá. Tal como as exportações, é-nos vital." Embora alicerçado em valores historicamente baixos, o investimento brasileiro em Portugal cresceu 485%, em 2009, e, até Março , os dados da Aicep acusam uma subida superior a 7 mil por cento, o que se explica pela passagem de mais de 60% do capital da Cimpor para a posse de grupos brasileiros. Nas trocas comerciais entre os dois países, Brasil é o 10.º fornecedor de Portugal e o nosso 11.º maior cliente.
Enquanto durar a "febre" do real, é provável que estas realidades medidas pelas estatísticas se alterem. 
O VOO DA GALINHA
Se Lula tirou milhões da pobreza, permitindo que 52% da população tenha acedido à classe média, as desigualdades no Brasil ainda são avassaladoras. Um quarto dos habitantes vive abaixo do limiar da pobreza.
Um estudo recente da OCDE alerta: O Brasil começa a dar "sinais mais fortes" de que o crescimento da economia está a perder fôlego, como sucede nos países ricos. "Possivelmente [terá] atingido o pico", sustenta o relatório.
O economista Márcio Holland também adverte contra os riscos. "As previsões apontam para um crescimento médio de 4% a 4,5% a partir de 2011, mas o ideal seria um valor entre 5% e 7%", diz. Só assim será possível reduzir ainda mais as desigualdades sociais e obter uma melhor repartição do rendimento. Mas existem nuvens negras a aproximar-se. O Brasil está a perder o seu dinamismo exportador. As vendas ao exterior aumentaram, neste ano, apenas 7%, quando as importações dispararam 30 por cento. O excedente comercial é que paga a fatura, caindo de 50 mil milhões de dólares para cerca de 15 mil milhões. A produção interna não tem dado resposta ao aumento do consumo. O debate prosseguirá no Brasil, antes e depois das eleições de 3 de outubro. Marco Holland faz um derradeiro aviso: "O Brasil está voando como as galinhas. Se bater na trave, para."
Clara Teixeira, revista Visão nº 915, 16 a 22 de setembro de 2010

Milagre Brasileiro
Chico Buarque
Composição: Indisponível

Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Dizem que você se defendeu
É o milagre brasileiro
Quanto mais trabalho
Menos vejo dinheiro
É o verdadeiro boom
Tu tá no bem bom
Mas eu vivo sem nenhum
Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Eu não falo por despeito
Mas, também, se eu fosse eu
Quebrava o teu
Cobrava o meu Direito


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