Zita Seabra
Cândida Ventura regressou a
Portugal em 1976. Abandonou o PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da
sua história, do seu passado, dos seus livros, das suas narrativas heroicas.
Como sempre faz.
Morreu Cândida Ventura: a
camarada André. Era sempre referida internamente por esse seu pseudónimo.
Álvaro Cunhal e os outros dirigentes do PCP que a conheceram chamavam-lhe
assim. Na clandestinidade todas tínhamos pseudónimos masculinos para enganar a
Pide. Cândida era André.
Ninguém pode negar que “André”
foi um dos mais destacados militantes e dirigentes intelectuais comunistas
portugueses, alguém que o PCP tentou apagar da história nesse seu «direito» de
reescrever o passado e determinar quem pode ou não figurar na galeria dos
heróis da resistência.
Cândida foi apagada e colocada
na triste memória de vala comum de silêncios e calúnias em que já nem se sabe
do seu passado e, no presente, só existe para modelo de traição. Recordo-me,
por exemplo, de se falar dela no último andar da Soeiro Pereira Gomes, num gozo
mal contido do dr. Cunhal, dizendo, entre risos e escárnio: «O camarada André
aceitou um lugar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, arranjado pelo Mário
Soares.»
Ficou assim marcada,
assinalada, logo no dia em que regressou ao país em 1976. Como se o mesmo não
tivesse acontecido a toda a gente, a todos os comunistas que vieram de Paris ou
da Suíça e tiveram que ser reintegrados num qualquer trabalho e refazer a sua
vida profissional. Cândida não podia. Vinha com o estatuto de dissidente e não
lhe era permitido ter passado, nem presente, nem trabalho, nem dignidade.
Posteriormente, muitos anos
mais tarde, eu própria ouvi muitas vezes como acusação, e li escrito em
jornais, o nome de Cândida transformado em insulto. Acusavam-me de estar «a
ficar igual ou pior que a Cândida». Escreveram-no contra mim, quando a minha
vida foi uma pálida sombra do que foi a desta grande senhora. Senti e sinto
ainda vergonha da acusação, porque eu não tinha, nem a minha vida teve,
dimensão para ser aceitável tal comparação.
Cândida entrou para o PCP
muito nova. Chegou através das lutas estudantis universitárias nos anos 36/39,
em plena guerra civil espanhola. Licenciada em Histórico-filosóficas, tinha uma
imensa cultura, rara em mulheres da época. Teve um curto casamento com Piteira
Santos e frequentou a vida cultural da capital. Escreveu em jornais e revistas
e foi amiga de toda a gente marcante das letras e das artes portuguesas. Nesse
período, trabalhou directamente com Álvaro Cunhal na Federação das Juventudes
Comunistas.
Foi durante todos estes anos
uma destacadíssima militante e a primeira mulher a integrar o Comité Central do
PCP.
Brilhante, culta, inteligente,
corajosa, muito, muito bonita (Cunhal dizia que parecia uma conhecida atriz
francesa em moda na época), marcou este período conturbado da vida do PCP como
activista dos mais importantes movimentos legais ou semi-legais existentes
(Socorro Vermelho, por exemplo). Muito jovem, logo que acabou o curso, deixou,
porém, tudo o que tinha na vida e tudo o que fazia para passar à
clandestinidade. Ao PCP entregou a juventude, e todo o seu futuro. Viveu anos e
anos (dezoito) uma duríssima vida de privações e perigos na clandestinidade,
até ser presa.
Na clandestinidade, Cândida
integrou de imediato um pequeno grupo destacado de dirigentes comunistas que
fizeram a célebre «reorganização» dos anos 1940.
Mais tarde, quando se viveram
tempos conturbados de lutas internas, Cândida foi acusada de fraccionismo pois
era o André da famosa fracção «André e Montes», que levou à sua despromoção do
Comité Central e suspensão (em 1954). Foi readmitida em 1956 e ficou para
sempre a camarada André, o que lhe deu igualmente uma auréola muito especial de
ex-fraccionista.
Enquanto clandestina foi uma
das muito poucas mulheres com trabalho de organização. Controlou grandes
sectores do PCP e, além disso, escreveu muito, colaborando em numerosas
publicações clandestinas. A menos importante, mas significativa, e que
pessoalmente não resisto a sublinhar, foi o jornal que criou e que eu própria
vim a «dirigir» anos mais tarde: «O Jornal das Amigas das Casas do Partido»,
que era distribuído, depois de impresso em copiógrafo manual, a todas as
mulheres que tomavam conta das casas e das tipografias clandestinas.
Presa pela PIDE em 1960, foi
condenada a 15 anos de cadeia e medidas de segurança, mas veio a ser libertada
por estar entre a vida e a morte, ao fim de três anos vividos na cadeia de
Caxias.
Quando recuperou a saúde, o
PCP colocou-a como representante sua na Checoslováquia, onde integrou a
redacção da mais importante revista teórica do movimento comunista, a «Revista
Internacional – Problemas da Paz e do Socialismo».
O Partido Comunista Checo era
um partido com uma importante elite intelectual, que incluía numerosos
escritores, gente das artes e dos meios universitários. Cândida, que era
responsável pelos comunistas portugueses que residiam na Checoslováquia,
integrou-se plenamente na vida do país que caminhava para a célebre
«Primavera».
Tem-se escrito, diminuindo-a
em minha opinião, que foi ganha para a Primavera de Praga porque era amiga e
vizinha de Arthur London, que a terá influenciado. Era evidentemente amiga de
Arthur London e ele próprio prefaciou o livro que Cândida publicou anos mais
tarde, mas ela foi um dos mentores e intervenientes na Primavera de Praga,
amiga de muitos a começar por Dubcek. Esteve com os que tentaram renovar o
comunismo por dentro, democratizá-lo, os que viveram o drama da ilusão de uma
pacífica e democrática «revolução» interna, feita na sua maioria por
comunistas, uma revolução impossível que terminou debaixo das lagartas dos
tanques soviéticos.
Aliás, ao longo dos muitos
anos de militante e dirigente comunista, Cândida foi marcante num partido de
centralismo democrático por ter pensamento e caminhos próprios raros, direi
mesmo raríssimos. Não foi só a fracção «André e Montes», mas também o pai da
sua filha, Américo Sousa (que participou na fuga da cadeia do Aljube com Carlos
Brito), que acabou despromovido, ao chocar novamente com Cunhal nos anos em
que, após a fuga de Peniche, ele tomou o poder no PCP.
Na Primavera de Praga, Cândida
não era dissidente nem se comporta como tal. Cândida era comunista e, como
muitos outros comunistas, queria renovar, democratizar, destalinizar. Tinha
dado toda a sua vida por essa causa. Só quem não imagina o que é entregar uma
vida inteira a uma ideologia, passar 18 anos clandestina, seguidos dos anos na
prisão de Caxias e depois no exílio, é que não pode perceber ou atingir o que
foi a vida desta mulher e como viveu estes anos de Praga, entre a alegria de um
comunista convicto que procura o impossível – democratizar o comunismo – e a
tristeza da invasão das tropas do pacto de Varsóvia.
Ainda há dias li contra ela a
acusação de não ter subscrito o abaixo-assinado de Flausino Torres contra a
invasão soviética, como quem lhe atira o atestado final do julgamento da história.
Valeu tudo ao longo da sua vida até ao presente para o Partido Comunista lhe
apagar o passado, a diminuir, caluniá-la em contraste com os seus heróis em
muitos casos falsos, com biografias forjadas e até antifascistas que nunca o
foram. Tudo servido por diligentes funcionários que transmitem a história e por
intelectuais igualmente diligentes que a tentam escrever em livros que
assegurem que o passado será como querem que seja.
Cândida Ventura regressou a
Portugal em 1976. Abandonou o PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da
sua história, do seu passado, dos seus livros, das suas narrativas heroicas.
Morreu ontem e merece ser
lembrada por tudo o que deu na sua vida à luta pela liberdade em Portugal e
recordada como a primeira mulher membro do Comité Central do PCP, bem como a
primeira dissente mulher do comunismo português. Sobretudo, a camarada André
merece muito mais do que estas linhas.
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