sábado, 24 de dezembro de 2016

O regresso da política da fé e do sangue

O terrorismo é mais do que um problema de segurança: pode ser o começo da transformação da Europa num novo Médio Oriente, feito de identidades incompatíveis e de comunidades segregadas

Rui Ramos

De cada vez que algo acontece, as autoridades e a imprensa parecem esperar que seja menos do que “terrorismo”: um acidente infeliz, um acto tresloucado. Mas o que se passa já é mais do que terrorismo. Em vez de um problema de segurança, pode ser o começo da transformação da vida política na Europa.

A propósito da imigração descontrolada que permitiram, os governos europeus insistem em imaginar indivíduos e famílias que, uma vez nos novos países, adoptariam a sua língua e costumes: em poucas décadas, os jovens sírios seriam alemães de meia idade. Esta perspectiva é um resquício do etnocentrismo colonial. Os imigrantes não são uma simples matéria-prima humana para compensar o declínio demográfico europeu. Trazem a sua história e os seus valores. A internet e as viagens baratas mantê-los-ão ligados aos meios de origem. Depois de Bush, os ocidentais acreditaram que bastaria retirar do Iraque para fazerem do Médio Oriente um problema longínquo. Mas através dos seus migrantes, o Médio Oriente está agora entre nós.

A composição das populações europeias está a mudar. Dos residentes da Alemanha, França, e Reino Unido, mais de 12% nasceram no estrangeiro e mais de 5% são muçulmanos. Desde 1990, que a população muçulmana na Europa aumenta 1 ponto percentual por década. É neste contexto que o jihadismo na Europa faz sentido. O seu objectivo é estigmatizar estas comunidades migrantes muçulmanas, torná-las suspeitas, de modo a facilitar a sua captura ideológica. Em França (os “territórios perdidos da república”), na Bélgica e na Alemanha, já há bairros inteiros dominados pelo radicalismo islâmico. Se o jihadismo for bem sucedido, haverá reacções de nativismo e de xenofobia, como a que a Frente Nacional protagoniza em França. Teríamos, por fim, a redução da política europeia ao choque de tribos inconciliáveis.

Até ao século XVIII, a Europa foi também uma espécie de Médio Oriente, um xadrez de confrontos religiosos e étnicos. Os Estados centralizados, a secularização, a escolarização e atrozes “limpezas étnicas” acabaram por reorganizar as populações europeias, ao longo dos séculos XIX e XX, em “nações” supostamente homogéneas. Sobejou a separação em “classes sociais”, a que a terciarização da economia e o Estado social tiraram as últimas arestas. As divisões partidárias na Europa reduziram-se, em geral, a opções administrativas (mais Estado ou menos Estado). É a esta política que estamos habituados.

A expansão de comunidades refractárias, quando não hostis, aos valores ocidentais, pode mudar tudo isso. É essa a grande esperança da jihad. Na década de 70, a Europa experimentou o “terrorismo” da “luta armada” da extrema-esquerda. Mas os jihadistas não são simplesmente os Baader-Meinhoff com o Alcorão em vez de O Capital. Têm condições para ser o factor de emergência de um mundo de identidades incompatíveis e de comunidades segregadas.

Para impedir que isto seja discutido, é costume gritar “racismo” e “islamofobia”. Mas de facto, são esses gritadores que parecem sofrer de um preconceito de superioridade étnica ou cultural. Só isso assim se pode compreender a sua dificuldade de admitir que as mesmas causas – a expansão de comunidades dominadas pelo radicalismo islâmico — possam produzir os mesmos efeitos na Europa e no Médio Oriente.

Talvez tudo ainda resulte numa espécie de Babel feliz, com mais oferta culinária exótica e serviço doméstico barato. É o sonho cosmopolita que os professores de sociologia e de economia passam à classe média. Vamos esperar que tenham razão. Mas convém estar preparado para outra possibilidade, a de sociedades divididas pelo sangue e pela fé, para as quais a política amena dos economistas e dos sociólogos já não seja mais do que uma velha memória. 
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 23-12-2016

Um comentário:

  1. Todos devem estar lembrados da intensa cena inicial do filme Lawrence da Arábia. Lawrence e o seu guia árabe estão dessendentando-se e descansando junto de um poço.Saído das ondulantes brumas do deserto vê-se, depois, um cavaleiro vagarosamente cavalgando em direção a eles. Vislumbra-se a apreensão cada vez mais agitada do guia árabe até que, numa desesperada corrida, tenta apoderar-se do revólver numa espécie de jogo de morte. Tarde demais, o cavaleiro já bastante próximo ripa do seu rifle, e mata com um tiro certeiro o guia. Sem uma explicação, sem uma troca de palavras, revisito a grandiosa intensidade desta cena cinéfila e do permanente absurdo que tanto me chocou. Consumada a morte, o cavaleiro desmonta tranquilamente, e dirige-se normalmente a Lawrence. Apresenta-se de forma cortês como o xerife Ali, enquanto esvazia o recipiente de água pertença do guia morto. O diálogo que se segue entre os dois é intrigantemente chocante. Lawrence indaga sobre o non sense da morte do seu guia enquanto, Ali, encara a questão de uma fora absolutamente normal e responde que, o morto, pertencendo a uma tribo diferente não lhe era permitido tocar naquela água mesmo que estivesse a morrer à sede. Do resto do filme todos estarão certamente lembrados. O que eu quero aqui relembrar é da especificidade da mentalidade das pessoas do oriente médio e, sem sequer fazer juízos de valor, das abissais diferenças culturais que nos separam. Uma espécie de choque de civilizações que nos fazem parecer absurdas certas atitudes que são, para eles, absolutamente normais. Lawrence acabou por compreender aquelas gentes mas, para isso, nunca esteve sentado a uma secretária na chancelaria em Berlim. Lutou com eles a seu lado e aprendeu os seus usos e costumes. Agora, estes frouxos políticos que por esta Europa nos vão desgovernando, pensavam ter redescoberto o segredo da pólvora. Como por aqui já todos vamos dando devida conta, não é assim tão fácil. E por muito que esses políticos e seus apaniguados nos tentem vender ilusões, a coisa cada vez se complica mais. Regressou-se assim ao antigo mito do bom selvagem. Mas povos que desde que a História é conhecida sempre fizeram do permanente conflito uma forma existencial de vida, não vão mudar por muito que as Merkel desta vida o pretendam. Quanto mais não seja, porque sempre teremos que nos lembrar da fábula do escorpião!...

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