terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Aqui chegámos

Helena Matos

O terrorismo e a intolerância apenas se limitaram a ocupar o espaço que deixámos vazio ao confundir o apagamento dos nossos valores com o respeito pelo outro.

“Après l’attentat de Berlin, faut-il interdire les marchés de Noël en France?” – perguntava o Figaro. É melhor traduzir para que não haja dúvidas sobre a natureza da pergunta: “É necessário proibir os mercados de Natal em França?” Este questionário foi feito aos leitores daquele jornal após os atentados de Berlim e dá conta daquilo a que chegámos.

Nos primeiros atentados gritava-se que nada colocaria em causa o nosso modo de vida. O atentado era então o resultado de uma qualquer iniquidade recente do mundo capitalista ou pretérita da santíssima inquisição porque, como é óbvio, feita a excepção ao capitalismo e à sociedade machista e cristã ocidental, todo o restante mundo é um oásis de tolerância. O facto de os autores dos atentados gritarem alto e bom som o seu ódio apenas explicava a sua mágoa pelas injustiças cometidas contra eles ou contra os seus antepassados. Não estávamos diante de terroristas mas de pessoas por assim dizer magoadas. Do mundo ocidental, atávico, ultra-montano e intolerante choveram milhões para iniciativas como a Aliança de Civilizações.

Depois os atentados continuaram e passámos para a fase do fanatismo. Claro que havia fanatismo de ambos os lados, mas do lado dos terroristas alguns fanáticos, uma minoria, praticava atentados, mas era apenas fanatismo contra fanatismo. E claro todos éramos vítimas: as vítimas propriamente ditas, os outros que não tendo sido vítimas eram vítimas por simpatia e pelo facebook e, como não, aqueles que se sentiam discriminados porque os olhavam com desconfiança por terem tendo convivido com os autores dos atentados, também eles eram vítimas. Agora já não da História, mas sim dos sistemas de protecção social, que é certo lhes deram casas mas nos subúrbios, garantiram acesso aos serviços de saúde mas com médicos para atender as suas mulheres, coisa que obviamente os ofendia… e outras iniquidades semelhantes donde não se pode excluir o facto de os seus filhos verem os colegas comer menus que os ofendem.

Como apesar das medidas tomadas para evitar estas ofensas os atentados continuaram entrámos no tempo do incidente: o incidente era levado a cabo por pessoa não identificada que nada podia associar a redes terroristas. Foram esses os gloriosos tempos da discussão entre o terrorista verdadeiramente terrorista e o terrorista que pratica o terrorismo numa espécie de terrorismo paralelo e não certificado.

Como os atentados não se detiveram perante o transcendente desta discussão, chegou a fase dos loucos: os autores dos atentados sofriam invariavelmente de perturbações mentais. O terrorismo tornou-se numa área da psiquiatria. Como se de uma praga se tratasse, gente concebia explosivos, pegava em facas, decapitava, enfim matava mas não o faziam por serem terroristas ou violentos, mas simplesmente porque sofriam de perturbações mentais. Como os psiquiatras jamais eram chamados a explicar que doença era esta que, ao contrário das outras, resistia à terapêutica, ficámos à espera de ver ressurgir o colete de forças para esta praga específica.

Infelizmente os atentados continuaram e o dilema entre o terrorista verdadeiro e o terrorista não verdadeiro, a par da questão do perturbado mental, deu lugar ao debate entre o Islão verdadeiro (bom e tolerante) e o Islão falso (violento). O Islão não chega aqui simplesmente por muitos dos terroristas serem muçulmanos. Acontece também que nos casos em que os terroristas não são muçulmanos eles são apenas terroristas.

Não nos interessa se o senhor que matou os seus concidadãos na Noruega é um nazi verdadeiro ou falso, se leu ou tresleu o Mein Kampf. Matou. Já se o terrorista gritar por Alá temos de ter em conta todo um conjunto de quesitos – o da mágoa civilizacional, o da perturbação mental – a que se junta a questão incontornável do verdadeiro e do falso Islão. Os terroristas naturalmente fazem parte do falso Islão.

Desgraçadamente os terroristas, fossem eles muçulmanos verdadeiros, muçulmanos falsos, católicos ou ateus, não se comoveram com esta nossa discussão teológica e continuaram a exercitar-se nas diversas formas de nos matar.

Assim chegámos ao presente que está patente na pergunta do Figaro: “É necessário proibir os mercados de Natal em França?” Como não nos tínhamos lembrado disso? Afinal se proibirmos os mercados e qualquer ajuntamento pelo qual possa irromper um terrorista já não estamos a propiciar ao terrorista o espaço para que ele possa actuar.

Vejamos: se o mercado de Natal não tivesse acontecido o terrorista acabaria a andar pelas estradas fora (com um morto ao lado, mas enfim ainda se terá de averiguar se o morto não o terá provocado). Quiçá o seu único crime, excepção feita ao alegado morto alegadamente morto pelo terrorista, fosse não ter cumprido o horário regulamentar dos camionistas ou ter atropelado um ouriço que se lhe atravessou no caminho.

Quanto ao Natal temos de o repensar. Afinal ainda há muito para corrigir nas celebrações de Natal mesmo quando este já está reduzido à versão festa da exaltação da electricidade para não ofender os ateus e os fiéis dos credos que não têm Natal mas querem celebrar o Natal. Naturalmente o Natal eléctrico das luzes de casino que passa por multicultural.

É triste e vai piorar. O terrorismo e a intolerância apenas se limitaram a ocupar o espaço que deixámos vazio ao confundir o apagamento dos nossos valores com o respeito pelo outro. Neste momento não se sabe quem foi o autor do atentado, qual a sua religião ou sequer se a tem. Se é um fanático de uma qualquer ideologia. Mas temos de parar neste exercício de transferência da responsabilidade do terrorismo para com as suas vítimas. Nesta espécie de apologia da clandestinidade daquilo que marca a nossa forma de vida. Esquecemos que só quem se respeita a si próprio e valoriza aquilo que foi e é consegue respeitar e, não menos importante, acolher os outros.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 20-12-2016
Marcação: JP

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