Helena Matos
O terrorismo e a intolerância apenas se
limitaram a ocupar o espaço que deixámos vazio ao confundir o apagamento dos
nossos valores com o respeito pelo outro.
“Après l’attentat de Berlin, faut-il interdire les marchés de Noël en France?” – perguntava o
Figaro. É melhor traduzir para que não haja dúvidas sobre a natureza da
pergunta: “É necessário proibir os mercados de Natal em França?” Este questionário
foi feito aos leitores daquele jornal após os atentados de Berlim e dá conta
daquilo a que chegámos.
Nos primeiros atentados
gritava-se que nada colocaria em causa o nosso modo de vida. O atentado era
então o resultado de uma qualquer iniquidade recente do mundo capitalista ou
pretérita da santíssima inquisição porque, como é óbvio, feita a excepção ao
capitalismo e à sociedade machista e cristã ocidental, todo o restante mundo é
um oásis de tolerância. O facto de os autores dos atentados gritarem alto e bom
som o seu ódio apenas explicava a sua mágoa pelas injustiças cometidas contra
eles ou contra os seus antepassados. Não estávamos diante de terroristas mas de
pessoas por assim dizer magoadas. Do mundo ocidental, atávico, ultra-montano e
intolerante choveram milhões para iniciativas como a Aliança de Civilizações.
Depois os atentados
continuaram e passámos para a fase do fanatismo. Claro que havia fanatismo de
ambos os lados, mas do lado dos terroristas alguns fanáticos, uma minoria,
praticava atentados, mas era apenas fanatismo contra fanatismo. E claro todos
éramos vítimas: as vítimas propriamente ditas, os outros que não tendo sido
vítimas eram vítimas por simpatia e pelo facebook e, como não, aqueles que se
sentiam discriminados porque os olhavam com desconfiança por terem tendo
convivido com os autores dos atentados, também eles eram vítimas. Agora já não
da História, mas sim dos sistemas de protecção social, que é certo lhes deram
casas mas nos subúrbios, garantiram acesso aos serviços de saúde mas com
médicos para atender as suas mulheres, coisa que obviamente os ofendia… e
outras iniquidades semelhantes donde não se pode excluir o facto de os seus
filhos verem os colegas comer menus que os ofendem.
Como apesar das medidas
tomadas para evitar estas ofensas os atentados continuaram entrámos no tempo do
incidente: o incidente era levado a cabo por pessoa não identificada que nada
podia associar a redes terroristas. Foram esses os gloriosos tempos da
discussão entre o terrorista verdadeiramente terrorista e o terrorista que
pratica o terrorismo numa espécie de terrorismo paralelo e não certificado.
Como os atentados não se
detiveram perante o transcendente desta discussão, chegou a fase dos loucos: os
autores dos atentados sofriam invariavelmente de perturbações mentais. O
terrorismo tornou-se numa área da psiquiatria. Como se de uma praga se
tratasse, gente concebia explosivos, pegava em facas, decapitava, enfim matava
mas não o faziam por serem terroristas ou violentos, mas simplesmente porque sofriam
de perturbações mentais. Como os psiquiatras jamais eram chamados a explicar
que doença era esta que, ao contrário das outras, resistia à terapêutica,
ficámos à espera de ver ressurgir o colete de forças para esta praga
específica.
Infelizmente os atentados
continuaram e o dilema entre o terrorista verdadeiro e o terrorista não
verdadeiro, a par da questão do perturbado mental, deu lugar ao debate entre o
Islão verdadeiro (bom e tolerante) e o Islão falso (violento). O Islão não
chega aqui simplesmente por muitos dos terroristas serem muçulmanos. Acontece
também que nos casos em que os terroristas não são muçulmanos eles são apenas
terroristas.
Não nos interessa se o senhor que matou os seus
concidadãos na Noruega é um nazi verdadeiro ou falso, se leu ou tresleu o Mein
Kampf. Matou. Já se o terrorista gritar por Alá temos de ter em conta todo
um conjunto de quesitos – o da mágoa civilizacional, o da perturbação mental –
a que se junta a questão incontornável do verdadeiro e do falso Islão. Os
terroristas naturalmente fazem parte do falso Islão.
Desgraçadamente os
terroristas, fossem eles muçulmanos verdadeiros, muçulmanos falsos, católicos
ou ateus, não se comoveram com esta nossa discussão teológica e continuaram a
exercitar-se nas diversas formas de nos matar.
Assim chegámos ao presente que
está patente na pergunta do Figaro: “É necessário proibir os mercados
de Natal em França?” Como não nos tínhamos lembrado disso? Afinal se
proibirmos os mercados e qualquer ajuntamento pelo qual possa irromper um terrorista
já não estamos a propiciar ao terrorista o espaço para que ele possa actuar.
Vejamos: se o mercado de Natal
não tivesse acontecido o terrorista acabaria a andar pelas estradas fora (com
um morto ao lado, mas enfim ainda se terá de averiguar se o morto não o terá
provocado). Quiçá o seu único crime, excepção feita ao alegado morto alegadamente
morto pelo terrorista, fosse não ter cumprido o horário regulamentar dos
camionistas ou ter atropelado um ouriço que se lhe atravessou no caminho.
Quanto ao Natal temos de o
repensar. Afinal ainda há muito para corrigir nas celebrações de Natal mesmo
quando este já está reduzido à versão festa da exaltação da electricidade para
não ofender os ateus e os fiéis dos credos que não têm Natal mas querem
celebrar o Natal. Naturalmente o Natal eléctrico das luzes de casino que passa
por multicultural.
É triste e vai piorar. O
terrorismo e a intolerância apenas se limitaram a ocupar o espaço que deixámos
vazio ao confundir o apagamento dos nossos valores com o respeito pelo outro.
Neste momento não se sabe quem foi o autor do atentado, qual a sua religião ou
sequer se a tem. Se é um fanático de uma qualquer ideologia. Mas temos de parar
neste exercício de transferência da responsabilidade do terrorismo para com as
suas vítimas. Nesta espécie de apologia da clandestinidade daquilo que marca a
nossa forma de vida. Esquecemos que só quem se respeita a si próprio e valoriza
aquilo que foi e é consegue respeitar e, não menos importante, acolher os
outros.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 20-12-2016
Marcação: JP
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O único jornal (online) português que vou lendo – os colunistas – olha só! diz que foi um incidente!
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