terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Do passado que nos parece que existiu

Henrique Pereira dos Santos

Na semana passada Luis Aguiar-Conraria, no Observador, usou uma expressão semelhante à que hoje usou João Miguel Tavares no seu artigo do Público "Embora a herança salazarista tenha sido trágica na Educação".

Esta expressão é historicamente muito pouco rigorosa, seria muito mais rigoroso dizer "Embora a herança pombalina tenha sido trágica na Educação".

Vejamos.

Pouco antes do salazarismo a taxa de escolarização no país é de cerca de 15% e a taxa de analfabetismo estava acima dos 60%, quando o Estado Novo acabou a taxa de escolarização estava nos 85% (penso que medida pela número dos que completavam o ensino básico, visto que a frequência escolar e a alfabetização das crianças em idade escolar era de 100% desde o início dos anos 60) e a taxa de analfabetismo estava nos 25%, o que deve ser lido tendo em atenção que quem tinha 15 anos em 1930 sem nunca ter ido à escola, tinha uma boa probabilidade de estar vivo em 1974, continuando analfabeto. E é bom não esquecer que os mais novos e escolarizados tinham, em grande parte, emigrado.

Ou seja, o Estado Novo fez a escolarização de facto do país, coisa que o país tinha feito há 150 anos, no papel, sem nunca a ter levado à prática. Os resultados da primeira república nesta matéria são arrepiantes, provavelmente pela mesma razão que explica os resultados de Pombal: a perseguição ao ensino de base confessional.

Só nos anos 30 do século XX é que o número de alunos no país voltou ao que era antes da expulsão dos Jesuítas por Pombal, decisão que fez diminuir o número de alunos nas escolas de Portugal em qualquer coisa como 90%, para além de ter diminuído acentuadamente a qualidade do ensino pela diminuição brutal da qualidade dos professores (ver Francisco Romeiras e Henrique Leitão, para estes números).

Sendo verdade que o Estado Novo se focou essencialmente no ensino básico, sendo verdade que provavelmente poderia ter feito um esforço maior na qualificação dos portugueses, sendo verdade que a qualificação dos portugueses estava longe de ser uma prioridade de Salazar – o que é diferente de dizer que a sua alfabetização não era uma prioridade do regime – a verdade é que a base de partida é muito, muito má e o regime a melhorou substancialmente.

É, por isso, muito impreciso dizer que a herança do salazarismo tenha sido trágica na educação. A herança é má, mas muito melhor que a herança que o salazarismo recebeu. Se assim não fosse, aliás, não teria sido possível a rápida democratização do ensino pós 25 de Abril porque na educação as coisas não mudam instantaneamente: a base dessa democratização é feita pelo Estado Novo, quer no enquadramento institucional, quer no investimento em instalações, quer na formação de professores, quer na criação de uma base social alfabetizada e valorizadora da educação dos filhos.

Insistir na tecla da pesada herança fascista, também na educação, apenas serve para nos distrairmos da discussão essencial: como é possível que continuemos a branquear as decisões tragicamente erradas de Pombal e da primeira república nessa matéria quando os seus resultados são o que são, sendo, esses sim, trágicos e miseráveis?

Aparentemente, continuamos a valorizar muito mais o que escrevemos na legislação sobre a escola que o que se passa realmente nas escolas.

Nada disto constitui qualquer elogio ao Estado Novo: não só os resultados económicos e sociais de um regime são irrelevantes para avaliar a sua legitimidade – e o Estado Novo era um regime ilegítimo por ser uma ditadura – como reconhecer a realidade nunca é, ou deixa de ser, um elogio, é apenas um módico de racionalidade para que possamos fazer melhores escolhas em cada momento, aprendendo com o passado.
Com o passado que existiu, não com o passado que vamos inventando para justificar as nossas opções e fracassos do presente
Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 27-12-2016 
Marcação: JP

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