Rui Verde
Imagine que adquire por Escritura Pública ao Estado um terreno maltratado, onde existe um barracão a cair aos pedaços. Imagine que durante anos trata desse terreno como seu, constrói uma bela casa e uma piscina. Imagine, ainda, que passados uns anos o mesmo Estado vem dizer que o ato na base do qual lhe tinha vendido o terreno é nulo, e por isso tem de devolver tudo a outra pessoa.
Onde antes havia umas terras
baldias com uma cabana semidesmantelada, agora está uma mansão com piscina, [ver
fotos Antes e Depois]. Qual o sentido de devolver o terreno com aquilo que lá
se construiu? Adquire-se um barraco ao Estado, constrói-se uma bela casa, e
depois o Estado vem dizer que tem de deixar tudo. Não faz sentido para nenhum
cidadão razoável.
No entanto, é o que parece
resultar de uma decisão tomada a 15 de dezembro de 2016, no âmbito do processo
2203/15, pelos juízes do Tribunal Supremo Manuel Dias da Silva, Joaquina do
Nascimento e Molares de Abril.
Vamos contar a história.
Em 1952, Sigrid Helga Margot
Karh Brock adquiriu o terreno objeto da contenda que estava descrito na
Conservatória do Registo Predial sob o artigo 8.104. Sigrid Brock saiu de
Angola antes da independência.
Em 1999, o Estado angolano
entendeu que o terreno cumpria os requisitos legais para ser confiscado, e por ato
publicado em Diário da República, datado de 1 de outubro de 1999, procedeu ao
referido confisco.
É na sequência desse confisco que o Estado procede à venda do terreno a Marta Isabel Justo dos Ramos, através de uma Escritura Pública de Compra e Venda exarada em 17 de dezembro de 1999.
Até 2010, Marta não teve
conhecimento de qualquer ato relevante referente a esse terreno, e procedeu ao
seu melhoramento e à construção da casa, piscina, relvado, etc., atuando sempre
como se a propriedade fosse sua.
Contudo, sem que tal fosse
feito público através de qualquer registo, como impõe a lei e o bom senso, em
21 de março de 2003 foi decidida pelo Tribunal Supremo, no decurso do processo
45/2000, a anulação do confisco. A ação correu apenas entre Sigrid Brock e o
Estado, não tendo Marta tomado conhecimento da mesma, nem tendo a ação sido
registada.
Apenas em 2010, Marta Ramos, estupefata,
toma conhecimento de que o registo de propriedade a seu favor tinha sido
cancelado.
Desde então, iniciou-se uma
saga jurídica a que a justiça angolana não foi capaz de dar resposta adequada.
Marta Ramos colocou duas ações
judiciais, uma contra a Conservatória do Registo Predial e outra contra os
Registos e Notariado, que desde 2010 aguardam decisão. Sigrid Brock interpôs
uma ação executiva, tendo como título executivo o aludido acórdão. Esta ação
foi indeferida.
Finalmente, surgiu a ação de
reivindicação de propriedade realizada por Sigrid Brock. Esta ação teve início
no Tribunal Provincial de Luanda, 2.ª secção cível, e correu sob o número 374-13-A.
Foi decidida em 10 de abril de 2015, pela juíza Tatiana Margarida Moreira de
Assis Aço, a favor de Sigrid Brock, determinando-se a entrega do imóvel a esta.
A juíza considerou a causa tão
simples, que a resolveu por Saneador-Sentença, não levando sequer a julgamento
para produção de prova. A lei permite-lhe isso, mas apenas em casos simples e
óbvios. Não é verificadamente o caso. Trata-se, ao invés, de um caso complexo,
que atravessa variada litigância e que chama à colação institutos de direito
complicados. Não se tira uma casa a uma pessoa sem a ouvir em julgamento e
ponderar bem os argumentos. É uma questão de justiça.
Lendo a sentença, verifica-se
que esta é muito rudimentar e simplista, esquecendo-se de vários princípios e
normas jurídicos, seja o princípio da confiança alicerçado pelo princípio do
Estado Democrático de Direito previsto na CRA, seja o artigo 291.º do Código
Civil, que protege os direitos adquiridos.
Um leitor desinteressado diria
que a juíza só teve olhos para os argumentos de Sigrid…
Depois desta sentença
desconcertante, houve recurso para o Tribunal Supremo, cujo resultado foi o
acórdão que mencionámos no início deste texto, mandando Marta Ramos entregar o
terreno com a casa e piscina feitas por ela à Sigrid Brock.
O terreno à data da sua aquisição por Marta Ramos |
Há aqui um problema de
materialidade muito importante que foi ignorado pelos tribunais: à data da
compra ao Estado angolano, o que existia no terreno não é de todo o que está a
ser objeto aparente da decisão.
Ora, podemos pensar que o
direito é absurdo, mas na realidade o direito tem uma lógica intrínseca de
justiça: é a sua aplicação pelos juízes que se torna absurda e leva a
resultados estapafúrdios.
Situações como a que foi aqui
descrita estão claramente previstas na lei e competiria aos tribunais conhecer
a lei e aplicá-la devidamente.
O artigo 291.º do Código Civil
dispõe claramente que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio
jurídico que respeite a bens imóveis (como é o caso) não prejudica os direitos
adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa-fé, se o
registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação (nº
1), e que os direitos de terceiro não são reconhecidos se a ação for proposta e
registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (nº 2).
Dispõe-se por fim que é considerado de boa-fé o terceiro adquirente que no
momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou
anulável (nº 3).
Face aos factos que
conhecemos, neste momento, Marta Ramos tinha registado a sua aquisição onerosa
de bem imóvel em 1999; a ação de anulação do confisco que originou a venda por
parte do Estado a Marta Ramos não foi registada nos três anos após a escritura
de 1999; e a cidadã desconhecia qualquer problema com o terreno que adquiriu ao
Estado.
Assim sendo, Marta devia ter
sido objeto da proteção dada pelo artigo 291.º do Código Civil.
Além do mais, a moderna
doutrina administrativista, como definida por Luís Cabral de Moncada, é clara
em afirmar que “o particular está, as mais das vezes, desarmado: não sabe se o ato
é ou não nulo e fica impressionado com a autoridade da Administração e com a
presunção de legalidade de que os seus atos beneficiam”. E, sendo assim,
consagra a possibilidade geral de atribuição de efeitos a situações de facto
decorrentes de atos nulos por força do simples decurso do tempo e de harmonia
com os princípios gerais do direito. Tal leva o administrativista Mário Esteves
de Oliveira a dizer quão falaciosa é, do ponto de vista jurídico prático, a
ideia de que o ato nulo não produz efeitos.
Obviamente, a situação aqui
descrita encaixa-se perfeitamente nestas considerações.
A declaração de nulidade do
confisco não deveria ter afetado os direitos que de boa-fé Marta Ramos tinha
adquirido. A isto chama-se o princípio da confiança, base essencial do Estado
Democrático de Direito.
Claro que, se Sigrid Brock
tivesse visto o seu terreno confiscado pelo Estado de forma ilegal, e estando
Marta Ramos protegida por lei, o que havia a fazer era o Estado indemnizar
Sigrid Brock pelo prejuízo que lhe causou. Esta seria a solução justa.
Em vez disso, assistimos a uma
atuação dos tribunais que apenas procura retirar qualquer responsabilidade do
Estado e, em última análise, dos ministros que fazem despachos asininos, e
colocam os particulares a combater entre si. Errado.
O Estado tem de assumir o erro
dos seus agentes e pagar a quem de direito. E os tribunais têm de conhecer a
lei e aplicá-la.
Por tudo isto, comportou-se
muito mal o Tribunal Supremo na sua decisão de 16 de dezembro de 2016.
Título, Imagens e Texto: Rui Verde, Maka Angola, 10-3-2017
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