
(Será que
hoje ele vai incriminar os relógios atuais?)
Não, caro leitor, hoje estou muito tranquilo em
casa, num silencioso feriadão, e vou apenas transcrever um conto medieval
francês. Nem entra o relógio, nessa cidade que foi salva por outro marcador de
tempo. Leia tudo, o conto é ótimo:
“No bosque junto à vila de
Dégagnazès havia um mosteiro com trinta monges vestidos de branco. Na realidade
eram trinta e um, mas o trigésimo primeiro não entrava na conta. Era um
mongezinho não maior que uma criança, muito corcunda e um tanto coxo, conhecido
como “o inocente” devido à sua simplicidade. Era o pastor do mosteiro, e era
bom, pois os animais gostavam dele. Ao raiar do dia, saía do estábulo onde
dormia ao lado das ovelhas, e com elas atravessava os bosques floridos, à
procura dos locais de pastagem.
O monge amava suas ovelhas,
quase tanto quanto amava sua flauta de bambu. Ele mesmo a fizera, e quando a
levava à boca e soprava, podia-se dizer que falava, pondo ordem em todas as
atividades da vizinhança. Quando saía do mosteiro tocando alegremente, os galos
compreendiam que era hora de cantar, e cantavam a plenos pulmões. Os camponeses
compreendiam que era hora de levantar, e se levantavam. As flores que se fecham
durante a noite começavam a se abrir. O vento que dormia nos bosques começava a
sacudir as árvores, para acordar os passarinhos.
Ao meio-dia ele tocava uma
música faustosa e as ovelhas se deitavam sobre as patas cruzadas, para
descansar, enquanto os camponeses interrompiam o trabalho para comer o pão. Ao
fim do dia, quando voltava ao mosteiro tocando uma música lenta e suave, as galinhas
compreendiam que era hora de dormir. Sem a flauta do monge, Dégagnazès não
saberia viver conforme a ordem e horário que agrada ao bom Deus.
Um dia a região foi
devastada pelos ingleses. Os camponeses se refugiaram com todos os animais no
mosteiro. Como não era fortificado, os ingleses entraram e apreenderam o gado,
tapeçarias da igreja, cálices de ouro e toda a prata. Mas não ligaram para as
ovelhas do mongezinho. Quando se foram, recomeçou ele a sair no horário de
costume, tocando sua flauta e acordando os galos, como sempre fazia.
O prior ficou furioso. Era
um homem grande e vermelho, que queria ser sempre o mais forte. Como os
ingleses estavam por perto e podiam voltar, decidiu fortificar o mosteiro.
Reunindo seus vinte e nove monges, mandou-os trazer pedras da montanha negra e
quebrá-las, a fim de levantar rapidamente um grande muro. Mas os monges
declararam que a tarefa era impossível:
— Precisaríamos de cem anos
para isso. Nem o diabo faria em menos tempo.
— Então voltem para as
celas, seus desocupados. Eu vou procurar o diabo.
O prior não sabia aonde ir
e o que fazer para encontrar o diabo. Mas sabia que ele não se faria de rogado,
e realmente lhe apareceu em uma clareira do bosque. O prior tremia um pouco,
mas procurou dar a impressão de superioridade:
— Então você está por aí,
seu preguiçoso. Quer dizer que me ouviu quando pronunciei seu nome!
— Fale com menos arrogância
— advertiu o diabo. — Estamos sós, e é você que precisa de mim. Só o servirei
se me pagar bem. O que quer que eu faça?
— Quero um muro que
contorne o mosteiro, com dez metros de altura e três de espessura, com cem
seteiras e um grosso portão de ferro. E precisa ser construído durante a
próxima noite, entre o pôr-do-sol e o primeiro canto do galo.
— Vejamos então a minha
parte no negócio. Eu construo o muro antes do canto do galo, e você me dá sua
alma e a de todos os monges. Eles fizeram voto de obediência, e você pode
dispor… O que é isso?!
A aurora começava a raiar,
e o mongezinho saía do mosteriro tocando a flauta. O demônio comentou:
— Não gosto desse anão mal
construído, está com jeito de quem quer nos espionar. Vou-me embora, e depois
apareço na sua cela.
— Não se preocupe, esse
anão é um tolo, mais ignorante que os próprios animais. Não sabe nada, não
compreende nada. Podemos concluir tranquilamente o nosso negócio.
O diabo redigiu o contrato,
leu-o em voz alta e o fez assinar pelo prior, em seguida desapareceu. Mas o
mongezinho compreendia as coisas melhor do que imaginava o prior. Entendeu tudo
e ficou triste o resto do dia. Até se esqueceu de tocar a flauta ao meio-dia e
à tarde, desorganizando as atividades da vizinhança.
Quando o sol se pôs, ele
viu chegar um batalhão de diabos. Havia milhares, de todas as cores. Uns
puxavam carroças carregadas de pedras, outros cavavam as fundações, outros
assentavam as pedras. Todos permaneciam em silêncio, não se ouvia nada, mas o
muro ia se erguendo. O mestre dos diabos ia de um lado para outro, espetando
com um tridente os que não trabalhavam rápido. À meia-noite o muro estava quase
concluído. Chegou uma porta pesadíssima, os diabos se juntaram e a assentaram
nos gonzos.
O mongezinho compreendeu
que tudo estava perdido. Olhou para a flauta e chorou, pensando que no inferno
ela lhe seria inútil. Mas tanto olhou para a flauta, que afinal teve uma ideia.
Acordou suas ovelhas e cordeiros, que o acompanharam enquanto saía de mansinho,
com a flauta na mão.
Quando os diabos estavam
assentando a última camada de pedras no alto do muro, ele começou a tocar a
flauta, com toda sua força e toda sua fé. As notas da flauta se espalharam
pelos campos e chegaram até os galos, que acordaram sobressaltados e puseram-se
a cantar com todas as suas forças.
O canto dos galos chegou às
muralhas ainda inacabadas, e o diabo compreendeu que havia perdido. Fugiu com
todos os seus operários, urrando, enquanto o monge continuava a tocar
alegremente sua flauta para agradecer ao bom Deus.”
Título, Imagens e Texto: Jacinto Flecha, Agência Boa Imprensa, 08-01-2014
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