Jacinto Flecha
Comodamente aposentado
atrás de uma seteira, prossigo minha palpação, percussão e ausculta meticulosas
do mundo que me rodeia. Meu estetoscópio social vem diagnosticando roncos e
sibilos da mais alta gravidade, sugerindo apontar para tumores específicos
minhas setas terapêuticas semanais, com vaga inspiração nas Viagens de
Gulliver e ao ritmo de Ridendo castigat mores.
Tendo indicado neste primeiro
parágrafo minha idade, profissão, objetivos, fontes de inspiração, estilo,
periodicidade, esta minha autoapresentação requer do prezado leitor, como forma
de cortesia, declarar seu grande prazer em conhecer-me; e de mim, retribuir no
mesmo tom.
Dito isto e feito aquilo,
passo a espetar meu alvo de hoje, não sem antes advertir que alguma das minhas
setas pode atingir você. Não se preocupe, pois podemos caminhar em sintonia com
meus 26 leitores… quando os alvos forem os outros.
Começo por fazer-lhe uma
pergunta incômoda: Você gosta de pagar imposto?
Eu também, não. E vou
contar-lhe uma curiosidade que encontrei na minha atividade observacional.
Examine com atenção o singular que usei, e compare-o com o plural: imposto e impostos.
Notou alguma diferença? Não me refiro ao fato de o singular indicar um só, e o
plural referir-se a mais de um. Uma diferença mais sutil é que, quando digo imposto,
fica claro que resultou de imposição, foi impingido contra minha vontade e meus
interesses; no plural, a imposição fica muito diluída.
Parece que o plural, no caso,
é um artifício de marketing governamental, pois vários
impostinhos não incomodam, ao passo que um impostão causa um tumulto daqueles…
Como os 20% da Inconfidência Mineira (o quinto), que era um só, e
bem grandinho. Hoje pagamos o dobro disso; porém, como está dividido em mais de
50 impostinhos, nós espoliados não estamos nem aí… Prosseguimos
trabalhando 5 meses do ano para pagá-los, e nem parece imposto, imposição.
A propósito, mais uma pergunta
incômoda: Você sabe quem impôs tudo isso?
Se pretende responder com um
só nome, desista. É também perda de tempo procurar os responsáveis por mais de
50 impostos. Nenhum espécime do plantel político assume a culpa desse confisco,
mas todos nadam de braçada sobre ele. A nós compete apenas pagá-lo, sob pena de
multas e outros aborrecimentos… impostos.
Essa diluição diafanizadora,
manipulada pelo marketing, torna cômodo descarregar no
governonossa insatisfação com esse confisco e com sua má aplicação; pois
governo é uma entidade impessoal, camuflada, acobertada, inatingível.
Faço-lhe mais uma pergunta
incômoda: Com que autoridade o governo faz esse confisco e essa aplicação
arbitrária?
A resposta é bem mais
incômoda: Com a autoridade que você e eu lhe demos.
É isso mesmo, e nem tente
desconversar. De acordo com a ficção em que se baseia a democracia
representativa, o poder vem do povo, e o povo o delega aos seus representantes.
Portanto, você e eu elegemos quem deve resolver as coisas em nosso nome.
Renunciamos ingenuamente às nossas responsabilidades, ao dever de zelar pelo
nosso patrimônio, e os confiamos a outros que nem conhecemos. Nada impede que
usem e abusem do que é nosso, não temos nem o direito de reclamar.
Dando uma olhada na História,
vemos que nem sempre foi assim. Os mandatários cobram imposto desde tempos
imemoriais, confirmando que morte e imposto são coisas inevitáveis neste mundo.
Muitos mandatários nomeavam cobradores de impostos com remuneração proporcional
ao que arrecadassem. Para ganhar mais, estes exageravam e extorquiam, daí sua
péssima reputação.
Qual o nome desses cobradores
de impostos? Sim, isso mesmo: impostores. O substantivo impostor
transformou-se em adjetivo pejorativo, para designar l.a.r.ápio agindo
arbitrariamente em nome de outro.
Será que as coisas hoje são
diferentes? Você se considera bem servido pelos representantes que foi obrigado
(isso também foi imposto) a eleger? Em outros termos: eles fazem o que você
gostaria que fizessem? Examine bem, e não tenha medo de concluir que somos
governados por um regime de impostores.
Título e Texto: Jacinto Flecha, Agência Boa Imprensa, 22-11-2013
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