
A triste situação dos últimos
anos é disso prova evidente. Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que
só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida
nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e
justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis. E ai de quem desmascarar
essas tolices!
A perversa ilusão dos últimos
vinte anos é hoje evidente. Qualquer observação honesta revela que um buraco
deste tamanho só podia existir com cumplicidade de todos. Os gastos ruinosos
foram repetida e democraticamente sufragados pelos eleitores. Todos
beneficiámos e aplaudimos com vigor. Os avisos de insustentabilidade dos
défices eram crescentes, de organizações internacionais e especialistas
domésticos. Até ao último momento ninguém quis saber. Dias antes do fatídico 6
de Abril de 2011, a todos os níveis da sociedade, cada um ainda negava a
exigência de mudar a sua vida.
Quando o choque rebentou e a
primeira ilusão morreu, houve duas reacções. O povo em geral abriu os olhos e
mudou mesmo de vida. Tem sido espantoso ver a atitude de famílias e pequenas
empresas, que no meio de enormes sofrimentos, se desembrulham da terrível
situação. Mas nas elites foi urgente construir novo mito que permitisse
depositar a culpa em porta alheia, justificando os protestos. Afinal éramos
todos inocentes e a maldade vinha de um punhado de corruptos incompetentes e da
troika que nos ajudava. Esta segunda fantasia, em que todo o aparelho
político-mediático anda apostado desde então, constitui uma magna operação de
desinformação. E que se livrem de a contrariar!
O Estado, câmaras e
instituições fazem o mínimo de reformas possível, esperando que tudo passe para
se voltar ao mesmo. Grandes empresas, próximas do poder, gravemente atingidas
pelas tolices antigas, aparentam uma normalidade oca. Em particular a banca,
óbvia protagonista da crise financeira, assobia para o lado, empurrando o
buraco com a barriga. A oposição, grande responsável da crise, grita indignada
como se lhe fosse alheia, sem realmente apresentar uma verdadeira alternativa à
austeridade. Apesar dos disfarces, a patente incapacidade de todas estas
entidades em cumprir as suas funções sociais mostra a gravidade da situação.
Funcionários, médicos,
professores e muitos outros grupos profissionais, que tanto ganharam nos anos
fáceis, tinham de conhecer a trajectória ruinosa que os seus sistemas seguiam.
Só com enorme cegueira voluntária podem agora indignar-se perante os cortes de
despesas insustentáveis que acumularam diariamente sem denunciar. Pensionistas,
subsidiados, munícipes e utentes quiseram acreditar nas benesess que políticos
irresponsáveis lhes concediam, apesar de os défices funcionais mostrarem a
evidência do embuste. Não só os aceitaram mas erigiram-nos em direitos
inalienáveis, apesar de muito superiores às receitas e liquidados por dívida
externa. Agora, dizer-lhes que os seus descontos não garantem os níveis
prometidos gera fúrias incontroláveis. Os realistas têm de ser corruptos,
neoliberais, hipócritas ou mentecaptos, pois nada é mais negativo do que a
sinceridade num povo embevecido pela ilusão. A verdade é crime de lesa-pátria.
Neste mito colectivo a
explicação comum para os cortes indispensáveis é que o Governo é perverso e
incompetente e os parceiros europeus oportunistas. Estes, que nos emprestam uma
fortuna no fundo do nosso buraco, são criticados pela sua solidariedade, pois
exigem-nos aquilo que tínhamos de fazer de qualquer maneira. Deste modo um país
de inocentes busca explicações mirabolantes para o mal que criou. Pois não há
maior cego do que o que não quer ver.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 25-11-2013
ResponderExcluirEm fim , alguém mesmo que do lado de lá do grande lago, com os pés no chão e bastante lúcido.
Do lado de cá do lago, parece que estamos acompanhando plácidos o gigante adormecido, continuar a roncar, até que a grande " apneia " apareça definitivamente e não acordemos mais deste triste sono petista
José Manuel