quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Renascenças

Jorge Calado
Para um otimista, a Europa é o promontório das renascenças. Ao longo dos séculos tem demonstrado a capacidade de se renovar, tanto a nível global como regional. E fá-lo, em geral, após períodos de grande instabilidade (política, social ou económica), de conflito aberto, ou até de epidemias – confirmando o velho ditado de que “depois da tempestade vem a bonança”. A explicação talvez esteja na matriz fenícia. Também a fénix, a ave púrpura das Arábias, voava todos os 500 anos para o Egito, para se imolar e renascer dos escombros e das cinzas.

O grande Renascimento europeu – após a medieval Idade das Trevas – começou na Itália (século XIV), propagou-se pelo resto do continente e perdurou até ao século XVII. Veio na cauda da Peste Negra (que dizimou quarenta por cento da população europeia, entre 1348-50), da Guerra dos Cem Anos (que opôs a Inglaterra à França entre 1337-1543 e levou ao colapso de bancos florentinos), e das Guerras da Lombardia (que redesenharam o Norte da Itália entre 1423-54). Eis a Europa de Leonardo da Vinci, François Rabelais, Erasmo de Roterdão e Albrecht Dürer, de Gil Vicente e Hieronymus Bosch – todos contemporâneos uns dos outros. Ou, um século depois, a Europa de Galileo, Claudio Monteverdi, Shakespeare, Pieter Paul Rubens, Johanes Kepler e Lope de Vega.

No século XVIII houve a Europa do Iluminismo, com o filósofo David Hume a proclamar que “tudo o que existe tem uma causa” (teoria da causalidade). O efeito segue-se a uma causa (excepto em mecânica quântica onde a causa pode ser consequência do efeito). Hume, aliás, foi um dos faróis da Renascença escocesa, juntamente com o químico (e médico) Joseph Black, o economista Adam Smith, o geólogo James Hutton e o poeta Robert Burns. E houve um último fogacho modernista nos começos do século XX, com Albert Einstein e Niels Bohr (ciência), Arnold Schoenberg (música), Pablo Picasso (pintura) e James Joyce e Fernando Pessoa (literatura), com uma guerra mundial (1914-1918) e uma revolução (russa) de permeio. Virá aí outra Renascença europeia? O futuro é imprevisóvel e a fénix só renasce de 500 em 500 anos…

Há duas conquistas renascentistas que me impressionam: na música, a inteligibilidade da palavra; na pintura, a simulação do espaço tridimensional. Depois da massificação do canto gregoriano e da polifonia, as camerate florentinas procuraram revitalizar o drama clássico grego através da música. O entendimento do texto era essencial – daí a emergência de um estilo novo, o parlar ou recitar cantando, que gerou a ópera, a mais complexa forma de arte ainda em uso. L’Orfeo (1607), a ‘fábula por música’ de Monteverdi, composta para a Corte de Mântua, é a mais antiga ópera a subsistir no repertório. Coincidência, ou não, a primeira cantora de ópera a distinguir-se foi Madama Europa (Rossi), na mesma Corte de Mântua, e que terá talvez interpretado um intermezzo baseado no mito do rapto de Europa (por Zeus).

Estátua de Brunelleschi próxima ao Duomo de Florença.
A terceira dimensão entrou na pintura através da perspectiva linear, inventada pelo arquitecto Filipo Brunelleschi no início do século XV. Nas Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitectos (1550), o pintor Giorgio Vasari conta como Paolo Uccello, entusiasmado com a perspectiva, esquecia os seus deveres matrimoniais. Trabalhava pela noite fora, e quando a mulher o chamava para a cama, respondia: “Que bela coisa é a perspectiva!”.
O curioso é que, enquanto a arte europeia enveredou pela conquista do espaço, a arte oriental preocupou-se com o domínio do tempo (uma variável só introduzida na pintura ocidental no século XIX). Há toda uma tradição narrativa na pintura chinesa e japonesa (mural e de rolo). Mais ainda: a representação é feita do ponto de vista do objeto representado, enquanto na Europa o é do ponto de vista do observador omnisciente. Os ocidentais valorizam o espaço, mas os orientais, mais pacientes, dão tempo ao tempo. Conta-se que, interrogado sobre a importância histórica da Revolução Francesa, o primeiro-ministro Chu-en-Lai terá dito: “Ainda é cedo para saber”.
Título e Texto: Jorge Calado, capítulo 5 do ensaio “Quem é? O que é? A Europa”, in “XXI, Ter Opinião – 2014”, páginas 37 e 38
Digitação: JP, 21-11-2013

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